29.3.07

Desencontros

Ela vinha descendo a rua. Avoada, pensava na vida, cabeça de mulher. Bonita, feminina, atraente, essas coisas. Inteligente, adorava arte e sabia tudo sobre café. Ia a confeitarias e reproduzia as receitas em casa no fim de semana. Gostava da cumplicidade, da troca de olhares, dos segredinhos em comum, de dançar coladinho. Fazia yoga e viajava quando podia.
     Ele vinha subindo a rua. Olhava, mas não via nada, cabeça de homem. Boa pinta, bem vestido, perfume, essas coisas. Culto, gostava de literatura e entendia de vinhos. Apreciava boa comida, sabia cozinhar alguma coisa. Gostava da provocação, do flerte, do beijo no cantinho da boca, de oferecer rosas, deixar bilhetinhos. Lutava boxe e acampava quando podia.
     Ela chegou na esquina. Perguntava-se onde arranjaria um homem bonito, mas não assim comum. Um cara que se interessasse pela sua vida, que visitasse sua família aos fins de semana sem fazer cara feia. Que a levasse num lugarzinho charmoso e falasse sobre música e poesia, mas também roubasse um beijo, de sopetão. Refinado, sensível, mas másculo como homens devem ser.
     Ele chegou na esquina. Queria saber se um dia conseguiria uma mulher bonita, mas inteligente, de personalidade. Uma assim que gostasse das suas coisas, que lhe acompanhasse num passeio no parque com o cachorro. Que lhe provocasse e deixasse as coisas no ar, mas também sorrisse com doçura quando ele a olhasse nos olhos. Firme, decidida, mas feminina como mulheres devem ser.
     Ela parou para esperar os carros. Gostava do último namorado, mas acabou desiludida. As amigas ajudaram, chorou até esquecer. Ia sozinha ao cinema e sentia a falta de um ombro onde se acomodar durante o filme. Imaginava quando conheceria o homem que a faria pensar em filhos.
     Ele parou para esperar os carros. Era apaixonado pela última namorada, mas ela o acabou deixando. Consolou-se sozinho, esqueceu. Saía com os colegas depois do trabalho e invejava de longe a felicidade dos casais. Pensava se um dia voltaria a fazer planos ao lado de uma mulher.
     Os carros pararam e ela atravessou. Olhou, preocupada, para a esquerda, para certificar-se que os carros não avançariam. Não viu o homem atrapalhado que passou ao seu lado.
     Os carros pararam e ele atravessou. O celular tocou e ele atrapalhou-se procurando o aparelho no bolso. Não reparou na mulher preocupada que passou bem ao seu lado.
     Ela continua duvidando que exista um homem que valha a pena. Ele continua não acreditando em alma gêmea. E vão andando por aí.

