27.7.10

Avôs

Desencontramos.
     Quando cheguei ao mundo, meus dois avôs já não estavam mais aqui. Coisa de poucos meses. Vô Amaro levado por um infarto fulminante, num episódio particularmente trágico; vô Agenor, por um câncer implacável que o derrubou em poucas semanas. Um seguido do outro. Desencontramos, foi isso.
     Meu pai foi –e continua sendo, e Deus permita que seja por muito tempo– o melhor pai que se possa imaginar. Cumpriu em tudo o papel de pai, de amigo, de companheiro, de contador de histórias, de jogador de futebol, de mecânico de bicicletas, de engenheiro de pipas, de biólogo de zoológico. De herói. Mas um papel ele não pôde cumprir, porque não era dele.
     Vô Agenor garçom, vô Amaro sapateiro. É quase tudo o que sei sobre eles: os nomes, profissões e uma meia dúzia de outras coisas. Por mais ridículo que pareça, às vezes fico conversando sozinho, contando a mim mesmo essas histórias, inventando algumas outras, como se fosse um menino de oito anos.
     Falta vô Amaro aqui para esclarecer a saga da família em Minas Gerais e confirmar os causos do João Marra. Falta vô Agenor para contar a vida de colono no Paraná e repetir mil vezes como foi servir um martini ao Frank Sinatra. Como conheceram minhas avós, como as roubaram de casa. Como viveram os anos de dificuldade, como foram parar em São Paulo.
     Quanto a mim, gostaria de mostrar que ando com a voz até que boa para acompanhar uma moda de viola, que consigo distinguir o canto de um ou outro passarinho. Gostaria de aprender a colher café, a pescar, a dançar bolero. Gostaria de acompanhar à barbearia, de sentar à calçada num fim de tarde. Gostaria de apresentar aos dois minha namorada, de dizer que agora ela é noiva, de ter anunciado a data do casamento, de vê-los no altar quando entrar na igreja. E, Deus, como eu gostaria de colocar um bisneto nos braços deles.
     Sou uma árvore meio capenga, porque me falta um pedaço de raiz.
     De todas, acho que essa é minha maior mágoa, por ser a única que não tem, e não terá jamais, remédio. Não tenho o consolo de alguma lembrança. Não tenho com que tampar, ou esconder um pouco que seja, esse buraco na alma. Tenho uma avó também já falecida, mas dela tenho o consolo dos anos de memórias, da convivência, do último encontro. De meus avôs não tenho absolutamente nada, nem mesmo o choro da perda.
     Faz um tempo, mandei emoldurar uma gravura que ganhei de um amigo. Entrei numa loja dessas antigas no centro velho e dei com um senhor desses respeitáveis, de terno cinza, olhos fundos e boina de lã. Soube que não poderia deixar o serviço em melhores mãos. Ao fechar a porta de vidro, vi no fundo da oficina um garoto que batia pregos com um martelinho e tive de engolir o choro.
     Deus sabe o quanto eu queria ter sentado ao lado do vô Amaro na sapataria, engraxando sapatos. Deus sabe o quanto eu queria ter andado ao lado do vô Agenor no restaurante, carregando pratos. Talvez por isso eu tenha indagado por anos a fio minhas avós em busca de pedaços de passado. Talvez por isso eu me pegue às vezes, sozinho em casa, olhando escondido o canivete que minha mãe guarda na gaveta e o par de botas que meu pai tem no armário.
     Porque a vida quis assim: a maior saudade que eu carrego é de dois homens que jamais conheci.

* * *
E por isso eu queria dedicar este post ao sr. Newton Maiewski, avô da minha noiva, que todo fim de semana abre o portão para que eu chegue com a moto, empresta o jornal e conta as últimas do futebol e da política.

19.7.10

Numa segunda-feira

Fazia semanas que o Amarildo estava querendo fazer isso. Meses, se bobear. Por isso, antes de apagar a luz para dormir, ele decidiu que amanhã finalmente seria o dia. Ponto.

