29.5.07

Sobre mulheres e sombrinhas

Elas têm que dar o braço a torcer: se fizessem uma pesquisa para saber quais os melhores amigos da mulher, o guarda-chuva apareceria em posição de destaque. A sombrinha, como elas costumam dizer —se bem que hoje em dia só as velhinhas ainda usam para fazer sombra.
     Os fabricantes de bolsas —outro objeto que entraria na lista— sabem disso e já desenham os modelos para que acomodem uma sombrinha dentro. Só não valem aquelas bolsinhas de festa, porque nelas cabem no máximo umas moedinhas. Mas é tiro e queda: bolsa grande carrega um guarda-chuva —sombrinha— dentro.
     Caiu uma gota do céu, pronto!, elas sacam suas armas de dentro da bolsa; caiu a segunda, elas disparam os gatilhos sem nenhuma piedade, Billy the Kid ficaria com inveja. Um dia, quero alugar um helicóptero para ver o espetáculo lá de cima, deve ser legal: milhares de bolinhas coloridas pipocando pela cidade.
     E logo elas começam a andar apressadas, porque —é só observar— mulher de sombrinha é sempre apressada. Aí, se no caminho encontram uma marquise de prédio, ponto de ônibus ou toldo de loja, elas correm a passar lá em baixo. Gostam tanto das sombrinhas que não querem molhá-las.
     Uma coisa chata é que as sombrinhas gostam de pregar peças na mulheres. Isso porque elas sempre são maiores do que a dona imagina. Então as danadas, com suas varinhas, vão esbarrando em paredes, agarrando postes, enganchando em roupas, puxando cabelos. Que levante a mão o homem que nunca temeu a cegueira quando passou ao lado de uma mulher armada com sua fiel companheira.
     E quando pára de chover, ou ficam só aquelas gotinhas enquanto São Pedro torce as nuvens, as sombrinhas desfilam abertas por um tempo ainda. Mulheres são precavidas, pode ter alguma chuva escondida lá em cima. Ou talvez estejam só secando um pouquinho antes de, enfiadas numa sacolinha —um saquinho de supermercado sempre acompanha a sombrinha—, voltarem para a bolsa.
     Mais tarde, chegando em casa, direto para a área de serviço: as sombrinhas dormem abertas, lembrando as aventuras do dia.

* * *
Nota: desculpem, meninas, sei que parece machismo, mas eu não pude resistir. É que eu acho tão engraçado mulher atrapalhada andando de sombrinha...

28.5.07

Som do silêncio

Se uma frágil pétala
cai no rio turbulento,
alguém a ouvirá?

24.5.07

O bolo da Cecília

Embora a do João Marra seja indiscutivelmente minha preferida, outra boa lição que virou patrimônio da família é a da prima Cecília.
     Na casa de meu avô eram oito irmãos. Como os tempos eram difíceis —época da guerra, quando o mundo inteiro estava ocupado se matando—, e meu bisavô penava para alimentar tantas bocas, a comida quase sempre era contadinha, controlada com disciplina de general pela minha bisavó: uma porção para cada um, nem mais, nem menos.
     Belo dia, ela fez um bolo e cortou em exatos oito pedaços para a hora do café. E bem na hora chegou visita: a prima Cecília. A bisa não era boba nem nada, guardou o bolo no forno e foi receber a prima de boca bem fechada.
     Pois diz que meu avô ficou por ali fazendo sala para a prima também. E na vontade de ser um bom anfitrião —e, sabe como é a idade, soltar um galanteiozinho para cima da prima mais velha—, sugeriu:
     — Dá bolo pra Cecília, mãe.
     A bisa deu uma olhada de rabo de olho para ele, fulminante. Para bom entendedor, isso significaria "cala a boca, moleque, que os pedaços estão contados". Mas meu avô não devia ser bom entendedor, porque, papo vai, papo vem, lá pelas tantas soltou de novo:
     — Ô, mãe, dá bolo pra Cecília!
     E a bisa deu-lhe um chute de leve na canela, com um sorriso de "ai, essas crianças". Mas o menino queria mesmo fazer bonito com a prima e repetiu:
     — O bolo já esfriou, mãe, dá um pedaço pra Cecília!
     A essa altura, não tinha mais como disfarçar: a prima Cecília sabia que tinha bolo, sabia que já estava frio —é de senso comum que bolo quente dá dor de barriga— e ficaria chato se não ganhasse um pedaço. Não teve escapatória: a bisa foi para a cozinha e voltou com um pedaço do bendito bolo para a prima Cecília. O que a moça comeu —como diz minha avó— de boca gostosa. E meu avô, todo orgulhoso, se sentiu o bom mocinho do dia.
     Mais tarde, quando a prima Cecília foi embora, minha bisavó chamou os oito filhos para a cozinha, serviu café e distribuiu os pedaços do bolo. E, surpresa!, só tinham sete pedaços. Meu avô só ganhou café.
     — Ué, mãe, e o meu pedaço?
     — O seu eu dei pra Cecília, pra largar mão de ser linguarudo.
     Porque, se em boca fechada não entra mosca, em boca aberta não entra bolo.

