31.8.12

Uma carta meio confusa

Tem um conto do Borges -talvez um relato verídico, vai saber- em que ele senta ao lado de um homem a beira do rio e se dá conta de que o outro é ele mesmo, muitos anos mais novo. E então é tomado primeiro de estranhamento, depois de uma vontade urgente de prevenir sobre o futuro e, por fim, da serenidade de que o que há de ser, será, e que seja. Uma boa história, me pego pensando nela.
      Se bem me lembro, você deve ser agora um menino tímido, de pouca conversa e muita imaginação. Deve estar relendo alguma parte do Sinbad -se não me engano, é da terceira viagem que gosta mais- ou folheando um volume qualquer da enciclopédia. Um menino meio constrangido por gostar de folhear enciclopédias no tapete da sala.
      Já eu estou aqui, ainda tímido e de pouca conversa. Esperei o prédio inteiro ficar quieto para tomar um copo de chá e ouvir um concerto do Beethoven. Meio constrangido por gostar de ouvir música clássica no trabalho. As coisas mudam, mas a gente não.
      Daqui a pouco será meia-noite: dia de aniversário. Sendo meio dramático, é o trigésimo inverno. Sentado diante das estantes onde já não cabem mais livros mas se vai dando um jeito de empilhar,  posso ouvir minha (nossa?) mulher dormir no quarto em frente. Tenho aprendido a silenciar para ouví-la.
      Quando fizer trinta anos, daqui a pouquinho, você será assim: um sujeito meio calado, pensativo talvez além da conta, um homem cheio de "meios" e "talvezes" (com um tanto também de certezas, mas as certezas costumam ser mais silenciosas que as dúvidas).
      Veja você. Esses dias mesmo, a família estava toda reunida, umas vinte pessoas, um domingo de inverno sem uma nuvem no céu. Depois da sobremesa, você levou uma cadeira para o jardim e ficou ali, olhando de longe, como quem assiste a um filme bonito. E pensando que nunca mais verá aquilo novamente, que amanhã as coisas já não serão as mesmas, as pessoas serão diferentes, alguém talvez até esteja junto de Deus. E foi ficando tomado de uma ternura tão grande...
      É uma carta confusa, absolutamente desnecessária. Uma coisa até meio fútil. Mas, enfim, você será o tipo de sujeito que faz essas sentimentalidades de vez em quando. Talvez, em outra ocasião, eu escreva outra carta, vinte ou trinta anos mais velho, e sorria da minha ingenuidade.
      Para que ficar contando tudo se daqui a pouco você vê com seus olhos? A vida é agora, não é mesmo isso que estou tentando dizer?
      Pois tem gente que diz que o tempo corre, que mal brindou o novo ano e quando vê já é Natal. Também tem os que reclamam que os dias se arrastam e pedem que tudo passe logo de uma vez. Mas, sei lá, eu diria que durou o que deveria durar. Trinta anos que duraram exatamente o que deveriam durar, nem mais e nem menos. E isso é bom.
      De repente me deu uma vontade enorme, urgente, de agradecer. A vida é boa.
      Chegou a parte que você mais gosta do concerto. Meia-noite. Feliz aniversário.

21.8.12

Peixe dourado

Lembro de ter lido uma vez, coisa dessas com que se esbarra por aí, que um peixe dourado deixado num aquário sem luz perde a cor, acaba só um vulto esbranquiçado e sem brilho. Lembro de ter pensado que tem algo de trágico e muito profundo nisso.
      Se um peixe dourado deixa de ser dourado, o que resta dele?
      No entanto, não me lembro se li ou inventei que, se devolvido ao antigo aquário iluminado, o peixe retoma sua cor, torna-se de novo o que nasceu para ser: dourado.
      Assim são os peixes, assim somos nós.

20.8.12

Quanto tempo

No caminho, pensei:
"há quanto tempo não vejo
uma garça no céu?"