26.3.07

Algodão doce

Território perigoso é o da, digamos, massa corpórea feminina. Duvido que haja um homem na face da Terra —tirando-se cabelereiros, maquiadores e estilistas— que saiba como lidar com um assunto tão delicado.
     É um belo dia de verão e vocês decidem passear no parque. Sol, céu azul, cachorros e crianças de bicicleta. Tudo corre muito bem até que você, na maior ingenuidade, só querendo ser gentil, oferece um algodão doce, ou uma maçã do amor, ou uma Coca, sei lá. Ficamos com o algodão doce, para o exemplo ficar mais dramático. Ela vai sair com algo do tipo:
     — Comecei regime ontem.
     E, pronto, acabou tudo.
     O sol se enfiou atrás de alguma nuvem preta, o céu acinzentou, o cachorro engasgou com a bolinha e as criançada caiu das bicicletas. Neste momento você desejará que tivesse nascido surdo. Mas não, você não nasceu surdo: ouviu muito bem e ela te olha, esperando um comentário. Claro que você, como todo homem, não sabe o que responder, e constrói um diálogo imaginário em sua cabeça. Opção 1:
     — Ah, é? Que legal!
     — Que legal? Que legal? Quer dizer que todo esse tempo você me achava gorda e não dizia nada? Eu sabia: você não me ama do jeito que eu sou. Você tem vergonha de mim! Até regime eu tenho que fazer para ver se você me aceita, seu insensível!
     Não, melhor não responder assim. Ela estranha seu silêncio, logo você que estava tão falante até cinco segundo atrás. Enquanto o vendedor pergunta se você vai querer mesmo o algodão doce, você constrói um outro diálogo. Segunda opção:
     — Regime pra quê? Você está ótima!
     — Ótima? Eu estou gorda! G-o-r-d-a! Mas pelo visto você quer que continue assim. Sim, porque você é o meninão bonitão, saradão e eu, a gorda mocréia. “Olha como ele é bonzinho, levando a gorda para passear...” Você só pensa em você, seu insensível!
     Antes que ela comece a chorar no seu diálogo imaginário, você parte rápido para outra. O vendedor está esperando e ela começa a pensar que você talvez seja autista, logo você que estava tão falante dez segundos atrás. Resposta número três:
     — Ah, mas vamos comer um algodão doce, benzinho. Só hoje...
     — Ah, é? E você sabe quantas calorias tem num algodãozinho desses? Sabe? É uma máquina de fazer gordas! Mas você não se preocupa comigo mesmo. Porque eu estou gorda e você nem se incomoda. Mas se a vizinha engordar 500 gramas, você repara. Ah, se repara! Seu insensível!
     O vendedor já está impaciente. Ela pensa em chamar a APAE, que você deve ser autista mesmo. Já se passaram quinze segundos: é agora ou nunca. Melhor que fosse nunca, mas tem que ser agora. Dezesseis segundos. Só há uma saída: a pela tangente.
     Você aponta para cima e sai correndo, a toda velocidade, atrás do elefante rosa que está caindo do céu lá na outra esquina. Quer dizer, elefante não, que ela vai levar para o lado pessoal. Mas já que você não nasceu surdo, é melhor passar por bobo, que o estrago é menor.

22.3.07

Bingo!

— Número 13. Azar para uns, sorte para outros. Marquem aí o 13!
     E as velhinhas procuravam, excitadas, nas cartelinhas do bingo da igreja. Quem marcava, batia palmas de satisfação. O cantador sabia muito bem como fazer seu show.
     — Número 15! Quinze, a idade da dona Idalina.
     E a dona Idalina —que na verdade tinha lá seus 70 anos— mexia no cabelo, envaidecida pelo elogio. Era festa da padroeira, vinha gente de todo a região, mas quem gostava mesmo de um bingo eram as velhinhas. E como gostavam!
     — Pedra 38. O calibre do revólver do padre.
     Durante o sábado o carro de som já percorrera o bairro, com o mesmo aviso de sempre: missa festiva com presença do bispo, grandioso churrasco e tradicional bingo com valiosos prêmios. Tudo como sempre, inclusive as piadas do cantador, mas quem liga para isso?
     — Olha o 33, idade de Nosso Senhor.
     — Marquem o número 6. Se não tiver na cartela, serve meia dúzia também.
     — 22, os dois patinhos na lagoa.
     — 51, uma boa idéia.
     — É agora que o Zé se entrega: 24, veado na cabeça!
     — Saiu aqui o 69. Hum... deixa para lá, né, padre?
     A mais concorrida era a rodada extra, quando só ganhava a televisão quem marcasse cartela cheia. Lá pelas tantas, quando as velhinhas todas estavam no ápice da empolgação, ele soltava:
     — Pessoal, a dona Terezinha lá atrás desmarcou a cartela. Só um minutinho que eu vou repetir todos os números mais uma vez!
     Balde de água gelada nas velhinhas. Protestos. Vaias. Imagina, parar de tirar os números justo agora! Mas era tudo encenação do cantador, só para fazer graça.
     — Quem está esperando a boa?
     E as velhinhas todas levantavam a mão, divertidas. E então vinha o grito, esperado grito, lá do fundo do salão:
     — Bingo!
     Era a dona Idalina, a septuagenária de quinze anos, e as velhinhas todas olhavam com cara de despeito, cara de quem estava por uma só. Quinze rodadas depois, no fim da tarde, convite para assistir um filme na casa da ganhadora da tevê, desabafos de quem ficou esperando a pedra que não veio e broncas de quem quase morreu do coração. E elogios. Ele era o melhor cantador da paróquia, literalmente.

