31.10.08

Cineminha

Seu Glicério, a contragosto, tenta se ajeitar na poltrona enquanto dona Eulália, excitada, dá um jeito de arrumar o copo de refrigerante, a bolsa de bolinhas e a pipoca jumbo no colo. Para ela, cinema não é cinema sem pipoca. Para ele, cinema não é cinema desde que o Burt Lancaster morreu.
     Dona Eulália leu recomendação do filme na Reader's digest e estava ansiosa pelo filme. Nosso herói já não tem a mesma disposição: a fila, a compra dos ingressos, as atendentes robóticas, essas preliminares vão pouco a pouco minando o humor do nosso hipertenso amigo. Antes mesmo do trailer, a pressão de seu Glicério anda ali pela casa dos dezoito.
     — E que o preço que se paga nessa pipoca daria para alimentar com milho uma família inteira por quase um mês.
     Dezenove.
     — E que o que eles vendem mesmo é o balde de gelo. Esse pinguinho de refrigerante, na verdade, a moça deixou cair por acidente aqui dentro.
     Vinte.
     Dona Eulália, acostumada que é, sabe que é hora de entrar em ação. Tira um bom sanduíche de mortadela e uma garrafinha de água tônica que trouxe na bolsa, para cobrir esse tipo de emergência.
     Apagam-se as luzes, vai começar o show e... flash de câmera! Pronto, tudo por água abaixo: a pressão que já estava controlada, o homem que já estava distraído. São umas meninas da fileira da frente que, excitadas, fazem questão de registrar cada momento com flashes e gritinhos histéricos de "amigas pra sempre". Bem a tempo, o fim da abertura –e um beliscão de dona Eulália– prendem a atenção do nosso herói.
     É que seu Glicério tem um opinião pessoal –um pouco radical, talvez, mas levem em conta que ele é homem de hábitos tradicionais– de que um adolescente empunhando uma máquina digital é um dos quatro cavaleiros do apocalipse, junto com atendentes de telemarketing, garçons que servem uísque em copo alto com muito gelo e adolescentes que falam sem parar no celular.
     E não é que, mal começa o filme para valer, toca um celular? Cavalgada das valquírias. E, agravante, não era uma adolescente: era um marmanjo que não se fez de rogado e atendeu o bendito, aos cochichos. Discretamente, seu Glicério jogou uma pipoca no sujeito e discretamente foi –um sussurro de "é isso aí, tio"– aclamado pelos meninos da fileira de trás.
     Pronto, dona Eulália já ficou tensa na poltrona, morre de medo que o marido arranje briga na rua. Não entende que às vezes um velho leão tem que rugir, mostrar as presas, quem é que manda no pedaço, essas coisas. Aliás, o mocinho do filme –rapaz suspeito, segundo seu Glicério– parece que não é lá muito conhecedor dessas coisas também:
     — Tá bom, tá bom. E que horas é que ele vai resolver fazer alguma coisa? Fosse o Clint Eastwood, já resolvia isso logo à moda antiga. E pensar que eu perdi a partida de dominó com o pessoal...
     Lá pelas tantas, Cavalgada das valquírias de novo. O mesmo sujeito. Seu Glicério joga uma outra pipoca e uma meia dúzia de imprecações. Ganha mais um incentivo da meninada.
     O mocinho finalmente começa a se sair bem na história, distribui um ou dois sopapos –nada que se compare à direita do Sugar Ray Leonard, mas vá lá– e parece mais decidido quanto a querer beijar a mocinha até o fim do filme. O diretor também ganha um pouco mais da simpatia do nosso amigo quando entra, de música de fundo numa cena, uma do Sinatra.
     E para alívio de dona Eulália tudo corre sem mais sobressaltos. Nada mais de Cavalgada das valquírias, nada mais de pipocas, nada mais de flashes –as meninas estão agora todas abraçadas, chorando e jurando amizade eterna. Na saída, os garotos olham para seu Glicério e lhe fazem um joia. Ele retribui o positivo e ainda dá um conselho de lambuja:
     — Vocês têm futuro, garotos. Assistam umas fitas do Burt Lancaster.
     E continuou andando, com a sensação de quem salvou algumas almas da perdição.
     Mal sabe que essa molecada nunca nem ouviu falar no Burt.