* * *
Amanhã virou hoje e hoje, como decidido, era o dia.
     Como já sabia que enrolava na cama, o despertador tocava às cinco e quarenta, para levantar às seis. Ainda assim, seis acabava virando seis e pouco, seis e meia. Dava que que, quase sempre, o dia começava já atrasado. Mas hoje não.
     Porque hoje, hoje era o dia, e o Amarildo despertou assim que ouviu o celular –alguém ainda usa despertador?– chamar. Às cinco e quarenta da manhã começou com o plano: saiu de baixo das cobertas, espreguiçou esticou bocejou coçou os olhos. Fez até umas flexões. Em seguida, foi para a cozinha, onde começou a preparar um café da manhã caprichado.
     Como quase sempre ficava na cama mais do que devia, quase sempre só engolia o que desse tempo. Só que hoje, hoje era o dia, e Amarildo fez tudo como manda o figurino. Preparou o pão com queijo e ligou a sanduicheira, passou café, separou uma maçã, serviu um pouco de cereal na tigela, jogou mel e leite por cima. Sentou-se à mesa posta e comeu com calma, como deveria fazer sempre.
     Como quase sempre o tempo já estava estourando, ele ou deixava a barba por fazer, ou tomava um banho rápido daqueles como quando era moleque ou largava o cabelo de qualquer jeito. Só que hoje, hoje era o dia, então Amarildo foi ao banheiro, fez a barba, tomou banho, arrumou bem o cabelo.
     Quase sempre também só ia vestindo o que estivesse por cima da gaveta ou já estivesse desde a noite anterior largado em cima da cadeira. Só que hoje, o dia, Amarildo separou a roupa cuidadosamente. Cueca, meias, calça, camisa, blusa, jaqueta, cachecol. Escolheu peça por peça, fez até combinação. Colocou o crachá.
     O dia começou perfeito, como deveria ser. Porque hoje era o dia, e ele vinha planejando isso há semanas. Meses, se bobear.
     E então, café tomado, aparência cuidada, roupas vestidas, crachá no peito, Amarildo deitou na cama de novo, puxou as cobertas bem para cima, sentiu o cobertor ainda quentinho, deu um sorriso satisfeito e dormiu até depois do meio-dia. Hoje era o dia, e ele queria só ter o gostinho de voltar para a cama. Saber uma vez na vida qual era a sensação de voltar para a cama. De mandar tudo para o inferno e voltar para a cama numa segunda-feira.
     (Hoje era feriado, porque o Amarildo não era tão corajoso assim.)
     Foi o sono mais gostoso que ele já dormiu.

14.7.10

Inverno

O vento sul sopra
nuvens que cobrem a lua
madrugada, inverno

9.7.10

Digital

Dia desses, fui visitar minha avó e ela veio me mostrar, orgulhosa, as últimas fotos que tirou. A orquídea florida –dez ramos!–, o pessoal do grupo da terceira idade da igreja, o bisneto que foi visitar. Tudo direitinho, bem focadinho, bem enquadradinho. Tudo no visor da máquina digital.
     Sim, da máquina digital.
     Primeiro foi a televisão a cabo. Toda semana, algum neto tinha que relembrar de novo e de novo que botões apertar para ligar, desligar, assistir a novela, o Raul Gil ou o Silvio Santos. Até que um dia fui lá e ela esnobou, zapeou por tudo quanto é canal, mostrou um tal "reloginho que desliga a tevê sozinho" depois que ela já dormiu no sofá e coisa e tal.
     Depois chegou o celular. Toda semana era ir até lá deletar as mensagens de propaganda da operadora e sumir com "aquela cartinha que fica piscando na tela". Até que dia desses eu recebi um SMS. Vocês têm noção do que é receber um SMS da própria avó?
     Então veio o DVD –que ela insiste em chamar de dedevê, isso não tem jeito. Mesma coisa. Até o dia que cheguei lá e ela perguntou se eu não queria assistir um show do Sérgio Reis. Eu quis, claro. (Agora tem também o disco das fotos das férias com meu tio, obrigatório.)
     A boa da vez –voltamos ao começo da história– é a máquina digital, presente de aniversário para uma adolescente de setenta e três anos. Está tirando de letra.
     E agora eu chego à parte que interessa da coisa toda: minha vó era, até poucos anos atrás, analfabeta. Sabia assinar o nome, reconhecer o ônibus, ver o preço dos produtos, mas era analfabeta. Nasceu e cresceu na roça, aprendeu a colher e plantar, aprendeu a vida na cidade grande, aprendeu a criar os filhos e netos, aprendeu a vida, mas demorou para aprender as letras.
     Pois aprendeu. Porque –essa parte da história faltou– antes da televisão a cabo lá do terceiro parágrafo, eu ia à casa dela levar lápis novos, ensinar como se faz o "A" maiúsculo, olhar se a letra estava bonita e passar um ou outro ditado.
     E agora recebo SMS reclamando que demoro para aparecer, assisto o dedevê do Serjão Reis e vejo fotos digitais. Não demora muito, aparece um comentário aqui no blog.
     Essa juventude aprende as coisas rápido demais, meu Deus do Céu...

7.7.10

Mudança de ares

Tentei me livrar da casinha, mas não consegui. Depois de três anos e pouco, não consigo mais imaginar o Acepipes sem o cachorrinho dormindo no sofá, a fumacinha na chaleira, a estante de livros. Nem desse verde-cor-de-burro-quando-foge eu consigo me livrar mais.
   Já me perguntaram um par de vezes –e eu, desmiolado, nunca soube responder– por que uma casinha?, por que um cachorro?, por que essas cores tão apagadinhas?. Minha única resposta é "por que não?". Por que não, ué?
     Enfim, temos um novo layout. Arrumei uma coisa aqui e ali, puxei um móvel mais para cá, outro mais para lá. Nada tão diferente assim, mas novo, de qualquer maneira. As bebidas continuam ali, na mesma porta do armário, é só se servir. Estejam sempre em casa.