23.5.07

Plantão de notícias

— ... a verdade é que eu sempre te amei, Maria Miquelina.
     — Bom, eu também tenho um segredo para te contar, eu...
     Sei que é horário nobre, que a novela mexicana está pegando fogo, mas preciso interromper a programação para o plantão. Desculpem, é coisa rápida. E prometo que não é nenhuma desgraça.
     Ganhei, na comunidade blogspot.com no Orkut, a votação de melhor blog da lista na última semana. Isso rendeu ao Acepipes um lugar no hall da fama da comunidade e aumentou bem a audiência por aqui —além de ter tornado ainda mais urgente a ampliação da casa e o seqüestro do cronista anão.
     E agora, então, me atraquei com os outros quatro vencedores anteriores numa briga —ao melhor estilo Gigantes do ringue—, pelo cinturão de El mejor de los mejores (que o Rob "el matador" Gordon, muito justamente, já abocanhou por antecipação). Mas a luta com Dan "o açougueiro" Moura, Vagabond Lanarck e Juliano, o palavreador maldito está animando os canais pay per view da TV.
     Não bastasse, também fui indicado como candidato para ser entrevistado no pub do Julio.
     Resultado: vou ficar mal acostumado. Com visitas assim na sala, não preciso nem visitar as prateleiras de auto ajuda da livraria. É verdade: vocês sabem fazer um blogueiro feliz.
     Então, só dessa vez —segredo nosso—, escondi para vocês umas bebidas especiais na prateleira de baixo do frigobar, atrás do repolho roxo. Só não vão dar uísque para o Rex. Um brinde a vocês, amigos leitores!
     E agora nossa programação normal:
     — ... sou homem, Francisco Heleno.

21.5.07

Só mais cinco minutinhos

Às seis em ponto, A.M., horário de Brasília, o despertador tocou. Só que a cama estava tão gostosa e lá fora estava um tempinho tão feio, que o Rodolfo Augusto decidiu —na verdade, não decidiu nada, só adiou— ficar mais cinco minutinhos. Apertou o botão maior, o da soneca, do rádio relógio e virou para o outro lado.
     Mais cinco minutos, tocou de novo; o Rodolfo, que estava num soninho tão bom, apertou o botão outra vez e puxou a barra do edredon mais para cima. Cinco minutos depois, alarme; Rodolfo Augusto bateu no despertador e empurrou a mulher mais para o lado. Mais cinco, encolheu as pernas. Outros cinco, cochilou de boca aberta. Cinco, ajeitou o travesseiro.
     A Cíntia Patrícia, que dormia na mesma cama, estranhou ele, sempre tão pontual, perder a hora. Levantou às sete e chamou o marido. O Rodolfo Augusto mais grunhiu que falou um "só mais cinco minutinhos".
     Ela foi até a cozinha e colocou água para ferver. No quarto, o alarme soou de novo. Preparou seu café da manhã e sentou-se para comer. O alarme gritou. Terminou de comer quando a campainha soava mais uma vez.
     Quando a Cíntia voltou para o quarto, sete e meia, o Rodolfo Augusto estava ainda na cama. Ela entrou no chuveiro, o alarme tocou, lavou os cabelos, o despertador berrou, depilou uma perna, campainha, a outra, bip bip bip. Enquanto fazia escova, o Rodolfo Augusto apertou o botão da soneca mais duas vezes.
     Claro que ela ficou preocupada, perguntou se estava tudo bem, mas o marido estava dormindo tão gostoso que ela teve dó. Saiu para trabalhar e deixou o Rodolfo ficar na cama por mais cinco minutos.
     Quando a Cíntia chegou de noite, o Rodolfo Augusto ainda estava lá, roncando a sono alto. Ela jantou sozinha e assistiu a novela entre os bipes ritmados do despertador. Durante a noite, acordou de cinco em cinco minutos, toda vez que o marido pedia mais uma soneca ao rádio relógio. Numa das vezes, ela própria se debruçou em cima do marido e apertou o bendito botão.
     O que acontece é que a Cíntia Patrícia já não sabe mais o que fazer: faz duas semanas que o Rodolfo Augusto não levanta da cama. Mas tudo bem, daqui a cinco minutinhos ele acorda.

17.5.07

Cinco mil!

