25.2.10

À tarde, de moto

Vejo o pôr-do-sol
pelo espelho retrovisor
–fim de fevereiro.

23.2.10

Meeting Rob Gordon

(Clique aqui para ler a outra parte da história.)

Foi um momento de fraqueza, admito, depois de quase quatro horas de pé no sol, no meio do gramado do Morumbi, sem comida ou banheiro, aguentando empurra-empurra, marofa de maconha e cretinices em geral. Peguei o celular e mandei uma mensagem para um sujeito que eu sabia que estava lá em cima, tranquilão, nas cadeiras.
     Foi um momento de fraqueza. "Never tell anyone outside the Family what you are thinking again", diria o Don Corleone.
     Porque não deu nem dois minutos, senti o celular vibrando no bolso, tinha chegando mensagem. Duas palavras só:
     — Chupa, pista!
     Pronto. Eu nem tinha visto ainda –sabia só que ele estava lá em cima em algum lugar, ao lado da única mulher de azul cobalto do estádio–, mas sabia que estava lidando com o Rob Gordon, o legítimo. "Chupa, pista" só poderia ser coisa dele, ninguém mais na face da Terra responderia assim.
     E esse foi meu primeiro contato com Rob Gordon, o cara do Championship Vinyl: trocando insultos via SMS num estádio lotado antes do show do Metallica. Nada mau, eu diria.
     — E você tá aí em cima fazendo ôla? Que bicha.
     Aí o Metallica entrou no palco. Aquela história.
     Um parênteses: antes disso, eu já tinha combinado de encontrar sr. e sra. Gordon no shopping. Não deu. Depois, na entrada do show; não deu. Eu, que me gabo de ser o tipo de cara que recebe ligação convidando pra uma cerveja, responde "só se for agora", levanta e vai, estava me sentindo mal com a situação. O Rob vai pensar que eu sou um fresquinho enrolado, pô! Fecha parênteses.
     Depois de uma fila desesperante –show é como faculdade: depois de um tempo, você descobre que entrar foi a parte fácil, e que o difícil vai ser sair–, informações erradas, eu querendo matar um e umas cinco voltas ao redor do estádio, achamos o Rob. Exatamente como eu imaginava: careca, baixinho e gente boa. Gente boa de primeiríssima qualidade. No minuto seguinte, já éramos velhos amigos.
     A aventura no táxi talvez merecesse um post à parte. Quatro marmanjos apertados no banco de trás, motorista míope sem óculos, uma série de manobras ousadas, buzinada da polícia de choque, essas coisas. Mas eu estava com o Rob Gordon, não esperava menos.
     Decidimos comer alguma coisa. O McDonald's parecia cena de filme do Hitchcock, tomado por uma revoada de corvos pretos –metade dos caras do show decidiram engolir um Big Mac– e o Rob acionou um plano B: Habib's. Lá fomos nós. Boa escolha.
     "Boa escolha" não porque eu seja chegado numa esfiha –logo, logo aparecem nos comentários alguma piada com kibe, querem apostar?–; "boa escolha" porque não teria lugar melhor para se divertir. Eram duas da madrugada, e qualquer pessoa com um pouco mais de sensatez desliga a tevê num horário desses. Mas o gerente da loja não era um cara sensato e a gente ficou lá, vendo uns estranhos montarem cubo mágico e tocarem qualquer porcariazinha emo. Fora que o garçom –Diego Tardelli, só que de avental– fez confusão com nosso pedido, meu amigo inventou alguma coisa com a promoção de chope que estava além das minhas capacidades matemáticas –algo tipo "eu pago um, você me traz cinco, aí ele pede outro e fica tudo beleza"–, a moça do caixa pensou que estava sendo enganada quando começamos a pegar troco uns dos outros antes de pagar para ela, essas coisas. Eu estava com o Rob Gordon, não esperava menos.
     No dia seguinte, fiquei esperando o Rob e, depois de ter visto duas batidas de carro na mesma esquina em menos de dez minutos, soube que ele estava vindo. Dito e feito: vi uma camiseta do Metallica subindo a Teodoro –não sei se foi para me agradar, mas ele estava com uma camiseta do Metallica. Notei que o Rob é como eu: encara a livraria com a mesma naturalidade de quem anda no quintal de casa. Conhece as prateleiras, sabe onde estão os leitores de código de barra, qual coleção é melhor, que editora está lançando o quê, até arruma um ou outro livro –mas só os autores que eu gosto– fora do lugar.
     Não é para ironizar com o tamanho dele, não, mas o Rob é o que eu chamo de um grande sujeito. Anos atrás, quando comecei o Acepipes, o Championship estava no começo também. Eu fui um dos primeiros leitores de lá, e ele foi um dos primeiros daqui. Nos despedimos, eu prometi avisar com mais antecedência quando voltasse a São Paulo e subi no metrô. Desci no Tietê, comprei a passagem para um ônibus que saía dali dois minutos.
     Eu sou o tipo de cara sentimental que escreve coisas do tipo "cheguei trazendo na bagagem um show memorável, um livro do 007 e uma nova grande amizade". Enfim.
          Grande sujeito.

