29.7.09

O jantar

     'Vejam, madames', disse finalmente, 'essas pessoas me pertenciam,
     eram minhas. [...] Eu era capaz de torná-los felizes.'

     -A festa de Babette, Karen Blixen

I

Todos sabiam como era excêntrico o chef L., o grande cozinheiro francês, e por isso ninguém estranhou quando, um ano depois de desaparecer sem nenhum aviso, souberam que ele estava de volta à cidade e daria um jantar especial no bistrô.
     A enorme e barulhenta signora C. e seu apagado marido, o general reformado J., o desembargador L., a prima ballerina da ópera municipal, sr. e sra. K., o professor de latim da universidade, o crítico literário P., o solitário colecionador de antiguidades sr. D., a pianista e o violinista da orquestra sinfônica, a bela e bem-nascida senhorita M., o cônsul da França monsieur B.: todos os melhores clientes da casa foram convidados.
     Chef L. fora o maior cozinheiro da região, quem sabe do país. Trabalhava junto com a esposa num bistrô de poucas e concorridíssimas mesas, numa alameda escondida do centro da cidade. O casal desaparecera um ano atrás, sem deixar pista: os clientes que chegaram naquela noite simplesmente deram com as portas fechadas. E com as mesmas portas fechadas davam os nostálgicos que, vez ou outra, passavam em frente na esperança de ver algum movimento ali.
     Como era de se esperar, o chef era um sujeitinho difícil. Tinha por norma não receber críticos gastronômicos e, por isso, ficava constantemente de fora dos guias. Não permitia que os clientes fizessem substituições no prato: era o que estava no menu ou rua. Reprovava as más escolhas de vinho que faziam os menos conhecedores e mandava que o garçom ignorasse o pedido e entregasse uma garrafa do vinho que ele julgava mais apropriado.
     As extravagâncias do cozinheiro eram, porém, compensadas em grande parte pela presença de sua esposa. Discreta e simpática, a bela senhora L. recebia os clientes, atendia ao telefone e consertava as más impressões que o marido causava. Uma mulher adorável.
     Já era quinta-feira e todos correram com os preparativos. Madame C. mandou a camareira trazer seus melhores vestidos, senhorita M. correu a comprar vários vestidos, general J. deu ordens à mulher que se aprontasse, o professor de latim pediu ao filho que gravasse o capítulo que perderia da sua novela preferida, sr. e sra. K. voltaram apressados do spa, a bailarina alegou dores para faltar ao ensaio, o casal de músicos da sinfônica pediu a uns amigos que tocassem em seu lugar num casamento, o crítico animou-se com a perspectiva de participar de uma segunda festa de Babette, monsieur cônsul animou-se com a perspectiva de rever o amigo conterrâneo, o desembargador solicitou o motorista e o carro oficial do tribunal de justiça. Somente o sr. D., que não se sentia bem de saúde, recusou polidamente o convite.
     E sexta-feira seria uma noite gloriosa.

* * *
Depois de muito tempo, consegui escrever outro desses de suspense. Semana que vem, a próxima parte.

24.7.09

Dia a dia #10

Você começa a questionar a própria masculinidade quando abre o armário do banheiro e encontra lá dentro mais que pasta de dente e espuma de barbear. Veja que no armário do Chuck Norris, por exemplo, nem espuma de barbear tem.

* * *
(Ainda não me acostumei muito ao fato de "dia-a-dia" ter virado "dia a dia", sem hífen. Fazer o quê?)

10.7.09

Caipirinha

— No meu tempo, quem convidava oferecia comida e bebida. Agora a gente tem que pagar pra ir na festa do sujeito...
     Seu Glicério, contrariado, dirigia, sexta-feira à noite, em direção a um restaurante. Rodízio de pizza, galeto e batata suíça, sushibar, massas... uma Disneylândia gastronômica, como ele definiu, já pensando na úlcera que, na certa, ia acordar atacada dia seguinte por causa da misturança.
     — Eu gosto é da cantina do Gennaro, que é só chegar, pedir um espaguete e pronto...
     — É aniversário do nosso afilhado, Glicério. A Luci e o Deodato vão estar lá. Pega mal se a gente não for.
     Nisso ele suspirou, pensando de novo na úlcera, que se não acordasse atacada pela misturança, seria pelas piadas do Deodato. Já dona Eulália estava empolgada com a ideia, gosta de novos ares, diz que se sente cada vez mais jovem. Mas nosso amigo é honesto em dizer que se sente cada dia mais velho. É um sujeito realista, o bom e velho Glicério.
     Chegaram na porta do lugar: não havia onde estacionar na rua. Uma, duas voltas na quadra e nada. Nosso resignado amigo estacionou, então, com um outro suspiro, em frente ao vallet:
     — Dez reais, adiantado.
     Dez reais? Adiantado? Antes que a pressão do marido suba mais por causa da justa indignação que agora fervia nas veias, dona Eulália, que já sabe como agir em casos de emergência, tirou uma nota de dez da carteira de bolinha, deu ao rapaz e arrastou um resignado Glicério —que recomendou alguns cuidados ao manobrista– para dentro do lugar.
     De fato, o Deodato e a Luci estavam lá. Num gesto de gentileza, inclusive, o compadre deixara a cadeira ao seu lado, na ponta da mesa, reservada para seu Glicério. Nosso herói tentou até fingir que não tinha visto e sentar do outro lado da mesa, mas não teve jeito, dona Eulália foi direto para lá.
     — Grande Glicério! Cada vez mais em forma, hein? Se parar assim com os braços pra baixo fica em forma de um bujão de gás perfeito!
     Outro suspiro. Já que estava ali mesmo, seu Glicério decidiu pedir uma bebidinha, para ajudar a descer melhor as piadas do Deodato. Chamou o garçom:
     — Uma Coca light pra ela e uma caipirinha pra mim.
     — Vodka ou saquê? Com morango, jabuticaba...
     — Não, não, guri. Eu quero uma caipirinha. Cai-pi-ri-nha, de cachaça e limão. Tem?
     — Não, senhor, hoje eu vou ter só com kiwi, lichia...
     — Então não tem caipirinha.
     — Mas...
     — Pense comigo: caipirinha tem quatro ingredientes: cachaça, limão, açúcar e gelo, certo? Aí vocês me trocam cachaça por vodka, limão por essas frutas de fresco, açúcar por adoçante... De caipirinha aí só tem o gelo!
     E o Deodato:
     — Quem senta na ponta paga a conta, hein, compadre?
     Suspiro. Isso porque ele ainda nem tinha visto os sabores de pizza que estavam por vir.

2.7.09

Pensamentos #5

Tem vezes que eu passo dias pensando pensando pensando num novo texto e tudo que consigo escrever é... –sei lá– uma vírgula. Mas tudo bem, parando para pensar, talvez isso não seja assim de todo mau: uma vírgula bem colocada pode mudar a Literatura.