22.10.08

Intervalo editorial

Já dizia meu amigo Borges, o Jorge Luis: "Que outros se jactem das páginas que escreveram. A mim me orgulham as que tenho lido".
     O Acepipes escritos me mata a fome de páginas escritas. Mas as páginas lidas, as de que me orgulho mesmo –um dia contarei aos meus netos que já li Ulisses, do Joyce, se bem que não sei dizer a história com detalhes– ficaram meio de escanteio.
     Um sujeito entendido das coisas lançou, esses tempos, um livro –belo livro, aliás, já está na estante de casa– só de citações que virou sucesso. Pois bem, por que não lançar um blog de citações? Quase um marca-texto virtual.
     O Acepipes escritos ganha hoje, então, um irmãozinho: o Acepipes citados. Os amigos mais antigos vão lembrar de que eu já tentei abrir uma filial da franquia Acepipes uma vez –coisa com fotografia– que logo abriu falência. Tudo bem que em tempos de crise até para o Bush isso não é vergonha para ninguém, mas prometo que desta vez levo a coisa com seriedade, mesmo porque eu me levo mais a sério como leitor do que como escritor.
     Quando não estiver por aqui, então, provavelmente estarei por lá, com um livro na mão e um copo de qualquer coisa na outra.
     Quem clicar aqui ganha minha gratidão eterna.

* * *
Meu temor quando publiquei A última carta mostrou-se verdade: foi o post mais lido e comentado de todos os tempos acepipísticos. Visto a aceitação da minha tragédia pessoal pelo grande público –e visto o apocalipse do capitalismo ocidental, que atingiu também meu saldo bancário–, estou pensando em explorar isso comercialmente e entrar para a lista dos 10 mais da Veja, categoria não-ficção.

* * *
Tenho no gatilho um conto longo, de suspense, nos moldes daqueles do sino e do escultor. Na verdade, a intenção de escrever isso aqui não é dar golpes de márquetchin, é só para tornar público e me obrigar a terminar logo a bendita história. No mesmo embalo, anuncio, para semana que vem a estreia –"estreia" perdeu o acento, e isso é triste– da segunda temporada do seu Glicério e a retomada do guia turístico do Zwkrshjistão.

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Para terminar, ganhei dois selos –vocês me acostumam mal–, um da Stephanie e outro do Tyler. Vou fazer assim: o este blog me dá asas, que eu ganhei da Stephanie, eu passo para o Tyler. E o do Tyler, este blog é uma joia –"joia" não tem mais acento, e isso é triste–, vai para a Stephie. Confuso?

17.10.08

Ele, ela e o Chet Baker

Numa sexta, depois de uma cerveja com os amigos, ele chegou em casa molhado da garoa fina. Sozinho, ninguém na garupa da moto. Um gato fugiu, rápido, quando ele abriu o portão.
     Numa sexta, depois de um cinema com as amigas, ela voltou ouvindo música baixinho no carro. Sozinha, ninguém no banco do carona. O cachorro correu para saudá-la na garagem.
     Debaixo do chuveiro, ele pensava que a havia deixado escapar. Escapar como a água que agora corria para o ralo. Delicada, refinada. Uns olhos que faziam a coisa valer a pena. Bela garota, talvez a que ele andava precisando para deixar de vez de viver do passado.
     Sentada no sofá, ela lembrava de como ele, desde a última vez, sumira. Sumira feito a fumaça do chá que ela agora assoprava. Bem-humorado, bom caráter. Uma voz que a fazia sentir-se mais leve. Bom rapaz, quem sabe o que ela estava esperando para viver o futuro.
     Pensando consigo, ele sabia que tinha mexido com ela. Certa vez concluíra –embora não fosse dizer isso jamais– que ele deveria ser diferente dos outros com quem ela havia convivido até então. Notara como ela parecia mais à vontade e deixava-se afundar lentamente nas cadeiras quando estava ao lado dele e como –coisa tão sutil nela– tocava-lhe as mãos, às vezes, enquanto conversavam.
     No fundo, ela sabia que havia, sim, despertado o interesse dele. Um dia tivera a impressão –que jamais dividiria com ninguém, para não soar pretensiosa– de que ela trouxera frescor ao mundo tão rígido dele. Notara como ele se empertigava todo ao entrar em algum lugar ao lado dela e achara bonitinho o gesto –parecia tão natural nele– de empurrar as portas e deixá-la entrar antes.
     Para ele, não havia mais volta. Hesitante, deixara o tempo passar, deixara as coisas chegarem a um ponto onde não havia mais conserto. Na verdade, para ele, tudo havia começado errado.
     Para ela, tudo estava perdido. As coisas tinham esfriado, culpava-se por talvez ter sido muito precipitada, talvez tê-lo assustado de alguma forma. Para ela, terminaram tudo errado.
     Mas, no fundo, pensava que cederia caso ela voltasse. Censurava-se por ter pensado demais.
     Porém, tinha uma esperança de que ele aparecesse. Consolava-se por ter sentido demais.
     No quarto, antes de dormir, ela ouvia Chet Baker. Lembrava de terem comentado uma vez e sorrido ao descobrir esse gosto em comum.
     E no quarto, antes de dormir, ele amaldiçoava Chet Baker porque cantava, com sua voz mansa, no ouvido dela, tudo o que ele fora covarde demais para dizer.