ps. Rob, da próxima vez tem Degas.

20.2.10

Manoelcarleanas

(Ou "Dos clichês de novela das oito")

Abertura.
Música do Tom Jobim.
Nascer do sol em Copacabana. Pessoas caminhando no calçadão. Jovens jogando futvôlei.


Washington Cleyson correu para pegar o primeiro trem saindo do subúrbio. Tomou um esbarrão de um trombadinha que quase levou a mochila. Deus me livre, os livros da faculdade, que ele conseguiu com tanto esforço. Um dia vou ser doutor, ele pensava. Ser doutor e ajudar minha mãe.
     O vagão estava tão cheio que ele nem precisava se segurar. Cochilou em pé mesmo e sonhou com a moça rica que entrou no bar do clube uns dias atrás. Ah, se um dia ela me desse bola...

* * *
O sol brilhava alto e Cíntia Patrícia, a moça rica, caminhava pelo calçadão. Rebolava e balançava bem os braços em suas roupas de ginástica compradas em Miami. Os homens viravam para olhar.
     No caminho, encontrou o ex-namorado carregando a prancha, ainda molhado do mar. Balançou, mas ficou firme quando ele disse que estava com saudade. Colocou o óculos escuro, esnobou, disse que agora estava bem, saindo com um homem de verdade. E rico. Humpf.
     Saiu balançando ainda mais os braços.

* * *
A caminho da padaria, dona Teresa Cristina, mulata bonitona, cumprimentava os conhecidos na rua. Toda a rua, na verdade. Como todos os dias, ganhou cantada do malandro desempregado e riu, divertida. Era mulher batalhadora, conhecida na comunidade.
     No balcão, encontrou com a amiga cartomante e comentou que Washington Cleyson tinha vindo de novo com o papo de querer saber quem era seu pai. Queixou-se de que era jovem e boba, como é que foi cair na conversa de patrãozinho? Ficaram de ler as cartas mais tarde.

* * *
Música internacional.
Carros passando no Leblon. Pão de Açúcar. Crianças brincando no parquinho.


Helena almoçou entre papéis do escritório. Mulher independente, vivida, divorciada, cuida dos filhos, sustenta a mãe idosa e ainda tem tempo para cuidar da pele e dos cabelos.
     Telefone. Era sua melhor amiga, para confirmar o fim de semana em Búzios e avisar o bonitão dono da livraria estaria lá também. O som do restaurante começou a tocar uma música conhecida e Helena suspirou ao lembrar de Rodolfo Augusto, o antigo amor de sua juventude. Por onde andava?
     Aliás, melhor desmarcar Búzios. O que ela precisava mesmo é de uns dias calmos em Petrópolis.

* * *
Enquanto o sol baixava no Leblon, Rodolfo Augusto pensava nas mulheres de sua vida. Possuíra muitas, sussurrara ao lado de muitas, mas só uma o fez suspirar: Helena, o amor de sua juventude. Helena, que o deixara quando soube que ele havia engravidado uma antiga empregada da mansão.
     A luz tingia o apartamento de tons dourados. Por trás das persianas meio fechadas, o mundo lá fora parecia longe demais de seu flat. O celular tocou: era Cíntia Patrícia, a lolita inconveniente. Desligou o aparelho. Hoje não.
     A música suave de fundo e o barulho das pedras de gelo no copo de uísque o deixavam mais calmo. Melhor subir para Petrópolis no fim de semana, pensou. Uns dias calmos em Petrópolis bem que fariam bem.

