tag:blogger.com,1999:blog-64477740498906698462024-03-19T05:26:24.047-03:00acepipes escritoso chá é servido pontualmente a qualquer horaBrunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.comBlogger316125tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-55534051579831465022015-03-10T13:21:00.000-03:002015-03-10T13:21:23.080-03:00Duzentas<h2>
capítulo sétimo</h2>
<br />
— Você prefere doce de mamão ou um pedaço de goiabada?<br />
Silêncio.<br />
Dona Dalva, segurando a porta da dispensa, virou para trás e deu com a cara embasbacada do marido sentado à mesa, com o prato de comida quase intocado. Só então se lembrou: a bendita experiência, as duzentas palavras. Ainda pouco familiarizado com o vocabulário de duzentas palavras, seu Jonas não sabia o que responder. Ela suspirou, olhou para cima, ai minha santa Cecília, e simplificou, vencida:<br />
— Você quer este?<br />
— Não.<br />
— Este, então?<br />
— Sim.<br />
Era o doce de mamão. O Major levantou a cabeça da soleira e abanou o rabo: para ele qualquer um servia. Dona Dalva serviu o marido, mas não conseguiu segurar a frustração:<br />
— E eu vou ter que falar com meu marido que nem eu falo com o cachorro agora?<br />
Seu Jonas tirou a caderneta do bolso, folheou rapidamente, balançando a cabeça como quem confirma algo e só então respondeu, telegráfico, com um sorriso infantil:<br />
— Sim, Dalva. Falar. Menos. Agora.<br />
Pobre dona Dalva. Sentiu as mãos tremerem, deixou cair o potinho de sobremesa, apoiou-se na pia. Quarenta anos de casamento e agora isso, a grama crescendo alta, a pintura do muro abandonada pela metade, um marido que não fala quase nada e pior: um marido sem fome. Aos olhos dela, era a ruína. Desmaiou.<br />
Mais tarde, mais calma, ela passava o café enquanto seu Jonas cuidava da horta castigada pela chuvarada. Pelo menos para trabalhar ele não precisava falar nada, pelo menos agora ele largara aquele monte de papéis e a casa voltaria à ordem. Mas dona Dalva estava longe de se conformar.<br />
Quando terminou, seu Jonas entrou pela porta da cozinha. Sentou-se em silêncio, cortou uma fatia de bolo, puxou a caneca para mais perto mas não encontrou o bule. Ohou para o fogão e não o viu lá também. Então pegou a caderneta, folheou, folheou e pareceu desolado.<br />
— Ah, você esqueceu de colocar “café” na sua lista? Rá!<br />
Foi quando ele viu que a coisa seria mais difícil do que pensara. Dona Dalva sentiu o mesmo e, com ares de vitória, deixou o marido sem café, só de birra. Se não fala, não ganha. E seguiu firme na novena.´<br />
<br />
* * *<br />
<i>Pois é, um ano depois retomei a história (os capítulos anteriores estão aí em baixo) e agora só falta o último capítulo. Prometo não demorar um ano para terminar.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-81662118495013865262014-03-19T20:42:00.002-03:002014-03-21T12:49:51.687-03:00Duzentas<h2>capítulo sexto</h2><br />
Depois de semanas de calor furioso, amanheceu um dia tristonho. A tempestade que caiu pesada durante a noite encheu o jardim de poças cuja lama o Major parecia empenhado em trazer, pouco a pouco com as patas sujas, até a varanda. Sem a atenção do dono, o velho vira-latas deu de zanzar perdido de um lado para o outro.<br />
Dona Dalva correu para tirar a leiteira que ferveu e transbordou no fogão. Encheu a caneca, decepcionada com o próprio relaxo, sentou-se à mesa, preparou sem vontade um sanduíche. Comia pão de forma porque a casa não tinha mais quem buscasse pão fresquinho todas as manhãs. Seu Jonas ainda dormia depois de trabalhar até os primeiros raios de sol rastejarem por baixo da porta da garagem. Flutuava sobre a casa um silêncio cansado.<br />
Quase hora do almoço foi que ele apareceu na cozinha atrás de algo para comer, a cara amassada, os olhos pequenos de quem não dormiu o tanto que deveria. Ela colocou um pratinho sobre a toalha plástica, buscou a garrafa térmica.<br />
Sem aviso, com a boca ainda cheia de pão com presunto, seu Jonas falou:<br />
– Terminei minha lista.<br />
... e continuou mastigando, encurvado sobre a mesa. Dito do jeito que foi, o anúncio não soou como conquista, como um objetivo atingido depois de dias de busca febril, mas só como uma constatação indiferente, até meio derrotada. Do bolso da camisa ameaçava cair uma caderneta espiral.<br />
– Hoje mesmo, depois do almoço, começo a segunda parte do experimento. Vou continuar vivendo a vida normalmente, mas só posso usar essas palavras.<br />
“Vivendo normalmente”. Dona Dalva olhou para os galhos caídos na calçada, vestígios da chuvarada, e suspirou. As benditas duzentas. Maldita revista. Minha Nossa Senhora da Conceição. Pela primeira vez em quarenta anos de casamento, não sabia o que dizer.<br />
Ficaram os dois sem saber como continuar conversa. Seu Jonas, raspando com as mãos as migalhas da toalha, parecia outra pessoa. Nesse espaço de dias, tornara-se calado, parecia até que as palavras lhe custavam alguma coisa. E algo, uma faísca nova, brilhava no fundo dos olhos cansados.<br />
Dona Dalva chacoalhou a cabeça para livrar-se desses pensamentos, ralhou com o Major que queria entrar com as patas enlameadas e, puxando o martelinho de baixo da pia, começou a cuidar dos bifes do almoço. O cachorro deitou-se para esperar que ganhasse um deles.<br />
Depois do almoço. Duzentas palavras. Homem dentro de casa não presta. Minha santa Rita.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Peço perdão pela demora em postar este capítulo. Estive, nos últimos dias, envolvido no lançamento da nova edição da </i><b>Parênteses</b><i>, uma revista literária, projeto bonito que estou tocando com muita gente talentosa. Fica a dica -<a href="http://www.revistaparenteses.com.br">e o link</a>-, inclusive, para quem ainda não conheceu.<br />
<br />
E, ah!, faltam mais dois capítulos! Estamos quase, obrigado pela paciência ;)</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-32970230779053119452014-02-27T16:29:00.000-03:002014-02-27T16:29:11.856-03:00Duzentas<h2>capítulo quinto</h2><br />
O resto do dia seu Jonas passou na oficina, uma casinha de madeira erguida por ele nos fundos do terreno. Mas o que se produzia lá dentro, diferente dos quarenta anos de trabalhos manuais, era intelectual. O Major farejava ao redor das pilhas de materiais de construção, latas de tinta, tábuas desconjuntadas, canos furados e brinquedos velhos.<br />
O almoço foi rápido. Dona Dalva viu, desgostosa, o marido engolir a macarronada e voltar para a oficina antes que ela servisse a compota de figo. No meio da tarde, veio trazer um misto quente e tentou, sem sucesso, fazê-lo parar para descansar a vista. Só na hora do noticiário é que o marido apareceu na sala. Ele caiu exausto na poltrona, ela levantou de pronto:<br />
— Vou esquentar seu prato. Você não veio jantar, homem de deus!<br />
— Precisa não. Fiquei sem fome.<br />
Para dona Dalva, um marido sem fome dentro de casa era uma tragédia. Tivesse podado as árvores ou assentado uns tijolos, nada disso teria acontecido. Assistiram a tevê sem ouvir muita coisa, os dois preocupados –cada um por seus motivos– com a experiência. Dormiram sem dizer boa noite.<br />
E assim foi o próximo dia, e os próximos.<br />
A caderneta em que seu Jonas começara a escrever com letra caprichada já não era mais suficiente. As ferramentas abriram lugar na bancada para uma imensidão de folhas avulsas, todo papel que seu Jonas foi encontrando, onde rabiscava com empenho, usando lápis de marceneiro.<br />
Escrevia, riscava, rabiscava, apagava, re-escrevia, amassava, puxava uma outra folha, consultava as coladas na parede. Era um verão suarento e, com os dias, o empenho foi dando lugar à obstinação. Um dicionário foi esquartejado, as páginas riscadas espalhadas pelo chão.<br />
Mexendo as panelas no fogão, estendendo roupas no varal, dona Dalva parecia ver as ervas daninhas tomarem a horta, o verniz das portas perder o brilho. Como se uma ou duas semanas fossem suficientes para a casa ruir. Desabafava com a vizinha, homem dentro de casa –da oficina– não presta.<br />
Seu Jonas, agora com fúria, se consumia na busca das duzentas. Dona Dalva começou uma novena. O Major, indiferente conhecedor de duzentas palavras, seguia farejando e esperando bifes.
Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-59378513007439835792014-02-17T17:36:00.001-03:002014-02-17T17:36:42.931-03:00Duzentas<h2>capítulo quarto</h2><br />
Dona Dalva levantou-se assustada, de um golpe só, quando os primeiros raios de sol escorreram entre as cortinas; tinha perdido a hora. Vestiu às pressas o roupão de cetim lilás e enfiou o pé nos chinelos acolchoados. Só então notou que estava sozinha na cama. Seu Jonas, à mesa da cozinha, cortava umas fatias de salame, o café passado e pão recém comprado sobre a mesa. O Major, na varanda, deitado na posição de sempre, na esperança de sempre.<br />
— Dormi pouco essa noite. Fiquei pensando na melhor maneira de conduzir meu experimento.<br />
“Conduzir”, dona Dalva nunca ouvira o marido falar complicado assim. Respondeu com um suspiro vencido. Hoje, pelo jeito, não adiantaria nada mandar envernizar a porta da garagem ou trocar de lugar os quadros da sala.<br />
— Mas então, já até anotei umas coisas aqui na minha caderneta. O que eu quero é descobrir as palavras que eu preciso para sobreviver. Só duzentas, que nem o Major. E então mando pra revista minha história. Assim falando, parece fácil, mas vai precisar muita investigação.<br />
“Investigação”. Diante das explicações do marido, ela viu necessidade de defender seu pé atrás:<br />
— Não é que eu seja contra. Mas é que a gente leva uma vida simples. Essas coisas complicadas assim não sei, não.<br />
A frase terminou num silêncio, numa justificativa pela metade, que não comoveu nosso amigo Jonas. Razão, razão mesmo ela não tinha.<br />
— Mas eu vou fazer uma experiência com palavras! Que perigo pode ter nisso?<br />
Dona Dalva sabia –quarenta anos de casamento– que Inês já era morta. Perigo parece que não tinha mesmo. Então comeu em silêncio, fingindo interesse no plano que o marido, empolgado, apresentava. Duzentas palavras, que nem o Major. Deixa o homem. Veremos.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-65506803200098667742014-02-06T16:41:00.001-02:002014-02-06T16:41:15.649-02:00Duzentas<h2>capítulo terceiro</h2><br />
Depois de um longo banho para se limpar dos restos de tinta, seu Jonas ajeitou a porção de lasanha de modo a acomodar também a coxa de frango que a esposa servia. Enrolou com o garfo um fio de queijo derretido, mastigou com satisfação. A cerca do jardim, mesmo à noite, reluzia de tão branca. Dona Dalva suspirou aliviada: o que o marido precisava mesmo era serviço para ocupar a cabeça e um bom prato de comida. Mas não:<br />
— Tem que ter o seu nome, claro, senão eu não consigo te chamar. Mas só o nome mesmo, porque se colocar algum apelido vai ocupar lugar na lista. Não vou poder te chamar de "bem" nem de "mãe" porque aí são mais duas palavras, entende?<br />
— Ai, minha Santa Rita. Mas você ficou o dia inteiro com isso na cabeça?<br />
Sim, seu Jonas pensara o tempo todo na história das palavras. Estava firme. Chegou a algumas conclusões e traçou um plano simples: comprar um caderno e fazer uma lista com duzentas palavras. Em seguida, viveria com o vocabulário limitado por um tempo. Depois, talvez, mandasse um relato para a revista: um legítimo experimento científico.<br />
O Major veio deitar-se à porta, lambendo os focinhos do resto de comida que acabara de jantar. Amuado, o casal permaneceu quieto por todo o jantar. A mulher procurava meios de desencorajá-lo, pensava num trabalho ainda maior que lhe ocupasse o tempo, talvez fosse hora de construir um puxado na parte de trás da casa. Da boca do homem, o palito arrancou, além de um fiapo de manga, um lamento...<br />
— Mas não sei qual é a dificuldade que tem apoiar uma...<br />
... que ficou pela metade. A mulher não quis ou não soube responder. Quarenta anos de casamento. Assistiram em silêncio ao jornal. Dalva desligou a TV, Jonas disse que iria se deitar mais tarde. Ela esperou por ele enquanto rezava o terço e nada. Já iam altas horas quando sentiu que, bem devagar, o marido entrou debaixo dos lençóis.
Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-5927883268320581142014-02-03T14:35:00.000-02:002014-02-04T09:56:48.398-02:00Duzentas<h2>capítulo segundo</h2><br/ >
O Major ficou deitado ao sol enquanto o dono cortava a grama pela segunda vez em dez dias. Seu Jonas trabalhou quieto por toda a manhã, rádio desligado para poder se concentrar nas próprias ideias. Na hora do almoço, de volta à mesa, estendeu o prato para o bife e declarou, como quem anuncia que vai à busca de um novo continente:<br/ >
— Pois vou fazer um experimento científico!<br/ >
Dona Dalva mal tirou os olhos da frigideira, preocupada com o corte ruim que o açougueiro lhe havia vendido. O Major, corpo na varanda, cabeça no degrau, olhava para o fogão com a eterna esperança canina de que dali sairia um naco de carne para ele também.<br/ >
— Quero ver se eu consigo viver como o Major, sabendo só umas duzentas palavras.<br/ >
A mulher desligou o fogo e sentou-se à mesa, mais irritada com o manjar que se despedaçara ao ser desenformado do que com a ideia do marido, que –quarenta anos de casamento a ensinaram– haveria logo é de ser esquecida:<br/ >
— Larga de moda, homem. Vai querer latir que nem o cachorro também?<br/ >
Mesmo depois de almoçar debaixo de uma chuva de desencorajamentos, seu Jonas seguiu firme na sua decisão de buscar novos horizontes. Dona Dalva, recolhendo a louça, seguiu firme em dois pensamentos: o de que homem dentro de casa não presta mesmo e o de que a cerca precisava de uma pintura nova. Deitado na varanda, o Major, cujo rabo varria o piso avermelhado para lá e para cá, parecia não ter opinião nenhuma.<br/ >
Depois do manjar despedaçado, a dupla de homem e cão foi, num silêncio pensativo, à loja de ferragens atrás de tinta para madeira, ambientes externos.<br/ >
<br/ >
* * *<br/ >
<i>Caso não tenha lido -e caso interesse ler-, o primeiro capítulo da história foi publicado esses dias atrás <b><a href="http://acepipesescritos.blogspot.com.br/2014/01/duzentas.html">nesse post aqui</a></b>.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-12287622145542668382014-01-30T22:11:00.000-02:002014-01-30T22:11:25.199-02:00Duzentas<h2>capítulo primeiro</h2>
<br />
— Olha só, mulher, aqui diz que um cachorro entende duzentas palavras.<br />
Dona Dalva concordou, como aprendera com os quarenta anos de casamento, com um “u-hum” mecânico e não chegou a tirar os olhos da fatia de mortadela que puxava do embrulho. À mesa da cozinha, chinelos, calça social e regata do time do coração, seu Jonas folheava a revista que o motoqueiro jogara por cima do portão minutos antes.<br />
— Duzentas é bastante... Você fala tudo isso, Major?<br />
Era uma manhã nublada, quente e úmida. As folhas dos pés de jabuticaba absolutamente paradas. O Major, deitado com o corpo na varanda e a cabeça apoiada no degrau da porta, abanou o rabo com alegria. O vira-latas, muito grande e totalmente preto, a não ser pela barbinha branca que aumentava ano a ano, levantou os olhos tranquilos para o dono...<br />
— E eu, quantas palavras será que eu sei?<br />
... e o dono, pensativo, pousou a revista de ciências e curiosidades ao lado da xícara de café que esfriava. Dona Dalva terminou o sanduíche, juntou umas migalhas sobre a mão em concha e foi, como dizia, cuidar da vida, que não anda fácil para ninguém. Ainda não sabia muito bem o que fazer com o marido recém aposentado; aprendeu com a mãe que homem dentro de casa não presta. Talvez o mandasse cortar a grama.<br />
E o velho Jonas, segurando o café quase frio, continuou olhando para o cachorro esparramado na varanda. Agora já não era mais só um vira-latas, era um mistério.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Um conto em capítulos, para marcar a volta do blog à ativa; vou publicando -e dando uns retoques- ao longo dos próximos dias. Espero que gostem da saga do nosso amigo Jonas.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-52191359756341712542014-01-25T10:01:00.000-02:002014-01-28T15:46:36.422-02:00VoltarTenho, há tempos, ensaiado uma volta.<br />
Não foi só o <i>blog </i>que esteve às moscas; nem bilhete de porta de geladeira se vê mais aqui em casa. Os lápis andam abandonados. E se me perguntam o porquê, não posso apontar um culpado, não sei dizer um motivo em especial. Foi tempo de me calar, acho.<br />
Tenho, há tempos, ensaiado uma volta, ensaiei muitas coisas, mas acabo concluindo que quase todas são bobagens, tudo é vaidade. Pensei em mudar, em começar de novo, em inventar <i>marketing</i>, em contar sobre os milhares de acessos –saber que sou lido é uma coisa sempre assombrosa–: tudo vaidade. Volto porque sinto falta, porque gosto disso aqui, volto porque sinto que é tempo de voltar, e quem volta assim não traz na mala muitas explicações.<br />
Pregam-se os retornos triunfais, monumentais, vingativos até. Eu, de minha parte, prefiro o retorno tímido, quieto, sem triunfos ou fracassos. Só uma volta, uma entre essas tantas da vida. De longe, avisto a casa de sempre, o portão encostado, a fumaça de um café amigo e sorrio. É bom estar aqui.<br />
E obrigado. Sempre.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Só uma pequena concessão, se me permitem: o Acepipes ganhou <b><a href="https://www.facebook.com/acepipesescritos">página no Facebook</a></b>. Afinal, ver rostos amigos é sempre bom. E obrigado, mais uma vez.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-12102275193555892342013-03-26T10:47:00.000-03:002013-03-26T17:03:23.449-03:00P.S.Uma noite dessas<br />
colocou um capuz<br />
e saiu com uns papéis<br />
debaixo do braço<br />
<br />
E aí<br />
junto com esses cartazes<br />
de amarração para o amor<br />
com pagamento após o resultado<br />
pregou um outro que diz<br />
<br />
"mas que tipo de amor<br />
pode começar amarrado?"Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com19tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-82455691895161802702012-12-20T21:01:00.001-02:002012-12-20T21:04:12.156-02:00Palavras cruzadasDuas cabeças brancas debruçadas sobre duas xícaras vazias, uma caneta e uma revista: quem entra apressado no shopping certamente não percebe uma cena tão delicada. Tampouco eles, sentados a uma mesa do café, parecem perceber tanta pressa ao redor. De tempos em tempos, rompem o silêncio concentrado com alguma frase curta, tomam a caneta, escrevem. Fazem palavras cruzadas.<br />
Já há mais de cinquenta anos os dois formam uma boa dupla: ela entende de artes e português e ele, de geografia e ciências. Juntos, já enfrentaram muitas perguntas, preencheram espaços, descobriram respostas, conviveram com dúvidas. Grande afeição por outra pessoa, com quatro letras.<br />
O atendente, pouco atencioso, traz as coalhadas ainda dentro dos potes descartáveis fechados, o mel em embalagenzinhas individuais, como essas de manteiga ou geleia de hotel. Deixa tudo sobre a mesa, com duas colheres envoltas saquinhos plásticos. Enquanto ela tenta, os olhos quase fechados, puxar da memória a poeta polonesa que ganhou o Nobel, ele abre umas das embalagens, derrama numa espiral o mel sobre a coalhada, desembrulha uma colher e coloca em frente dela. Em seguida, prepara sua própria porção.<br />
Depois de discutirem brevemente sobre o cantor caribenho precursor da bossa nova, passam um bom tempo calados. É um silêncio é de harmonia. Numa parceria longa como essa é preciso somente um olhar para se pedir a caneta, um sinal leve para dizer que não se sabe a resposta. Pela porta do shopping, mais gente vai entrando apressada, com fome de algo que a pressa não saciará. Ela recusa uma segunda rodada de café, se tomar outra xícara não conseguirá dormir à noite. <br />
Desenhando com capricho a cauda elegante de um R, ele preenche o último quadradinho do dia. Levantam a cabeça ao mesmo tempo num sorriso satisfeito. Ela paga a conta.<br />
