30.3.10

Na estrada

Fecho um pouco os olhos por causa do brilho do sol refletido no painel. O asfalto corre a cem por hora aqui bem debaixo dos meus pés, o motor ronca colado ao meu corpo. Tenho o guidão firme nas mãos, a estrada fixa nos olhos.
     Estou sozinho na estrada. Minha moto e eu.
     O vento uiva nos cantos do capacete, agarra nas minhas roupas, brinca com a moto de um lado para o outro. Aprendi que não adianta querer lutar contra, nem adianta fazer força. Tenho é que me sujeitar, relaxar o corpo. Tenho que ser filho do vento. Tenho que ser vento eu também.
     Um caminhão vem vindo. Cada um desses é um cruzado de direita, faz meu mundo estremecer. Seguro mais forte o guidão e então ele passa pela pista do outro lado, retribuindo minha buzinada. Sei lá, tenho algum tipo de simpatia por caminhoneiros, coisa de moleque. Nada mau levar a vida em cima de uma boleia.
     Agora é um apressadinho colado na minha traseira, deve estar pensando que aqui não é meu lugar. Vem cada vez mais perto; não se brinca assim com a vida dos outros. Deixo que passe, desejo boa viagem.
     Sou o mais vulnerável, mas sou o mais livre. E aqui é, sim, meu lugar.
     Dentro do carro, aquele sujeito está vendo a paisagem passar. Já eu estou na paisagem. Sem lataria, sem vidros insulfim quebra sol. Ouço o quero-quero que grita em algum pasto desses, sinto o cheiro de mato. Ar pesado, vem chuva. Não estarei dirigindo com chuva: estarei na chuva. Sentirei a água correndo pelo meu corpo.
     Pessoal diz que abrir mão da segurança, do conforto de um carro é loucura. Dizem que é desapego da vida. O que eu digo é que é amor à vida. Inclino o corpo para mais uma curva. Sinto o asfalto chegar mais perto do joelho.
     Isso é que é vida.
     Não espero que me entendam. É discutir o sexo dos anjos.
     Porque também isso a moto me ensinou, e também isso é bom: a fragilidade. Tenho que deixá-la em casa num dia de mau tempo, tenho que dar passagem aos maiores, tenho que evitar certos caminhos, tenho que ser cauteloso em cada metro percorrido. Correndo o risco, aprendi o cuidado.
     Subida. Acelero mais, peço que ela me dê mais e ela responde, obediente. Boa garota. Amigo caminhoneiro me dá passagem e solto outra buzinada. Lembrei: quando era pequeno, pedia ao meu pai que buzinasse para os caminhoneiros. Só de teimosia, faço questão de alcançar e ultrapassar o apressadinho lá de trás. Molecagem, preciso parar com isso.
     Sei bem que um buraco, uma pedra, um punhado de areia, uma poça de óleo, um descuidozinho que seja podem me derrubar. Aprendi caindo, mas não me envergonho: é assim que se aprende.
     E houve a vez em que não caí; fui derrubado. Acertado a noventa por hora. Foi a mão de Deus, a mão poderosa de Deus. Fugi por vinte centímetros, um palmo me separou da tragédia. Pensaram que eu ia desistir, tinham certeza que eu ia desistir. Mas aqui estou eu. Aqui estamos nós. Carregamos os dois, cavalo e cavaleiro, as cicatrizes de batalha.
     Existem dois tipos de sujeitos em cima duma moto soltos aí pelo mundo: os que compraram moto por falta de opção e os que compraram por opção. Eu sou desse segundo tipo: não tenho moto porque acho mais barata ou prática que um carro: tenho moto porque não me imagino feliz num carro. Talvez por isso eu goste de cada instante em cima dela. Dou dois tapinhas leves no tanque, como quem agrada um cavalo. Boa menina. Boa menina.
     Eu sou motociclista.

     Estou arrepiado por baixo da jaqueta. A voz está querendo falhar, melhor parar por aqui.
     Minha saudação aos irmãos de estrada. Meu respeito aos que já partiram.
     Permita, Senhor, que eu chegue sempre ao meu destino.
     Nossa Senhora Aparecida, padroeira dos motociclistas, rogai por nós.


* * *
Esse post foi gravado, junto com o barulho de vento –muito vento–, em cima da minha moto num desses domingos ensolarados da vida. Os campos estavam floridos e as araucárias me pareceram mais lindas que nunca.
     (E choveu dali cinco minutos).