Meu amigo Jack Palance diria "acredite se quiser", mas eu dou minha palavra de escoteiro: respeitável público, esta semana o Acepipes chegou a cinco mil visitas! Uma surpresa que me deixou muito feliz, nada mal para quem chegou na vizinhança há seis meses.
     Olha, dá um trabalho danado manter a despensa sempre cheia para essa gente toda. O Google Analytics me disse também que eu já servi mais de uma tonelada de acepipes e cerca de dois mil litros de chá (um pessoal andou pedindo também umas guloseimas e, ok, vou pensar no caso).
     Além dos bloqueios criativos —segundo maior pesadelo de todo blogueiro, atrás apenas das pessoas que lêem e não comentam—, enfrento agora uma séria crise: espaço. Acontece que, além de ter só um sofá, o Rex dorme o tempo todo, matando um lugar. Vou ter de tomar uma providência: ou acordo o bichinho ou compro umas novas poltronas. Também preciso mandar instalar um piso alto tráfego na sala, que o carpete não pára mais limpo.
     O legal é que tem um pessoalzinho que já virou de casa e nem repara na bagunça. Fica até tarde batendo papo, abre a geladeira sem cerimônia e troca o canal da televisão quando quer. O que tem de gente bacana aí do outro lado do monitor não é brincadeira.
     Os posts às vezes demoram para sair. Admito que às vezes eu tapeio só com um acepipezinho daqueles com gosto de isopor, que vocês aceitam só por educação. Mas por favor entendam: ainda não consegui capturar o cronista anão que eu vou manter refém no maleiro do armário e que, aí sim, vai escrever todos os dias. Cronistas anões são muito, muito ariscos.
     Enfim, muito obrigado a todos. Pelas visitas, pelos comentários, pelos adds no Orkut, pelos links. Só não cansei da brincadeira ainda porque vocês me compraram com meia dúzia de elogios. Mas cuidado: vocês estão criando um monstro, vão ter que agüentar depois.

14.5.07

A cristaleira

Quem entra na casa do seu Glicério logo vê. Bem no meio da sala, na parede maior, de frente para a Santa Ceia: lá está a cristaleira da dona Eulália. Daquelas que não se faz mais como antigamente, de madeira de lei, pés entalhados e duas portas de cristal com friso dourado. Mais umas fotos 3x4 das filhas e dos dois netinhos encaixadas por trás do vidro. E, por cima, umas toalhinhas de crochê que ela faz.
     É quase uma arca do tesouro. Um jogo de copos tchecos, um faqueiro de prata italiano, um conjunto completo de pratos portugueses com florais azuis, um sisudo bule com suas xícaras vitorianas, um açucareiro de porcelana que ela jura chinesa e uma garrafa de cristal da Boêmia com um líquido verde que ela já esqueceu o que é. Seu Glicério, inclusive, defende a tese de que é possível alguém dar a volta ao mundo sem sair de dentro da cristaleira.
     Acontece que, assim como nosso bom e velho companheiro tem seus caprichos, dona Eulália tem os dela. E a regra número um é simples: na cristaleira ninguém mexe. Ninguém, e ponto. Só ela, e em dia de limpeza. Porque, diz, aquilo é herança de família. E não tem negociação: seja aniversário, seja Natal, seja casamento, dona Eulália serve tudo em copos de requeijão.
     Quando mudaram para o apartamento novo, o Jorjão do frete se ofereceu para carregar aquele —como ele mesmo disse— armarinho com tudo dentro. Dona Eulália quase teve de ser socorrida às pressas quando ele —um sujeito quadrado de dois metros de altura por dois de largura— já ia abraçando a cristaleira.
     Ela acabou embrulhando cada peça numa folha dupla de papel e organizando, cuidadosamente, cada seis delas numa caixa cheia de mais papel amassado. Coisa que levou ali umas oito horas. E nada de jogar no caminhão: nosso paciente amigo Glicério teve de levar tudo no banco traseiro do carro, e nem pensar em passar dos vinte por hora. Quase que um guarda parou para verificar se se tratava de contrabando de nitroglicerina.
     Outro dia, a Marcinha, que está grávida, quis fazer graça e ameaçou desmaiar bem em cima da cristaleira. Dona Eulália foi mais rápida e desmaiou antes. Só descobriu que era brincadeira quando acordou. Enquanto abanava a esposa, seu Glicério lançou um desafio:
     — Mas nem se o Papa bater na porta e pedir um copo de água, pelo amor de Deus?
     E ela continou inflexível:
     — Aí eu sirvo neste de geléia, que tem florzinha do lado. Deus me livre, os copos da mamãe!

* * *
Clique aqui para ler as outras aventuras do seu Glicério.