Quem sai apressado do shopping certamente não percebe uma cena tão delicada: caminham em direção de casa, ele apoiando-se numa bengala e ela carregando uma revista de palavras cruzadas. Com as mãos que sobram, seguram um ao outro.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com14tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-1553419777693261602012-12-10T18:34:00.002-02:002012-12-12T10:46:49.985-02:00A primeira carta de um pai<br />
Ontem amanheceu um domingo quieto e fresco depois de dias de calor escaldante. Depois de tomarmos café, eu olhava distraído a neblina se dissipando lá fora e não foi preciso palavras: bastou que sua mãe chamasse meu nome para que eu soubesse que você existia. Bastou que ela me olhasse com olhos de mãe para que eu soubesse que serei pai.<br />
Por um segundo não acreditei na notícia, e então meu coração me convenceu do que meus olhos estavam vendo, do que meus ouvidos não precisaram escutar. Não me lembro de alguma vez ter chorado tanto. Serei seu pai.<br />
Já faz um tempo que a casa parece vazia. Embora sua mãe seja ótima companhia, venho sentindo falta de alguém e, embora seja uma companhia até que esforçada, sei que eu já não sou mais tudo o que ela espera encontrar depois de um dia de trabalho. Mas não é só um vazio, é o seu lugar que já vinha se criando.<br />
Quando primeiro abrir os olhos (sua mãe e eu estaremos lá), não vou mentir: você vai encontrar um mundo difícil de entender. Dizem que os tempos andam complicados, que as coisas não são mais as mesmas, dizem até que é loucura botar filhos neste mundo. Mas não se deixe preocupar muito, não: todos os tempos, cada um a seu modo, foram complicados. A maldade vai se reinventando de época em época, mas a Verdade continua a mesma desde sempre. É um mundo cheio de lugares lindos e pessoas incríveis, você vai ver.<br />
Espera só até conhecer tantos amiguinhos, tanta gente que desde ontem tem emocionado à sua mãe e a mim com tantas demonstrações de carinho. Espera só até pegarmos nossos livros e eu te contar tudo o que aprontaram o Peter Pan e o Capitão Gancho. Espera só -espera só!- até seu avô imitar o urso Baloo num dia em que você dormir na casa dele, e até ouvir o outro avô cantando um samba do Chico Buarque feliz da vida, e as avós fazendo bolos e doces pra comerem escondidos antes que alguém descubra. Espera só, minha criança querida, até passearmos por uma rua todinha tomada de ipês floridos de dourado, sentindo o vento gostoso de um fim de tarde. Espera só até irmos ao zoológico. Espera só até você pegar no sono olhando para aquela imensidão de doçura que são os olhos azuis da sua mãe. É tanta coisa que não cabe em todas cartas do mundo...<br />
Umas semanas atrás, arrumei o presépio aqui em casa. São umas figuras pequenininhas, um burro, uma vaca, dois carneiros, um pastor, três reis, um anjo, um pai, uma mãe e uma manjedoura ainda vazia. Uma chama tem ficado acesa todas as noites, velando pelo Menino que está para chegar. Quis o Menino que também minha casa se tornasse digna de uma espera tão abençoada. Agora, aqui também temos uma manjedoura preparada. Agora, aqui também esperamos uma criança.<br />
Não se precisou de palavras. Bastou que sua mãe me olhasse de um certo jeito para que eu soubesse que minha vida está mudada para sempre.<br />
Amo você desde o seu primeiro momento e amarei até o meu último.<br />
Seu pai.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Há uns meses atrás, com uma carta, acabei tirando, por preguiça, um tempo do blog. Hoje, outra carta, com um motivo muito mais nobre, me deu motivo para voltar.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com22tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-49205191274871839412012-08-31T00:07:00.000-03:002012-08-31T08:08:48.276-03:00Uma carta meio confusa<div>
Tem um conto do Borges -talvez um relato verídico, vai saber- em que ele senta ao lado de um homem a beira do rio e se dá conta de que o outro é ele mesmo, muitos anos mais novo. E então é tomado primeiro de estranhamento, depois de uma vontade urgente de prevenir sobre o futuro e, por fim, da serenidade de que o que há de ser, será, e que seja. Uma boa história, me pego pensando nela.<br />
Se bem me lembro, você deve ser agora um menino tímido, de pouca conversa e muita imaginação. Deve estar relendo alguma parte do Sinbad -se não me engano, é da terceira viagem que gosta mais- ou folheando um volume qualquer da enciclopédia. Um menino meio constrangido por gostar de folhear enciclopédias no tapete da sala.<br />
Já eu estou aqui, ainda tímido e de pouca conversa. Esperei o prédio inteiro ficar quieto para tomar um copo de chá e ouvir um concerto do Beethoven. Meio constrangido por gostar de ouvir música clássica no trabalho. As coisas mudam, mas a gente não.<br />
Daqui a pouco será meia-noite: dia de aniversário. Sendo meio dramático, é o trigésimo inverno. Sentado diante das estantes onde já não cabem mais livros mas se vai dando um jeito de empilhar, posso ouvir minha (nossa?) mulher dormir no quarto em frente. Tenho aprendido a silenciar para ouví-la.<br />
Quando fizer trinta anos, daqui a pouquinho, você será assim: um sujeito meio calado, pensativo talvez além da conta, um homem cheio de "meios" e "talvezes" (com um tanto também de certezas, mas as certezas costumam ser mais silenciosas que as dúvidas).<br />
Veja você. Esses dias mesmo, a família estava toda reunida, umas vinte pessoas, um domingo de inverno sem uma nuvem no céu. Depois da sobremesa, você levou uma cadeira para o jardim e ficou ali, olhando de longe, como quem assiste a um filme bonito. E pensando que nunca mais verá aquilo novamente, que amanhã as coisas já não serão as mesmas, as pessoas serão diferentes, alguém talvez até esteja junto de Deus. E foi ficando tomado de uma ternura tão grande...<br />
É uma carta confusa, absolutamente desnecessária. Uma coisa até meio fútil. Mas, enfim, você será o tipo de sujeito que faz essas sentimentalidades de vez em quando. Talvez, em outra ocasião, eu escreva outra carta, vinte ou trinta anos mais velho, e sorria da minha ingenuidade.<br />
Para que ficar contando tudo se daqui a pouco você vê com seus olhos? A vida é agora, não é mesmo isso que estou tentando dizer?<br />
Pois tem gente que diz que o tempo corre, que mal brindou o novo ano e quando vê já é Natal. Também tem os que reclamam que os dias se arrastam e pedem que tudo passe logo de uma vez. Mas, sei lá, eu diria que durou o que deveria durar. Trinta anos que duraram exatamente o que deveriam durar, nem mais e nem menos. E isso é bom.<br />
De repente me deu uma vontade enorme, urgente, de agradecer. A vida é boa.<br />
Chegou a parte que você mais gosta do concerto. Meia-noite. Feliz aniversário.</div>
Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-18632081281946113662012-08-21T09:57:00.000-03:002012-08-21T13:35:20.407-03:00Peixe douradoLembro de ter lido uma vez, coisa dessas com que se esbarra por aí, que um peixe dourado deixado num aquário sem luz perde a cor, acaba só um vulto esbranquiçado e sem brilho. Lembro de ter pensado que tem algo de trágico e muito profundo nisso.<br />
Se um peixe dourado deixa de ser dourado, o que resta dele?<br />
No entanto, não me lembro se li ou inventei que, se devolvido ao antigo aquário iluminado, o peixe retoma sua cor, torna-se de novo o que nasceu para ser: dourado.<br />
Assim são os peixes, assim somos nós.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-66731731745677136332012-08-20T11:07:00.001-03:002013-03-26T10:48:18.529-03:00Quanto tempoNo caminho, pensei:<br />
"há quanto tempo não vejo<br />
uma garça no céu?"Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-71685373365174892292012-06-10T14:18:00.001-03:002012-06-13T08:48:07.876-03:00São essas vezes<br />