* * *
Ofendida, Cíntia Patricia jogou o celular na piscina do clube e pediu seu drinque favorito. As amigas pediram só uma aguinha de coco.
     Deve estar com aquela mulher de novo, aquela mocreia velha, bufou de raiva. As amigas elegantemente aconselharam a pagar na mesma moeda e Cíntia Patricia disse que era isso mesmo, que ia traí-lo com o primeiro homem que aparecesse na frente. Ajeitou os óculos escuros.
     Nisso, chegou Washington Cleyson, o garçom, trazendo as bebidas.

Música do Vinícius.
Pôr-do-sol no Arpoador. Cristo Redentor iluminado. Carros passando.
Créditos.

3.2.10

No restaurante

— E por onde eu abro esse negócio?
     Assim, pressão já alterada, encontramos nosso amigo, o tantas vezes incompreendido seu Glicério, brigando com o cardápio –menu, aliás– no restaurante onde dona Eulália deu de querer estrear o vestidinho que deu a si mesma de aniversário. Não que ela tenha esperança de que ele note isso.
     Seu Glicério é homem direto, gosta das franquezas da vida e da culinária. É um amante das coisas simples, dos cardápios de uma folha só, dos nomes de pratos em bom português. Gosta mesmo de um bom rodízio, onde é só sentar e a comida vem até você. Não que isso impeça ele de reclamar, vez ou outra, porque todo cidadão tem seus direitos:
     — Deve ter algum amigo lá no fundo, olha lá os garçons indo lá de novo.
     — Acho que o churrasqueiro é indiano. Só passa frango, frango, frango...
     — O garçom deve estar guardando as picanhas pra levar pra casa, só pode ser.
     — Quem inventou de colocar peixe cru no buffet de churrascaria?
     — Eu lá sou homem de mousse de maracujá? Eu quero uma fatia de goiabada. Tem?
     Mas hoje dona Eulália viu o restaurante do momento numa revista e decidiu que era lá. E lá estava o casal sentado numa das mesinhas do bistrô, à luz de uma vela e do olhar desconfiado dum maitre que, seu Glicério observou, pela magreza não devia ser muito chegado a comida, não. "Comida contemporânea", dizia o luminoso, o que para nosso amigo soa como "nem brasileira nem de lugar nenhum".
     — Se eu lixar a mesa do jardim, fica igual. Fica melhor, até, que daí eu tiro esses riscos aqui.
     — É madeira de demolição, Glicério. Está usando agora.
     Na mesa ao lado, um rapaz de cachecol e de óculos de aros grossos e armação escura, segurava –meio a contragosto, segundo nosso amigo– as mãos de uma menina que, aparentemente, usava as roupas da avó, só que do avesso. Ali mais à frente, uma mulher devolvia um prato, alegando que o feng shui da semana recomendava que seu arroz viesse à direita, e não à esquerda do filé de soja. E seu Glicério já com a pressão alterada.
     — Olha o tamanho dessas porções. Duas garfadas caprichadas e lá se foram cinquenta mangos.
     Dona Eulália estava indecisa entre um contemporâneo –minicrepes de chá verde ao molho de esturjão e falso foie gras de acelga– e um clássico francês –gratin dauphinois au vin blanc d'Astarac. Acabou pedindo, pronto!, os dois: um para ela e um para o marido, que assim ela poderia experimentar tudo. Para seu Glicério, agora já resignado, tanto fazia, era tudo caro do mesmo e pequeno do mesmo jeito.
     Bom mesmo, melhor que rodízio, para ele, são os lugares onde nem precisa olhar cardápio, como a cantina do Gennaro, onde é só sentar, pedir um espaguete à bolonhesa e ponto. E quem é amigo, ainda ganha uma jarra de vinho da casa.
     Então, chegaram os pratos. Seu Glicério observou que, na verdade, as suas gratin dauphinois au vin blanc d'Astarac nada mais eram que batatinhas de aperitivo, iguais às do boteco do Carlão. Só que no boteco do Carlão a porção vem com doze, e aqui veio com duas só. Antes de dar a primeira –e penúltima– garfada, decretou:
     — E semana que vem é no Gennaro.
     Comeu e já colocou o remédio debaixo da língua, para evitar o infarto na hora de pedir a conta. Ele sofre, ele sofre.

* * *
Clique aqui para ler outras desse nosso amigo, bom e velho Glicério.