21.3.07

Outono

Tingiu-se o céu,
saudando a nova estação
— arrebol de outono.

17.3.07

Numa noite de agosto

Era uma noite fria de agosto. Já era tarde, e o último ônibus saía da praça. Não eram muitos passageiros, o que deixava tudo ainda mais silencioso. Cada um com sua vida, cada um com seus interesses, cada um com seus olhos embaçados de sono e cansaço. Havia lá dentro um único par de olhos que brilhava. E, não por coincidência, eram da mesma moça os únicos lábios que sorriam no ônibus.
     Assim como os outros passageiros, ela trabalhara o dia inteiro. Sentia-se cansada também. O dia fora de movimento no café, e ela não sabia a conta de quantos clientes servira. Tinha tudo para ser mais um par de olhos sem brilho, mas sentia-se inexplicavelmente feliz. Talvez sorrisse simplesmente por não ver motivos para chorar. Uma lâmpada fluorescente em cima do cobrador piscou uma, duas vezes, relutou e apagou.
     Não era o melhor emprego do mundo, estava longe de ter o melhor salário do mundo e, pensando bem, não tinha lá a melhor clientela do mundo. Mas ela gostava, e não sabia atender alguém senão com um sorriso no rosto e suas melhores maneiras. Uma garoa fina começou a borrifar gotas que brilhavam com as luzes da cidade na janela do ônibus.
     A família vivia longe, ela viera para a cidade depois de perder o pai. Morava de aluguel, sozinha desde que seu gato sumira há algumas semanas. Não quis outro novo para não sofrer mais e, inocente que era, nem cogitara desconfiar da vizinha, que na verdade o houvera envenenado. Passava muito pouco tempo em casa, mas mantinha tudo impecável. No fim de semana passado, comprara um tecido de flores para costurar umas cortininhas para a janela da cozinha.
     Amanhã seria dia de folga. Na hora do almoço, ela fora até o cinema para ver o horário dos filmes e aproveitara para já comprar a entrada. Era um filme novo, francês, e ela adorava filmes franceses desses de amor. Ia sempre sozinha ao cinema, mas não se ressentia disso. A campainha do ônibus soou quando ela levantou e apertou o botão.
     O motorista parou, ela desceu e tomou o caminho, sob a luz fraca e avermelhada dos postes. A passos apressados, deixou para trás um outro passageiro que também descera. Ninguém a esperava em casa, mas ela não se sentia sozinha. Queria colocar uma roupa confortável e quente, tomar uma sopa e assistir um filme na tevê. Debaixo da garoa fina que molhava de leve o casaco, ela sorria.
     Quando chegou na esquina, foi abordada por alguém encapuzado. Já entregava a bolsa quando ouviu um grito. Era algum vizinho que havia visto a cena e chamava por ajuda. O ladrão se assustou, e foi só o tempo de ouvir um estampido e sentir algo quente entre os dedos. Ela não chegou a ver o sangue que escorreu no chão. Era uma noite fria de agosto, e o mundo pareceu mais escuro quando mais um sorriso se apagou.