8.10.08

O dragão altivo

Com todas as estrelas do universo por testemunhas, sentindo na face a brisa silenciosa das montanhas, ajoelha-se o peregrino diante daquele que pode apaziguar os espíritos.
     — Mestre, como vencer os dragões que afligem nossa vida?
     Quebrando um silêncio de décadas, o iluminado move os lábios ressequidos –a suavidade de sua voz faz tremer as fundações da terra– para acalmar os anseios do jovem:
     — Houve um homem que decidiu tornar-se caçador de dragões. Abriu mão de tudo o mais e dedicou-se unicamente ao treinamento durante vinte anos. Tornou-se, por fim, o maior matador de dragões que o mundo já viu.
     — Devo também eu treinar por vinte anos?
     — Ele jamais pôde usar suas habilidades. Dragões não existem.

* * *
Problemas espirituais? O sábio tem a resposta. E o Paulo Coelho que se cuide.

4.10.08

Dia-a-dia #8

Sempre que eu acordo de noite, dou de cara com dois olhos de um monstro demoníaco me espreitando. Aí que eu lembro que é só o capacete guardado em cima do armário. Essa lei nova dos adesivos refletivos pode até proteger minha vida no trânsito, mas um dia me mata de enfarte na cama.

Pensamentos #3

Eu não tenho nada guardado. Absolutamente nada. Trabalho de faculdade, cartinha de ex-namorada, nota fiscal, conta paga, desenho que eu fiz seiláquantos anos atrás, rascunho de texto que não saiu, roupa que não uso mais, livro que nunca li... Tudo vai para o lixo ou vira doação. Por isso é que não posso ser famoso: ninguém nunca vai conseguir organizar um museu sobre mim.

1.10.08

O imortal

          Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las
          criaturas lo son, pues ignoran la muerte; lo divino,
          lo terrible, lo incomprensible, es saberse inmortal.