A vez em que cheguei em casa, empolgado com um mundo novo que se abria diante dos meus olhos de menino, e tirei da minha mochila a cartilha ainda cheirando a nova e abri na primeira lição e li para minha mãe, encantada, as primeiras palavras da minha vida, que tinha acabado de aprender naquela tarde de verão.<br />
A vez quando, entre os raios de sol que pendiam dos galhos de uma araucária, eu vi uma gralha azul e me senti abençoado e, quando duvidaram de que eu tinha visto em plena cidade algo tão raro a ponto de se tornar só uma história que se ensina nas escolas, tive a segurança de responder simplesmente "eu senti que era".<br />
A vez em que primeiro subi na minha moto e fomos para a estrada e senti a fragilidade da minha vida e a liberdade de não estar somente passando pela paisagem, mas fazendo parte dela, sendo filho do vento, gritando de excitação dentro do capacete debaixo da chuva leve que caía.<br />
A vez quando, numa quarta-feira sem nada de especial, andando pela rua num final de dia eu me senti subitamente feliz de uma felicidade tranquila e serena, subitamente consciente, e sorri, sem uma testemunha sequer, o sorriso mais satisfeito que lembro de ter dado em minha vida e que desde então, ainda esse mesmo sorriso, volta ao meu rosto em certas ocasiões.<br />
A vez na qual, depois de ter resistido a uma tentativa de assassinato numa viagem solitária, corri meio continente de volta para casa e encontrei minha mãe na ainda de pijama, com um bule de café fumegante no fogão e, sentado à mesa, no silêncio de quem não sabe ou não quer dizer nada, senti como nunca a força delicada do amor de quem nos cria para entregar ao mundo.<br />
A vez em que eu, entre amedrontado e ansioso, diante dos meus amigos e da minha família, olhava para as portas da igreja que se tinham acabado de abrir e ela caminhou em minha direção e eu soube que não desejaria da vida, daquele em momento em diante, nada mais que não seja dedicar àquela mulher até o último suspiro que Deus me permitir dar neste mundo.<br />
A vez em que, mesmo depois de já ter ouvido várias vezes, eu realmente ouvi a Nona Sinfonia de Beethoven e senti o corpo arrepiado e chorei e agradeci em silêncio Àquele que deu ao Homem a capacidade e a sensibilidade para criar coisas tão maravilhosas.<br />
A vez numa manhã nublada e um pouco fria em que encontramos um casco de tartaruga entre os galhos que o mar arrastou para a praia numa noite de tempestade e pensei em quanto não havia vivido aquele animal, em que segredos submarinos não guardava aquele casco silencioso, até que viera morrer nas areias perto da casa de meu pai.<br />
A vez, depois de meses longe da escrita, anestesiado por falta de tempo, de inspiração ou mesmo de vontade, em que resolvi checar, num gesto meio mecânico, as redes sociais e chorei ao encontrar uma mensagem de que uma pessoa, uma mãe de família que me leu e lembrou-se de um sonho e começou ela também a escrever.<br />
São essas vezes, essas pequenas ocasiões luminosas, muito mais que os grandes intervalos entre elas, que nos fazem quem somos. São essas vezes, e ainda muitas outras de que não me lembro agora e umas tantas sobre as quais, de tão sublimes e fugidias, não conseguirei jamais escrever.<br />
São essas vezes.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com19tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-47395528346443222792012-03-15T22:01:00.000-03:002012-03-16T10:49:45.277-03:00Aniversário<br />
Sempre assim. Conforme vai chegando perto o aniversário, seu Glicério começa a sofrer já por antecipação; deve ser o tal inferno astral.<br />
É que Dona Eulália e a Marcinha sempre inventam alguma. Começa com "só um bolinho simples porque fica chato se as pessoas aparecerem e não tiver nada pra oferecer" e termina com "tive que encomendar mais quinhentos salgadinhos correndo na Jucélia senão iríamos passar vergonha". Sempre assim.<br />
E está lá nosso amigo Glicério na poltrona com o jornal do dia -um dia como qualquer outro-, fingindo que não ouviu tocar o telefone até que toca coisa pior: a campainha. Dona Eulália tenta acalmar, explica que só chamou os mais de casa, que fica chato não convidar pelo menos o tio Herculano, a prima Doroti, a Elisa com as crianças, as colegas de hidroginástica e as senhoras do bazar da igreja.<br />
O problema também é que, junto com os convidados, chegam os embrulhos. Seu Glicério é da opinião de que chega uma altura na vida de um homem em que os presentes viram um atentado à dignidade. Abre um embrulho:<br />
— Que é isso?<br />
— Um sapatênis, querido.<br />
— Sujeito que não quer usar sapato mas não tem colhões pra ir trabalhar de tênis e aí inventa essas porcarias. Não uso.<br />
Abre outro:<br />
— Que é isso?<br />
— Ai, papai, que camisa linda. Bem da moda como andam usando!<br />
— Ah, pensei que era uma daquelas toalhas de piquenique. Não uso.<br />
Seu Glicério é homem aberto, gosta das cartas bem postas na mesa. Por que não um bom par de sandálias, uma boa camisa branca?<br />
Até que chega a hora do parabéns. Ele até tenta explicar que, francamente, faz mais de trinta anos que não está mais em idade de parabéns. Dona Eulália já vai acendendo a velinha, apagando as luzes, passando a câmera para algum sobrinho, abraçando o marido.<br />
Pronto, passou, agora é só voltar para a poltrona e comer um pedaço de bolo. Mas aí o Meira, sempre o Meira, puxa:<br />
— Com quem será, com quem será... ?<br />
Dona Eulália fica toda envaidecida, solta uns tapinhas no ar e uns risinhos envergonhados. O Meira bate palmas e canta com sua voz de tenor de banheiro. A Marcinha corre para acudir o pai e pegar o remédio da pressão, aquele de colocar debaixo da língua. Francamente.<br />
No fim da noite, dona Eulália nota seu Glicério quieto e vai dormir satisfeita, pensando que o deixou emocionado com a festinha. Na verdade, ele está é aflito pensando que falta só um ano para a próxima.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Era outro que andava sumido, seu Glicério. <a href="http://acepipesescritos.blogspot.com/search/label/seu%20Glic%C3%A9rio">Clique aqui</a> para ler as outras aventuras desse nosso amigo.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-454188591973602392012-02-28T15:45:00.001-03:002012-02-28T15:46:38.613-03:00iPadEsses dias mesmo eu arrastava a poltrona da sala para ver se melhorava o sinal do <i>wi-fi</i> quando o cachorrinho da vizinha ganiu e aparentemente atirou-se pela janela. Na verdade, era o capitão Joe Náufrago, que tocara a campainha no apartamento errado. Quase me derrubou com o abraço caloroso e o bafo de rum. A perna de pau deixou um rastro vermelho e pegajoso no tapete da sala.<br />
— Que mil tubarões famintos me persigam! Que tipo de traquitana diabólica é essa, rapaz?<br />
— É um iPad, capitão. Por aqui eu posso ler as notícias, conversar com...<br />
— Serve para aparar tiros de mosquete?<br />
— Ainda não, mas quem sabe numa próxima vers...<br />
— Com mil prostitutas zarolhas, esses ratos sarnentos de água doce nunca fazem um serviço decente. Vamos logo, rapaz, deixe-me ver isso mais de perto.<br />
Imaginei que isso não faria muito bem à tela, mas os anos de convivência me ensinaram que não é prudente negar um pedido a um pirata com um gancho afiado no lugar da mão. Tentei não me encolher quando ouvi aquele barulho de unhas no quadro negro.<br />
— Mas por que, pelos ossos da minha mãezinha, não funciona?<br />
— Deve ser por causa do gancho, capitão. Tente com a outra mão porque a tela precisa do toq...<br />
— Maldito aparelho imprestável do inferno!<br />