13.3.07

Temporada

Parte I

Seu Glicério, de lei, vai uma vez por ano à praia. Ele já se aposentou da repartição, mas diz que todo homem tem direito a férias, e nisso —como, cá entre nós, em tudo o mais— nosso amigo é bem ortodoxo.
     Dona Eulália não entende por que ele ainda insiste em ir na alta temporada, já que descansar que é bom ele não descansa é nada. É criança que joga areia, é marmanjo que derruba bolinha de frescobol, é vendedor que quer empurrar óculos de surfista, tudo parece que conspira para acabar com o sossego de um pai de família em férias.
     Começa já na estrada. Mas calma lá, não que seu Glicério seja intolerante, não sejamos precipitados. Acontece que para um motorista arrojado como nosso amigo é cansativo conviver com barbeiragens alheias. E ele é da opinião que se deve dar vazão às nossas insatisfações.
     — Não sei por que sujeito pega estrada se não sabe dirigir nem carrinho de bate-bate.
     — O carro da moça ali deve ter defeito, coitada. Só faz curva parado.
     — Aquele ali deve pagar dois IPVA, para poder ocupar duas faixas.
     — Olha só, o cretino parece que está dirigindo uma carreta de oito eixos, não um carrinho um ponto zero.
     — Tá esperando o que para entrar na pista? Não existir mais carro no planeta Terra?
     E por aí vai. E esses carrinhos que fazem hoje? Seu Glicério se arrepende por ter dado lance no consórcio do caro zero que a esposa e as filhas escolheram. Nos bons tempos, um homem sentia o prazer único de dominar a força de vários e vários cavalos com um simples pisão do pé. Nem roncam mais, essas latinhas de sardinha sem sal.
     Dona Eulália fica o tempo todo tensa, agarrada no apoio de braço da porta, o que irrita mais nosso amigo Glicério. Morre de medo de estrada, acidente, vazamento de caminhão-tanque, bala perdida, seqüestro de bandidos de estrada, terroristas fanáticos, essas coisas.
     — Ai, minha Virgem Maria, olha o caminhão chegando, Glicério!
     — Calma, mulher, ele está parado no acostamento.
     E nem santo escapa, São Pedro que o diga. Ano passado, seu Glicério fez greve de dízimo porque o tempo ficou fechado nos sete dias em que esteve no litoral. E este ano ele já ameaçou: é bom que faça um sol de rachar coco, senão nada de dinheiro para o padre Leocádio reformar o telhado da igreja.

11.3.07

Como eu blogo?

A Raquel passou para mim uma brincadeira que anda correndo entre os blogs. A pergunta de um milhão de reais é: "como eu blogo?"
     Eu queria mesmo escrever todos os dias à noite, quando a casa fica quieta e eu me sento ao computador com uma música ao fundo e um bule de chá verde ao lado. Mas nem sempre é assim, nessa hora não sai nada.
     Não sou nem um pouco disciplinado quanto a escrever - nem desenhar, ou pintar, ou tocar gaita, ou qualquer das coisas que eu já inventei fazer. Tanto posso escrever uma ou duas histórias num dia só, como posso passar dias sem nem lembrar de blog coisa nenhuma, saudavelmente curado da mania de escritor. O complicado para mim são as idéias. Eu as tenho, e em quantidade, viu?, mas invariavelmente acho tudo imbecil dois minutos depois.
     Mesmo que não escreva sobre minha vida em especial - exceto nas reportagens especiais de férias -, dá para ler meu humor nas entrelinhas. Uns textos saem mais engraçadinhos, irônicos e outros, tristes, introspectivos. Não sou nem um pouco econômico com usar o delete e o backspace.
     As crônicas partem de coisas que eu vivo no dia-a-dia, situações que eu passei mesmo, e os contos são histórias que eu observo acontecerem à minha volta. Tudo meio romantizado, para dar mais Ibope. Já as poesias eu publico uma parte pequena das que escrevo, tenho vergonha. E o seu Glicério é uma mistura das rabugices do meu pai com o meu mau humor. Ele sou eu no futuro, enfim.
     De uns tempos para cá, descobri o prazer de fazer amigos blogueiros também. É um pessoal que já virou de casa: senta no sofá, brinca com o cachorro e pega as coisas na cozinha sem nenhuma cerimônia. Quase velhos amigos.
     Um segredo que talvez meus novos leitores não saibam é que vez ou outra eu republico textos meio antigos, reciclados do blog anterior. Crise de criatividade, sabe como é.
     Eu tenho planos de, um dia, seqüestrar um cronista anão e mantê-lo refém dentro do maleiro do armário. Aí, então, eu terei posts diários e de qualidade. Enquanto não consigo realizar meu objetivo — cronistas anões são muito ariscos, é dificílimo capturá-los —, eu me viro como posso.

5.3.07

Noite de verão

Deitado na cama,
invejo o gato que dorme
sobre o telhado.