          -Jorge Luis Borges

Ninguém sabe como começou sua busca incessante, a obsessão que o moveu através de desertos implacáveis e oceanos impassíveis. A poeira dos séculos encarregou-se de encobrir também o seu nome. Sabe-se somente —se é que se pode saber o que passa no mais íntimo de um Homem— da angústia imensa que tomou seu espírito quando se deparou com a única e brutal verdade da morte. Tomado pela impotência de quem não terá o tempo suficiente para realizar todos as ambições que ele invejou, na aurora da civilização, tudo quanto não morre jamais.
     Em tempos imemoriais ele prostrou-se diante de altares profanos, diante de deuses cujos nomes há muito desapareceram da face da Terra ele se curvou. Em Atlântida e Mu, por mil continentes perdidos ele procurou saciar sua sede. Na heroica epopeia dos argonautas, ele navegou movido por uma única motivação: tornar-se imortal.
     Em Tis, em Mênfis, em Heliópolis, em Tebas, em Tânis ele decepcionou-se ao presenciar poderosos faraós sucumbirem diante do destino inevitável de todo ser humano.
     Pelo emaranhado de becos da Babilônia pagã, mãe das adivinhações, ecoou sua pergunta, mas não houve o som da resposta. Por Akad, Lagash e Ur ele perambulou, às margens do Tigre e do Eufrates ele vagou, em Nínive ele amaldiçoou magos e cientistas.
     Em Babel, no labirinto caótico que ascendia numa espiral até as nuvens, na cacofonia de todas as nações da Terra, ele indagou em todas as línguas conhecidas, mas não encontrou quem lhe desse resposta.
     Em vão praticou com os sete sábios da Grécia, em vão vasculhou na luminosa Atenas, na orgulhosa Esparta, na rica Corinto. Em vão fez oferendas no oráculo em Delfos. Em vão procurou entre os pergaminhos de Alexandria.
     Através do deserto, ele seguiu os grandes patriarcas do novo deus. Na terra prometida, ao indagando aos grandes profetas, ele foi somente lembrado do fim inevitável. Nem a sabedoria do Eclesiastes pôde lhe confortar.
     Nos reinos remotos do Sul, em Sabá, do alto de seu trono num palácio de cristal, cercada por todas as riquezas da Humanidade, a rainha também nada soube responder. Nos poderosos impérios no Oriente, diante de deuses pagãos, purificando-se nos rios sagrados da Índia ele também nada encontrou.
     Nas fronteiras distantes do mundo, teve ele com o mais sábio dos homens. Montado no seu búfalo, sumindo em direção ao oeste, o ancião deixou-lhe apenas mais enigmas. Ao longo da Rota da Seda encontrou-se com outros viajantes, mas nenhum à altura.
     No esplendor de Roma, a cidade eterna, debateu com filósofos, indagou aos anciãos, implorou aos césares. Pelas sete colinas, no elevado fórum, no nobre senado, nos imundos prostíbulos. Em vão.
     Sob as estrelas de Ynis Mon, entre sábios e loucos, o viajante desfiou verso a verso todas as canções dos antigos deuses da natureza. Mas nem druida nem bardo puderam lhe ajudar. Sob a neve das terras do Norte, o peregrino aprendeu as tradições dos deuses beligerantes do Norte. Também lá não houve quem desvendasse o mistério.
     Diante do grande Khan, ele contou de sua longa jornada ao veneziano, maior viajante dos Homens. Em Xi'an, com o imperador, cercado por um exército incontável, ele compartilhou sua frustração.
     Vagou por regiões esquecidas dos homens, além dos limites do mundo, até deparar-se com a mística Shangri-lá, onde, ajoelhado diante dos seus veneráveis anciãos, ele implorou por ajuda.
     Em Bagdá, em Constantinopla, em Fez, no Cairo, em Samarcanda, por todas as grandiosas cidades erguidas pelo gênio humano, nas alturas dos minaretes, nas profundezas das catacumbas ecoou sua pergunta, sem jamais encontrar resposta.
     Navegando pelo oceano além do fim do mundo, ele enfrentou tormentas atrás de seu único propósito. No alto de mortíferas cordilheiras, entre as brumas de lagos perto do céu, ele procurou. Eldorado, Tiwanaku, Cuzco, Tenochtitlán ofereceram promessas, mas também elas tombaram com o passar dos séculos.
     O mundo iluminou-se com as maravilhosas ideias dos grandes gênios do Renascimento, mas sua esperança foi vã. Vieram também os alquimistas, em vão. Nas cartas de tarot, nas estrelas insondáveis, também nada pôde ele descobrir.
     Evoluíram as ciências, o Homem dominou todo o planeta, ganhou o espaço, mas nem todo o conhecimento, nem todas as técnicas o puderam responder.
     Por fim, não houve lugar debaixo do Sol onde ele não houvesse indagado, não houve civilização que não tivesse visitado, não houve povo de quem ele não houvesse recebido negativas, não houve biblioteca onde não houvesse vasculhado, não houve sábio que com quem ele não houvesse discutido.
     Absolutamente exausto, tentou então seu último passo: o Google. Por centenas de milhares de páginas procurou, mas em nenhuma delas conseguiu seu intento. Arrasado, constatou que, se nem o Google sabe, ninguém o poderia responder mesmo.
     Só então foi que se deu conta: tão obcecado estava na sua busca que se havia esquecido de morrer. Caiu para um dos lados e expirou.