Em seguida, o iPad foi se juntar ao cachorrinho lá embaixo no pátio. O capitão me explicou que estava indo ao bar da esquina jantar umas coxinhas com catupiry e -palavras dele, não me entendam mal- dar uns tapas no traseiro daquela belezinha que vem servir o rum. Resolvi aceitar o convite. Ele pode não ter senso de misericórdia ou sinal capacitivo na mão, mas no fundo é um bom sujeito.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Perguntaram bastante do <a href="http://acepipesescritos.blogspot.com/search/label/joe%20n%C3%A1ufrago">capitão</a>, pode onde andava, se tinha naufragado de vez. Olha, esteve desaparecido um bom tempo e resolveu dar as caras barbudas agora, não sei dizer por onde andou. Mas também não sou eu que vou perguntar. </i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-48377899076412197382012-02-14T11:58:00.000-02:002012-02-24T11:36:41.174-02:00AliançaPor um rumo desses que tomam as conversas de bar, a mulherada acabou falando sobre aliança, quem e quem não tira para isso ou aquilo.<br />
A Selma tira para lavar louça, fazer limpeza, passar creme nas mãos. As mãos da Elza incham bastante no calor, então já viu. A Rute tira para dormir e, quando vê, saiu de casa e esqueceu de colocar de volta. A Jussara tira -e joga em seguida- toda vez que briga com o Palhares. E a Ângela não tira nunca.<br />
Do jeito que ela contou pareceu, inclusive, uma questão de orgulho. Nunca. Colocou no dedo quando se casou com o Rubens e desde então deixou ali, onde deve ficar, sentenciou. Ué, com o tempo a gente já nem lembra que está usando, vira parte do corpo. As amigas implicaram, tentaram achar umas excessões, mas a Ângela não sem lembrou de nenhuma: não tirou nunca, para nada.<br />
De alianças, o assunto foi para joias, de joias a sapatos e a noite passou divertida.<br />
O assunto era bobo mas, quando se despediram na porta do lugar, a Ângela estava ainda com a história das alianças. Essa coisa de nunca ter pensado num assunto e de repente ele aparecer na nossa cabeça. Para ela fora sempre tão natural, por que será que as amigas se incomodavam?<br />
Assim que o manobrista entregou as chaves, ela entrou apressada no carro e tirou a aliança do dedo. Olhou o anel, o mesmo de dez anos atrás e o mesmo até o fim da vida. Um círculo perfeito de ouro. O lado de fora riscado pelo dia a dia, o lado de dentro intacto com o nome do Amauri. E tantas histórias.<br />
Amauri?<br />
O carro de trás buzinou e ela teve que arrancar, apressada. Amauri?<br />
Estacionou um pouco mais para frente e olhou de novo para o anel na palma da mão: "Amauri". Mas como...? Quem diabos é Amauri? Como isso veio parar no meu dedo?<br />
Chegou a pensar que estava louca. E se toda a vida eu chamei meu marido pelo nome errado? E se tivesse um amante chamado Amauri, um que fora atrevido a ponto de lhe dar uma aliança com o nome? Não, quanto absurdo. Era Ângela, mulher realizada, mãe de família feliz, casada com o Rubens. Ângela, que não tira a aliança nunca, para nada.<br />
Quase bateu o carro umas duas vezes.<br />
Entrou no apartamento e fez questão de cumprimentar pelo nome:<br />
— Oi, Rubens.<br />
E o marido respondeu da cozinha, a mesma voz de sempre, era o Rubens mesmo. Quando se beijaram, a Ângela viu que ele tinha esquecido de tirar o crachá da empresa: Rubens.<br />
Passou a noite se revirando na cama, agoniada atrás de alguma explicação. No dia seguinte, quando saiu para trabalhar, o Rubens estranhou quando ela gaguejou um "bom dia, Am... amor", a esposa que nunca foi desses apelidinhos.<br />
Até hoje a Ângela não descobriu. Todos os dias, convive com aquele mistério no dedo, ainda não criou coragem para tirar a aliança de novo. E por via das dúvidas tem ficado em silêncio na cama, na hora do vamos ver, com medo de que escape o nome proibido. Vai saber.<br />
<br />
* * *<br />
<i>Estive de férias uns tempos. Férias </i><i>offline é sempre bom. E, como forma de me desculpar pelos atrasos, hoje são -faz tempo que isso não acontecia, hein!- dois posts.</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com14tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-67345301834550982642012-02-14T11:50:00.002-02:002012-02-14T11:50:20.826-02:00Debaixo da carteira<b>(os livros e eu, cap. vii)</b> <br />
<br />
Talvez seja só esse negócio de achar que as coisas de antes eram melhores, mas aquela edição em três grandes volumes -azul, vermelho e verde-, com letras espaçosas e papel fosco e amarelado que um dia um amigo me emprestou era muito mais bonita que essas de hoje.<br /> Era a sexta série, e eu ainda não sabia que tinha acabado de conhecer, num colégio novo e numa cidade nova, os amigos que me acompanhariam pelo resto da vida. Não sabia que aqueles livros virariam filmes e nós esperaríamos -um pouco ansiosos, um pouco temerosos- cada lançamento. Não sabia também que teria pesadelos com logaritmos umas séries adiante, então li <i>O senhor dos anéis</i> nas aulas de matemática mesmo, escondendo os livros embaixo da carteira.<br /> Eu já estava ali mesmo, o tempo demorava pra passar mesmo, então me pareceu uma boa trocar números, formas e fórmulas por elfos, anões e hobbits. Espero que meus filhos não leiam isso, mas lembro de ter copiado umas respostas da menina que sentava do lado -secretamente apaixonada por mim, me contaram mais tarde- para poder terminar de uma vez o capítulo em que o Frodo fugia dos uruk-hai.<br /> Eles corriam o risco de virarem comida de orc, e eu corria o risco de reprovar em matemática, eles se escondiam do Olho que Tudo Vê, eu me escondia do professor de matemática. Cada um com a aventura que merece, enfim.<br /> Emendei um volume no outro em poucas semananas e, quando acabou, fiquei me sentindo sozinho por uns dias. Tinha mergulhado num universo e, de repente, voltado à tona. Porque tem disso: livros que, quando acabam, nos deixam sozinhos.<br /> No fim do ano letivo, eu já lembrava pouco de Bháskara, mas podia dizer de cor uma meia dúzia de canções élficas.<br /> (e minha mãe quase me matou quando chegou o boletim.)Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-26332592280565588442012-01-16T15:12:00.002-02:002012-01-16T15:15:24.260-02:00Menino de engenho<b>(os livros e eu, cap. vi)</b><br />
<br />
Eu era um menino franzino e tímido. Tímido a ponto de ficar vermelho só de ouvir meu nome na chamada, a ponto de só querer da professora que me deixasse passar despercebido. Pois chegou um dia em que tudo deu errado. Sempre chega.<br />
Era comecinho de ano, quarta série. Eu tinha um livro na mochila, mais um desses amarelados e de páginas meio caindo que eu pegava escondido nas coisas dos meus pais. A professorava passava, acompanhando a lição, e viu entre o zíper aberto da minha mochila uma metade de título que, imagino, logo reconheceu. Uma onda vermelha me subiu pelo pescoço quando ela pediu para ver e pegou das minhas mãos <i>O menino de engenho</i>, José Lins do Rego.<br />
O que veio em seguida foi um horror. Eu podia sentir o rosto esquentando, as orelhas cozinhando conforme ela mostrava à classe meu exemplo, elogiava meu interesse por ler um livro daqueles sem que fosse pedido na escola, contava da sua própria experiência como leitora e –mais tarde descobri– esposa de escritor. Devolveu-me o livro com os olhos molhados e um sorriso dos grandes.<br />
Superei rápido meu trauma de ter sido notado pela classe inteira e ficamos bons amigos. Lembro do clube de leitura –tínhamos que ler um livro a cada quinze dias– que ela organizou com doações que trouxemos de casa. Lembro das várias lições de redação, e lembro particularmente de uma descrição onde eu dizia do mar azul como safira. Fico pensando que tipo de criança de onze anos escreve "azul como safira"... eu devia ser meio árcade quando era pré adolescente.<br />
Do menino de engenho, mais que a história, que o avô coronel, que os castigos, mais que os canaviais sem fim, que o doce da cana, que o cangaço ficou esse ano letivo com a professora que me descobriu apaixonado pelas letras.<br />