1.2.10

Metallica

Engraçado que eu nunca tenha nem citado ele por aqui: Diego de Niro Gonçalves. Desfaço a injustiça hoje, assim com nome e sobrenome, porque o sujeito merece. Estamos aí, este ano, fazendo quinze anos de amizade.
     Pois há uns, sei lá, catorze anos atrás, o De Niro –estudamos em colégio militar, a gente ainda se chama por nome de guerra– apareceu na aula com discman e um CD de uns caras que eu não conhecia. E eu tirava sarro; pois é, vou dar o braço a torcer: eu tirava sarro. Bom, eu tinha doze anos de idade, acho que isso releva um pouco as coisas.
     Até que um dia ele achou a solução. Talvez ele nem lembre disso, mas foi um golpe de mestre. Golpe de mestre. Abriu o discman, tirou o CD lá de dentro, tirou a caixinha da mochila, guardou o disco e me esticou: "então toma, leva pra casa e ouve". De Niro nunca foi de aguentar desaforo.
     E eu ouvi.
     And justice for all, meu primeiro álbum do Metallica. Lembro de ter gostado especialmente de One, ouvindo One eu larguei definitivamente da minha opinião preconceituosa. Desde então minha paixão pelos caras cresceu. Cresceu a ponto de, no dia trinta de janeiro de 2010, eu me ver no meio de quase setenta mil pessoas num estádio, olhando o relógio a cada minuto, ansioso como poucas vezes na vida.
     Antes de começar, o James Hetfield perguntou, em bom português, se estávamos prontos. Não precisava perguntar, todos estavam prontos. Eu estava pronto. Há anos eu estava pronto. Desde o dia que o De Niro se encheu e me emprestou aquele CD.
     E então começou.
     Creeping death, For whom the bell tolls, The four horsemen, Harvester of sorrow, Fade to black, That was just your life, The day that never comes, Sad but true, Broken, beat and scarred.
     Quando vi a lua cheia subindo por trás das arquibancadas, pensei que seria perfeito ouvir Of wolf and man. Coisa minha. Sei lá, eu tenho alguma coisa com lobos, vai ver por causa da história do Mogli que meu pai me contava todo dia antes de dormir, todo santo dia antes de dormir. E também foi a primeira música que tocou –nem fui eu que escolhi, estava no shuffle– quando liguei o iPod para tentar me distrair logo depois de ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato e que me fez sentir forte de novo na hora mais difícil da minha vida. "I hunt, therefore I am". Mas enfim, não é dos grandes sucessos deles, entendo a ausência no setlist.
     Não tocou Of wolf and man, mas tocou One, a música que me fez mudar de ideia catorze anos atrás. A música do CD que meu amigo me emprestou, o primeiro sucesso do Metallica na minha vida. Os olhos marejaram.
     Master of puppets, Blackened.
     Então, aos primeiro acordes de Nothing else matters, eu desabei. Chorei mesmo, de escorrer pelo rosto, e não me envergonho. "Couldn't be much more from the heart". Acho que é a música da vida de muito metaleiro por aí, e vendo a letra é fácil entender o porquê. "Never care for what they do".
     Enter Sandman, Stone cold crazy –Queen!–, Motorbreath e Seek and destroy.
     No final, o James mostrou o braço arrepiado. Sei lá, era eu e mais sessenta e oito mil fãs ali, mas eu também me senti responsável por aquilo, por ter deixado arrepiado um músico com tantos anos de praia, um sujeito calejado da estrada. Devem fazer isso em todo lugar que vão, mas foi legal ver os caras com a bandeira do Brasil, dizendo que se arrependeram por terem demorado tanto para voltar. Senti sinceridade, senti a emoção dos quatro, the four horseman. Porque terminaram o show, tocaram o bis -e que bis!- e ficaram ali no palco, Hetfield, Ulrich, Hammett e Trujillo, meio bobos, não acreditando numa recepção daquelas. E eu estava lá.
     (Acho que nunca escrevi palavrão aqui, sempre vem a primeira vez, então...) Foi do caralho, resumo assim.
     Foi do caralho.
     Valeu a espera de anos, valeu a ansiedade desde o dia do anúncio do show –pessoal do Twitter não devia me aguentar mais–, valeu cada minuto de viagem, valeu cada centavo investido, valeu ter aporrinhado, anos atrás, meu melhor amigo até que ele resolvesse me fazer provar do que eu ria sem conhecer.
     E, meu amigo, foi uma honra estar ao seu lado lá. Uma honra.

          "Fiquem juntos sempre, e tudo estará bem."
          -James Hetfield, 30 de janeiro de 2010