13.5.07

Carta a uma mãe

Sabe que outro dia, mãe, eu estava mexendo naquelas fotografias que volta e meia você olha com saudade e lembrei das nossas tardes na praça, quando eu mal sabia andar. As pernas não eram fortes o bastante, mas você agarrava minhas mãos e me sustentava no ar. Meus passos não eram lá muito compridos, não iam muito longe, mas você diminuía os seus.
     E eu, na minha inocência de menino, pensava que andava sozinho. Olhava para baixo e via todo aquele mundo sob os meus pés. Só me dava conta da sua presença quando caía e era puxado de novo para cima. E lá íamos nós. E logo a praça ficou pequena para nossos passeios.
     Os anos passaram e eu continuei andando. Andando cada vez mais rápido, e para cada vez mais longe. Você já largou minhas mãos e eu já saí da pracinha. Nem mesmo junto com você eu ando mais. E talvez só hoje, mãe, eu tenha me dado conta de que você me ensinou aqueles primeiros passos sabendo que um dia eles me levariam para longe de você.
     E hoje eu também vejo que ainda sou o mesmo menino que quer correr mais rápido do que consegue. Que pensa que está andando sozinho quando na verdade é alguém que me sustenta no ar.
     Talvez só hoje, parando para pensar um pouco mais em você, eu tenha percebido que você andou, sim, comigo o tempo todo. Mesmo que não segurasse mais minhas mãos e me dissesse, a cada esquina, para olhar para os dois lados, você esteve, mãe, sempre ali.
     Porque eu sempre disse que já era grande, que sabia andar sozinho, mas você nunca ligou e sempre esteve por perto. Sabia que, hora ou outra, eu ia cair. Meus tombos e meus passos são diferentes daqueles de anos atrás, mas o seu sorriso e a sua ternura não mudaram nem um pouco. E por mais que as quedas sejam todas frutos da minha teimosia, da minha desobediência, você sempre continuou ali, pronta a me levantar, a me sustentar, e dizer: “não foi nada, eu estou aqui”.
     Queria dizer alguma coisa que valesse mais que este presente que hoje eu te dou. Um “feliz dia das mães” é pouco. Talvez um “muito obrigado” também não seja suficiente. Quem sabe tudo o que você queira ouvir hoje é somente um “mãe, eu te amo”.

9.5.07

O destino do pobre Yun Fang

Sentei-me na pastelaria e pedi um pastel especial com refresco. De abacaxi, que a cor do de laranja não estava lá muito convidativa. Na televisão, num canal chinês, o que me pareceu ser uma novela. Claro que não entendi lhufas —uma legendinha cairia bem—, mas fiquei tão envolvido no drama que criei minha própria interpretação.
     Tsai Chang estava à beira da morte no leito do hospital provincial de Hubei. A enfermeira o medicou e saiu do quarto, deixando-o a sós com um delegado com cara de canastrão, o sub-oficial Leng Lo. Silêncio por um momento. Então, lentamente, o homem da lei virou-se, revelando uma cicatriz medonha no lado direito do rosto.
     Logo matei a charada, a mim eles não enganam: o delegado Leng Lo é, na verdade, o mafioso Guang Yu, chefe do submundo de Hong Kong. Tsai é um homem bonachão, leva uma vida pacata numa propriedade rural com sua única filha, a bela Lien Ching, mas vive atormentado pelos fantasmas do passado: ele foi ninguém mais, ninguém menos que o lendário líder da cruel tríade de Mu Giang.
     Amparado por Guang Yu está o pequeno Yun Fang, um menino de cabelos espetados e expressão desamparada, cujo segredo somente Tsai Chang conhece. E, depois de anos de silêncio, o moribundo está prestes a revelar o futuro do pobre garoto. A pergunta é: por que raios ele chamou justo Guang, seu maior inimigo?
     Quase xinguei —e em bom português mesmo— quando perdemos o sinal. Logo agora! A chinesinha do balcão também mostrou nervosismo, dando a entender que minha interpretação estava certa: seja lá o que fosse, estávamos presenciando um momento decisivo na trama.
     Parei de comer. Segundos de tensão. Yun Fang, seja forte!
     Quando a imagem voltou, Tsai jazia morto e a jovem Lien Ching chorava, desesperada, a morte do pai. Então, friamente, o mafioso em pele de advogado tomou a mão do menino e o conduziu para fora do quarto, rumo ao seu destino. Passaram os créditos.
     Paguei a conta, contrariado, e fui embora, sem saber o que foi feito do pequeno Yun Fang. Será que ele voltou para a casa da doce vovó em Beijing? Foi para o orfanato do severo educador Mao? Teria sido adotado como herdeiro do império mafioso de Mu Giang? E já pensou se venderam seus órgãos no mercado negro de Lin Feng Hu?
     Nunca vou saber. Ai, como eu queria falar chinês...

8.5.07

Barulhinho bom

Mil gotas de céu
tamborilam no beiral
— música da chuva.