Porque os livros têm isso também: fazem viver histórias não só dentro das páginas, mas também fora delas. Às vezes o que fica não é nem um personagem, um enredo ou um trecho em especial, mas a lembrança de um passeio na livraria, de uma tarde numa poltrona confortável, de uma conversa com quem também leu.<br />
Existem essas pessoas que cruzam nosso caminho, ficam só uma temporada e já seguem para outras paragens. Pois se um dia eu conseguisse fazer uma lista justa, que não esquecesse nenhuma delas, a professora Maria Aparecida, da quarta série, iria para as cabeças.<br />
Pessoa maravilhosa. Calhou a vida de nos encontrarmos e, se um dia eu escrever algo que valha, deverei a ela.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-8915339658982178782012-01-02T20:31:00.000-02:002012-01-02T20:38:19.993-02:00Padre Amaro<b>(os livros e eu, cap. v)</b> <br />
<br />
— Pode escolher o livro que você quiser.<br />
Minha mãe não sabe o problema que me inventou quando disse isso. Eu tinha me comportado bem na visita a uma tia avó, o ônibus parecia que não chegaria tão cedo, e então ela decidiu entrar na livraria para me fazer um agrado. Fiquei ali, esse problemão nas mãos, enquanto ela foi procurar umas revistas de <i>tricot</i>.<br />
O livro que eu quiser. Hoje em dia, leitor mais experiente, tenho uma lista de pretendidos que posso sacar do bolso numa emergência do tipo "pense rápido" como essa, mas na época eu fui pego desprevenido. Numa livraria com milhares, qual?<br />
Logo nas primeiras prateleiras, um me prendeu os olhos. Olhei por tudo, pensei em mais uma meia dúzia de outros, mas sabem como é: o primeiro palpite é sempre o certo. Foi o tempo de pagar e correr para o ônibus prestes a sair do ponto final.<br />
Caí no sofá de tênis e tudo e tirei da sacolinha <i>O crime do padre Amaro</i>, do Eça de Queirós.<br />
Eu ainda não ligava muito para orelhas e contra-capas, comprei pelo título mesmo –e um pouco pelo meu avô, também Amaro. Imaginei uma história de suspense, um detetive, um ajudante atrapalhado, um assassino acima de qualquer suspeita, essas coisas. Que será que tinha aprontado o tal padre? <br />
Nada disso. O que eu tinha ali era um livro português de mil oitocentos e tanto, linguagem da época, crítica pesada à sociedade e ao clero, personagens moralmente fracos, um padre que engravida uma mulher. Só agora, quase vinte anos depois, fui descobrir que é um livro emblemático, o primeiro do realismo português, uma coisa mesmo polêmica. Mas eu tinha dez anos e só queria uma história inofensiva de detetive. Mas nada disso.<br />
Mandei ver mesmo assim.<br />
Com o tempo, dos livros vão sobrando pedaços na nossa memória. Desse, lembro logo de cara das noites em que o padre Amaro acorda e dá com dois olhos em brasa espreitando; tudo escuro e só aquelas duas luzinhas malignas no pé da cama. Também tinha essa moça Amélia, uma coitadinha que, em meu parecer inocente da época, entrou de gaiato na história. Tinha uma pensão em que se subia uma escada para entrar, tinha umas senhoras fofoqueiras mui vigilantes da moral e dos bons costumes. Tinha um outro padre que morreu de apoplexia –e até hoje eu não sei o que é apoplexia– e tinha muitas palavras complicadas.<br />
Li de um jeito meio clandestino, ressabiado de que me descobrissem com algo impróprio para um menino de dez anos. Terminei com uma sensação boa: tinha lido um livro de adultos, já não era mais tão bobinho assim.<br />
E uma coisa eu confesso: até outro dia atrás eu ainda tinha medo de acordar de madrugada e dar com dois olhos vermelhos me vigiando. Deuzolivre.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-48390786813582761942011-12-14T16:29:00.002-02:002011-12-14T16:29:48.726-02:00Cinco anosOutro dia, uma cliente do restaurante veio falar com minha esposa de uns
textos que descobriu na Internet. Os elogios da senhora foram sinceros.
Quando ouviu, surpresa, o nome do <i>blog</i>, a resposta foi um sorriso e um
"é o meu marido quem escreve essas coisas".<br /> Acho que nunca vou deixar de me surpreender.<br /> Hoje
o Acepipes Escritos completa cinco anos. Fosse uma criança, já estaria
correndo pela casa, virando baús de brinquedos, pedindo para ver pela
milionésima vez o filme predileto, aprendendo as primeiras letras. Mas,
como é um blog, a história é outra.<br /> Aqui registrei minha viagem,
minha maior aventura. Aqui vivi tempos amargos e vi chegar o tempo da
felicidade. Aqui contei de quando comecei a namorar e de quando me
casei. Aqui me despedi da minha avó, lembrei da minha infância, pensei
no futuro. Aqui inventei histórias personagens vidas começos finais.
Aqui conheci muita gente e me deixei, como em outro lugar nenhum, me
conhecer.<br /> Nos últimos tempos, a coisa tem acelerado de uma forma
que anda difícil, para mim tão tímido, apreender. Sou demorado com
certas coisas.<br /> Têm surgido amigos no Facebook, seguidores no
Twitter, leitores no feed, várias citações em muitos lugares. Alguns <i>
posts </i>ganharam uma repercussão nas redes sociais que já não consigo mais
acompanhar. Bati a marca das duas mil visitas num dia só. Fui citado em
grandes blogs e por grandes pessoas. O Acepipes foi usados por
professores em sala de aula. Fui convidado para falar sobre escrita numa
das universidades mais importantes do país. Pediram que eu autorizasse
publicar textos em revistas e antologias. Recebi até proposta de casamento.<br /> Desculpem se pareço pedante, mas é que eu só enumero as coisas assim porque fico meio assombrado.<br /> Nunca
fiz nenhuma propaganda, nunca criei correntes, nunca repassei nada,
nunca tive pretensão de enfiar nada pela goela abaixo de ninguém. Só escrevi. Só escrevi, e
vocês é que estão fazendo o milagre acontecer.<br /> Vocês que talvez
nem tenham ideia do quanto, no aparente silêncio do lado de cá, eu
estimo cada um. Vocês que talvez não tenham nem ideia de quantos nomes
eu já guardei, de quantas histórias pessoais eu já acompanhei.<br /> Vocês são o milagre.<br /> E eu só queria agradecer, muito, e de coração.<br /> (E eu também queria que existisse uma palavra maior que "obrigado".)Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com21tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-15308860097116050162011-12-12T21:24:00.001-02:002011-12-12T21:31:30.628-02:00Dez Negrinhos<b>(os livros e eu, cap. iv</b>)<i> </i><br />
<br />
<i> Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;<br />
Um deles se engasgou e então ficaram nove.<br />
-Agatha Christie</i><br />
<br />
Eu devia ter, sei lá, uns
dez anos e, depois do almoço, peguei um livro antigo do meu pai,
daqueles amarelados e com as páginas meio caindo. Vou admitir que tinha um certo
preconceito com aqueles livros porque eram amarelados e tinham páginas
caindo, mas estava cansado dos meus de sempre –Gulliver, Sinbad, Mogli– e
resolvi arriscar. A capa era feia. Chamava-se <i>O caso dos dez negrinhos</i>. Comecei a ler, como quem não quer nada.<br />
Eletrizante, essa é a palavra: eletrizante.<br />
Uma mansão numa ilha. Dez pessoas estranhas. Assassinato. Sobram, então, nove pessoas. Depois, oito e sete e seis.<br />
Era
época de aula de manhã e nada para fazer à tarde –a lição de casa eu
copiava, rapidinho antes de entrar na sala, de uma menina apaixonada por
mim, que com dez anos eu era meio cafajeste, depois tomei jeito–, então
pude me dar a um luxo que hoje em dia é raro: li tudo de uma sentada
só. O dia já estava escurecendo quando fui chegando ao final do
mistério, fervendo a cabeça com um monte de soluções e vislumbrando uma
promissora carreira de detetive particular.<br />
Cinco pessoas. Quatro. Três.<br />
Mas eis que. Eis que.<br />
Quando
virei uma página, dei com um trecho que, ué, pareceu meio familiar.