1.3.07

A casinha branca

O sol, que acabara de se levantar, iluminava a casinha de madeira. Paredes, portas, janelas, grades, tudo branco. O nascer do sol dava à casa um brilho delicado, ao contrário dos prédios de concreto e vidro que a ladeavam. Uma casinha frágil no meio dos prédios brutos.
     E, enquanto a cidade acordava, a velhinha regava seu jardim, com a serenidade que os anos lhe deram. Embora os prédios não lhes concedessem mais que algumas poucas horas de sol, as margaridas do jardim continuavam floridas como há quase cinqüenta anos. Ainda não era época de rosas.
     Como fazia há cinqüenta anos, ela sorriu quando o velhinho empurrou o portão e entrou com o pacote de pão debaixo do braço. Deixou o regador no canteiro e os dois entraram, ela primeiro, ele depois.
     A mesa estava posta como sempre desde que ficaram sozinhos: duas colherinhas e uma faca; duas xícaras e um açucareiro de porcelana branca; manteiga e um bolo coberto por um pano de prato bordado. Dedicada, ela serviu o café, colocou o bule de volta no fogão e sentou-se para comer o pedaço de pão que ele já lhe havia cortado.
     Os dois conversaram sobre os filhos que não apareciam há algum tempo e os netos de quem tinham poucas notícias. Falaram sobre o passado, mas não sabiam do futuro. Comeram o bolo de laranja em silêncio. Terminaram o café e ela tirou a mesa enquanto ele fechava as janelas brancas. Tinham de sair.
     O velhinho abriu a porta para que a velhinha saísse e deu-lhe a mão para que descesse os três degraus da varanda. Embora o pulso não tivesse mais a antiga força, a gentileza era a mesma de cinqüenta anos atrás. Fechou o portão e os dois saíram na direção de todos os dias. Mas hoje não iriam passear.
     Moravam ali desde que se casaram, quando ele anunciou que havia comprado um lote num setor novo da cidade. Não havia ainda todas aquelas casas, muito menos as lojas e os prédios. Construíram juntos a casa, que sempre foi branca, e plantaram juntos o jardim, que sempre foi florido. Os filhos cresceram e hoje moram em prédios cinzentos sem flores e sem varandas. E aos netos nunca interessou brincar no balanço ou procurar ninhos nas pitangueiras.
     Andando de mãos dadas, reconheceram no caminho os locais onde um dia ficavam a sapataria, a mercearia, a quitanda e a farmácia. Lembraram da casa da árvore aonde iam, às vezes procurar as crianças, que sumiam o dia inteiro. Hoje tudo lojas, prédios e escritórios. Da rua tranqüila também nada sobrava, exceto por uns pedaços do calçamento e alguns ipês um tanto descuidados. Nada também dos velhos vizinhos, renderam-se todos. Os dois atravessaram a avenida o mais rápido que puderam, mas o sinal ficou verde antes que chegassem ao outro lado. O tempo já não era suficiente. Os motoristas buzinaram.
     Entraram num escritório. Um homem gordo, apressado, estendeu-lhes duas cadeiras, mas foi o velhinho quem ajudou a esposa a se sentar. Quase não conversaram: já há alguns meses a proposta fora feita e o homem sabia que, hora ou outra, eles viriam. Todos um dia vêm. Disse algumas palavras e tirou uns papéis de uma pasta, uma pasta entre tantas. Uma casinha entre tantas. O velhinho tomou a caneta e, mãos trêmulas um tanto pela idade, um tanto pela emoção, olhou para sua velhinha por uns instantes. Encontrou ali, no silêncio do mesmo olhar doce de cinqüenta anos atrás, a força de que precisava. Sentiu os olhos embaçarem, suspirou e assinou o papel. Todas as vias.
     E os dois saíram de mãos dadas, no ritmo que as pernas permitiam e que a tristeza impunha, em direção à casinha toda branca onde moraram durante toda uma vida. Mas logo não morariam mais, e amanhã o velhinho sairá pela última vez para buscar pão enquanto a velhinha rega pela última vez seu jardim de margaridas floridas. E as rosas não chegarão a florescer.