20.12.12

Palavras cruzadas

Duas cabeças brancas debruçadas sobre duas xícaras vazias, uma caneta e uma revista: quem entra apressado no shopping certamente não percebe uma cena tão delicada. Tampouco eles, sentados a uma mesa do café, parecem perceber tanta pressa ao redor. De tempos em tempos, rompem o silêncio concentrado com alguma frase curta, tomam a caneta, escrevem. Fazem palavras cruzadas.
     Já há mais de cinquenta anos os dois formam uma boa dupla: ela entende de artes e português e ele, de geografia e ciências. Juntos, já enfrentaram muitas perguntas, preencheram espaços, descobriram respostas, conviveram com dúvidas. Grande afeição por outra pessoa, com quatro letras.
     O atendente, pouco atencioso, traz as coalhadas ainda dentro dos potes descartáveis fechados, o mel em embalagenzinhas individuais, como essas de manteiga ou geleia de hotel. Deixa tudo sobre a mesa, com duas colheres envoltas saquinhos plásticos. Enquanto ela tenta, os olhos quase fechados, puxar da memória a poeta polonesa que ganhou o Nobel, ele abre umas das embalagens, derrama numa espiral o mel sobre a coalhada, desembrulha uma colher e coloca em frente dela. Em seguida, prepara sua própria porção.
     Depois de discutirem brevemente sobre o cantor caribenho precursor da bossa nova, passam um bom tempo calados. É um silêncio é de harmonia. Numa parceria longa como essa é preciso somente um olhar para se pedir a caneta, um sinal leve para dizer que não se sabe a resposta. Pela porta do shopping, mais gente vai entrando apressada, com fome de algo que a pressa não saciará. Ela recusa uma segunda rodada de café, se tomar outra xícara não conseguirá dormir à noite.
     Desenhando com capricho a cauda elegante de um R, ele preenche o último quadradinho do dia. Levantam a cabeça ao mesmo tempo num sorriso satisfeito. Ela paga a conta.
     Quem sai apressado do shopping certamente não percebe uma cena tão delicada: caminham em direção de casa, ele apoiando-se numa bengala e ela carregando uma revista de palavras cruzadas. Com as mãos que sobram, seguram um ao outro.

10.12.12

A primeira carta de um pai


Ontem amanheceu um domingo quieto e fresco depois de dias de calor escaldante. Depois de tomarmos café, eu olhava distraído a neblina se dissipando lá fora e não foi preciso palavras: bastou que sua mãe chamasse meu nome para que eu soubesse que você existia. Bastou que ela me olhasse com olhos de mãe para que eu soubesse que serei pai.
     Por um segundo não acreditei na notícia, e então meu coração me convenceu do que meus olhos estavam vendo, do que meus ouvidos não precisaram escutar. Não me lembro de alguma vez ter chorado tanto. Serei seu pai.
     Já faz um tempo que a casa parece vazia. Embora sua mãe seja ótima companhia, venho sentindo falta de alguém e, embora seja uma companhia até que esforçada, sei que eu já não sou mais tudo o que ela espera encontrar depois de um dia de trabalho. Mas não é só um vazio, é o seu lugar que já vinha se criando.
     Quando primeiro abrir os olhos (sua mãe e eu estaremos lá), não vou mentir: você vai encontrar um mundo difícil de entender. Dizem que os tempos andam complicados, que as coisas não são mais as mesmas, dizem até que é loucura botar filhos neste mundo. Mas não se deixe preocupar muito, não: todos os tempos, cada um a seu modo, foram complicados. A maldade vai se reinventando de época em época, mas a Verdade continua a mesma desde sempre. É um mundo cheio de lugares lindos e pessoas incríveis, você vai ver.
     Espera só até conhecer tantos amiguinhos, tanta gente que desde ontem tem emocionado à sua mãe e a mim com tantas demonstrações de carinho. Espera só até pegarmos nossos livros e eu te contar tudo o que aprontaram o Peter Pan e o Capitão Gancho. Espera só -espera só!- até seu avô imitar o urso Baloo num dia em que você dormir na casa dele, e até ouvir o outro avô cantando um samba do Chico Buarque feliz da vida, e as avós fazendo bolos e doces pra comerem escondidos antes que alguém descubra. Espera só, minha criança querida, até passearmos por uma rua todinha tomada de ipês floridos de dourado, sentindo o vento gostoso de um fim de tarde. Espera só até irmos ao zoológico. Espera só até você pegar no sono olhando para aquela imensidão de doçura que são os olhos azuis da sua mãe. É tanta coisa que não cabe em todas cartas do mundo...
     Umas semanas atrás, arrumei o presépio aqui em casa. São umas figuras pequenininhas, um burro, uma vaca, dois carneiros, um pastor, três reis, um anjo, um pai, uma mãe e uma manjedoura ainda vazia. Uma chama tem ficado acesa todas as noites, velando pelo Menino que está para chegar. Quis o Menino que também minha casa se tornasse digna de uma espera tão abençoada. Agora, aqui também temos uma manjedoura preparada. Agora, aqui também esperamos uma criança.
     Não se precisou de palavras. Bastou que sua mãe me olhasse de um certo jeito para que eu soubesse que minha vida está mudada para sempre.
     Amo você desde o seu primeiro momento e amarei até o meu último.
     Seu pai.

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Há uns meses atrás, com uma carta, acabei tirando, por preguiça, um tempo do blog. Hoje, outra carta, com um motivo muito mais nobre, me deu motivo para voltar.