Virei mais a próxima e mais outra: já tinha lido. Então notei que o
livro tinha um defeito: trocaram na gráfica os últimos cadernos de
impressão. Então, ao invés das últimas páginas, eu tinha umas repetidas
da metade. Necas de final.<br />
Como o bendito devia ter sido
comprado há uns vinte anos, era tarde demais para ir à livraria e pedir
para trocar. Quando meu pai chegou em casa, corri para perguntar e ele
me respondeu só uma risada divertida. Também não sabia o final.<br />
Até hoje não sei quem é o assassino. Ficou esse trauma na minha vida de leitor.<br />
E enquanto eu escrevia isso me veio à cabeça a ideia de guardar o livro para pregar a mesma peça no meu filho.<br />
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* * *<br />
<i>Este já foi publicado aqui faz um tempo, mas é que entra certinho nesta série...</i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-81941038909319909612011-12-09T16:29:00.001-02:002011-12-09T17:36:48.039-02:00Compras de Natal<i> baseado num dos cartões do sempre</i><br />
<i> surpreendente <a href="http://www.postsecret.com/2011/12/sunday-secrets.html">Post Secrets</a></i><br />
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Acontece bastante, já deve ter se passado com quase todo mundo: num
mercado, numa loja, num restaurante, alguém nos chama a atenção, sabe-se
lá o porquê. E aí acompanhamos, de canto de olho e só por uns minutos
ou até uns segundos, aquele amigo. Uma coisa silenciosa, meio
clandestina. Adivinhamos um pouco da história, inventamos outro tanto, desejamos
boa noite, bom descanso, que chegue bem em casa. Um tipo de afeto, uma
certa curiosidade, alguma simpatia...<br />
Que foi bem o que aconteceu
com uma moça enquanto empurrava o carrinho pelo supermercado. Já
comprara um litro de leite, umas frutas e a comida do gato e agora
andava pelos corredores, tentando resolver a sensação de que faltava
alguma coisa.<br />
Entre as montanhas de panetones, ela cruzou com uma
mulher de meia idade, gestos vivos e olhos cansados, cabelos precisando
de um retoque. Uma mulher dessas que, de bater os olhos, sabe-se que é
mãe, não só dos filhos que têm -ou talvez nem tenha-, mas de muita
gente. Empurrava um carrinho cheio de brinquedos em direção dos caixas.<br />
Filhos? Netos? Crianças carentes, órfãos, vizinhos pobres...?<br />
A
moça largou da sensação de faltar algo -quase nunca falta- e decidiu
também ir ao caixa. Ficou ali, escondendo um sorriso e fingindo que
olhava um panfleto, enquanto via passar uns carrinhos, uma boneca, um
urso de pelúcia, uma locomotiva, uns jogos de montar, um disquinho de
músicas natalinas.<br />
Depois da senha, o garoto do caixa falou
indiferente que o cartão não foi autorizado. A senhora pareceu olhar
para cima e pediu que tentasse no crédito. Foram uns segundos
angustiantes até o segundo não.<br />
A senhora agradeceu e saiu da loja de mão vazias.<br />
Mas
então a moça foi rápida; na mesma hora soube o que fazer. Sempre
sabemos, só precisa a coragem. Pediu ao caixa que passasse todos os
brinquedos deixados e pagou por tudo. Correu empurrando o carrinho cheio
de brinquedos até o carro onde a senhora, de olhos vermelhos, já dava a
partida e bateu no vidro.<br />
O motor engasgou e morreu.<br />
Uma
do lado de dentro, outra do lado de fora, começaram a chorar. A moça se
descobriu também uma mãe, não só dos filhos que ainda não tinha mas de
muitos outros. A mulher de meia idade abriu a porta e deu um abraço
atrapalhado, demorado. Ajudaram-se a colocar tudo com cuidado no banco
de trás.<br />
Quando conseguiu falar, a senhora agradeceu, abençoou,
agradeceu, chorou, agradeceu e pediu um telefone, fazia questão de pagar
assim que pudesse. E a moça, pela segunda vez, soube o que fazer: puxou
um bloquinho e uma canetinha da bolsa e escreveu um número falso.<br />
Pediu
à senhora se podia dar-lhe mais um abraço e foi embora. Só quando
chegou em casa notou que esquecera seu leite, suas frutas e a comida do
gato.<br />
E era Natal.Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-6447774049890669846.post-30476319527528644652011-12-07T17:01:00.000-02:002011-12-12T21:25:47.498-02:00Nadar para longe<b>(os livros e eu, cap. iii</b>)<br />
<br />
Foi uma época gostosa. Íamos caminhando até a casa de um tio avô da
minha mãe, um iuguslavo comunista que tinha no quintal de casa uma
escolinha de natação –cujo método de ensino consistia basicamente em me
agarrar pelo cabelo enquanto eu nadava: se eu parasse, afundava e doía– e passávamos
as manhãs das férias entre braçadas e sanduíches.<br />
Um dia o tio
me chamou para a secretaria improvisada –lembro do cheiro de cloro– e
perguntou se eu queria uns livros. Imagino que minha resposta tenha sido
um sorriso do tipo "quem é que pergunta a um macaco se ele quer
bananas?".<br />
Foi complicado, mas carreguei tudo para casa. Talvez
tenha sido a primeira vez que senti o peso –nem sempre no sentido
figurado– do conhecimento. É bem sacrificada a vida de leitor nadador
aos seis anos.<br />
Eram cinco volumes grandes e verdes de capa dura,
coisa antiga. Por dentro, as histórias e umas ilustrações em traços vermelhos. Posso
estar bem enganado, mas ninguém saberá me desmentir: o primeiro tinha as
histórias dos Irmão Grimm e o segundo, vários contos de fada; depois
vinham as viagens completas do Sinbad, as do Gulliver e as do Marco
Polo.<br />
Viagens.<br />
Foi, acho, a primeira vez em que meu mundo
cresceu além das oito horas de carro até Minas que eram meu recorde de
lonjura. O mundo lá fora era grande para caramba. E o mundo aqui dentro
podia ser maior ainda.<br />
O problema dos clichês é que às vezes eles
são verdade, e aí já é difícil levá-los a sério. Pois, de todos os
clichês sobre livros, aquele de viajar sem sair do lugar foi, por um bom
tempo, o que mais fez sentido para mim: vivi um bom tempo em terras
distantes. Aparecia em casa sempre que minha mãe chamava para o café,
mas logo voltava para algum deserto, alguma ilha, alguma cidade perdida.<br />
Quem me olhava, menino magrelo e tímido, nem imaginava minhas andanças. Há que ser muito macho para chegar lá tão longe. Ainda bem que o tio estava me ensinando a nadar.<br />
Anos
depois acabamos doando a coleção a outras crianças, de modo que me
agrada pensar que talvez eu tenha alguns outros companheiros de viagem
por aí. Não me assustaria um dia receber uns postais. <br />
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<i>* * *</i><br />
<i>Peço mil perdões (de novo) pelo (enorme) atraso. Semana passada, as coisas mudaram muito de rumo aqui, assim meio de surpresa. Mas -já que falamos de viagens- não sou de ficar me ressentindo dos ventos, é só o tempo de ajustar as velas e tocar o barco de novo. A vida é uma beleza. </i>Brunohttp://www.blogger.com/profile/16367629544448282789noreply@blogger.com4