23.3.10

Uma de comédia romântica

Chovia.
     De longe, ela viu o carro e soube o que ia acontecer. Tem vezes que a gente simplesmente sabe, então ela soube, foi mais para o fundo do ponto de ônibus e começou a chorar por antecipação. Droga.
     Tinha passado outro dia na frente da loja, se apaixonado pelo vestido, namorado por uns dias, pensado "ai, mas é muito caro", comentado com as amigas, pensado "ah, mas eu mereço", entrado, provado e saído com a sacola. Em vezes no cartão, várias vezes. O resto do limite foi num sapato, umas bijuzinhas, aquele batom. Essas coisas.
     Tinha se arrependido e desarrependido umas dez vezes no ônibus de volta para casa. Provado na frente do espelho e não gostado, depois provado de novo e voltado a gostar. Tinha também ouvido o comentário da mãe e decidido trocar, ouvido a opinião da irmã e resolvido ficar com ele. Tinha se imaginado em situações, virando para a direita, olhando por cima do ombro, andando devagar, ajeitando a alça, jogando o cabelo. Essas coisas.
     Tudo porque o cara do financeiro, que não decidia se casava ou comprava uma bicicleta, havia decidido finalmente e a convidado para sair.
     Daí o vestido, daí a insegurança, daí a euforia, daí a insegurança de novo e a euforia de novo umas dez vezes, daí ela estar chorando por antecipação no ponto de ônibus numa noite de sexta debaixo de uma garoinha chata com um carro vindo na sua direção. Droga, droga.
     E então o carro chegou.
     Não, ela não morreu atropelada: foi pior. O carro passou e levantou uma onda de água. Um tsunami de lama que molhou os sapatos, emporcalhou a bolsa, respingou no cabelo. E o vestido, acabou com o vestido.
     Então ela voltou para casa, ignorou o pai, mandou a mãe para o inferno, bateu a porta na cara da irmã, desligou o celular, chorou debaixo do chuveiro quente, fez as pazes com a mãe, chamou a irmã para desabafar, ganhou um beijo silencioso do pai, ficou de pijama de pelúcia rosa no sofá da sala assistindo um filme da Jennifer Aniston e devorou todo o chocolate –inclusive um pacotinho de granulado– da casa. Droga, droga, droga.
     E aí parou de chover. Às vezes a vida é assim.

(Mas, se ela tiver paciência, semana que vem, o cara do financeiro vai convidar de novo, ela vai ficar o tempo todo com a mão na perna direita para disfarçar a mancha do vestido, eles vão se beijar na hora da música romântica dos créditos e terão três filhos e dois labradores. Só, por favor, não contem nada para ela para não estragar o final.)

19.3.10

Peraí, Manuel, que eu vou também

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá é que é legal
Todo mundo é gente boa
E leva a vida na moral

Literatura #2

"Capítulo oitavo: do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação": só os títulos dos capítulos do Quixote já dão mais de 140 caracteres. Cervantes daria um péssimo microcontista.

16.3.10

Por um triz

Quinta passada, estacionei a moto na frente de casa e, quando desci para abrir o portão, dei com um vizinho maltratando dois cachorros. O macho com os dentes arreganhados, a fêmea prenha se encolhendo contra o muro para proteger os filhotes na barriga e o valentão brandindo um pedaço de pau. O sangue ferveu. Perguntei se não preferia bater em alguém do tamanho dele.
     Eu queria só que ele me respondesse. Eu estava louco para que ele me respondesse, só uma resposta atravessada. Eu queria só que aquele filho da puta covarde me respondesse. Mas ele não respondeu. Largou a madeira, resmungou que os cachorros estavam mordendo os japinhas que jogam bola na rua –duvido muito que estivessem– e foi embora.
     O cachorro veio lamber meus pés e eu quase chorei com a gratidão do bicho. Por pouco não gritei para aquele cretino que um vira-lata sarnento de rua era muito mais nobre que ele. Minha mãe arranjou um pote de ração e outro de água.

* * *

E domingo passado, saí de ônibus para a casa da minha noiva e, no que entrei no terminal, dei com três maloqueiros intimidando um garoto meio andrógino. Ouvi só a parte do "vamo te quebrar pra você virar homem". O sangue ferveu. Abri caminho no meio dos marginaizinhos, estiquei a mão para o garoto, comprimentei como se fôssemos velhos amigos –nunca tinha visto–, virei para os três e perguntei se tinham algum problema com meu brother.
     Resmungaram qualquer coisa e foram embora, puxando aquelas calças ridículas para cima. Eu queria só uma resposta atravessada, eu queria só que um filho da puta daquele boquejasse comigo.
     O garoto arrumou a franja, soltou um "valeu" meio envergonhado e –não esperava por essa– me esticou a lata de Coca-Cola. Eu nem queria beber nada, eu nem tomo refrigerante, mas peguei a lata. Entendi que a Coca era o melhor que ele tinha para oferecer na hora e eu o ofenderia se não aceitasse. Não sei explicar, mas por um segundo tive a impressão de que ele nem esperava que eu fosse aceitar; deve ser sempre assim, quem é que quer beber no mesmo gargalo de um garoto gay?
     Foi um baita gole, daqueles de encher os olhos de lágrimas. Ele agradeceu de novo quando devolvi a lata, e eu sabia o porquê.

* * *

Teve o tempo –eu era pequeno– em que morávamos num conjunto de prédios e no mesmo bloco, se não me engano, morava o seu Zé da Peixeira. Fácil entender o apelido. Lembro dele hoje porque ninguém nunca se meteu com o Zé da Peixeira. Vagabundo nunca mexeu com as filhas dele na rua, malandro nunca roubou pipa dos filhos dele. Duvido que alguma vez o amarelo da padaria tenha dado troco errado para os filhos do seu Zé da Peixeira como fazia comigo, que ainda não sabia contar o dinheiro do leite.
     Na minha cabeça, acho que ele não foi sempre assim. Devia ser um pacato desses da vida e que, belo dia, cansou de ser só mais um Zé e virou o Zé da Peixeira. Cansou. Cansou de ter muro pichado, mulher desrespeitada, filho judiado, cachorro chutado. Cansou de ser pernambucano mas ser chamado de baiano.
     Imagino o que será que foi preciso para que ele resolvesse dar esse basta, qual terá sido a gota d'água.

* * *

Não posso reclamar, nunca fui perseguido na escola, nunca sofri preconceito. Meu problema era ser tímido e medroso demais. Ficava vermelho só de a professora olhar para mim e tinha medo dos meninos maiores. Todas as minhas primeiras paixões foram platônicas.
     Acabou que por isso eu andava com o pessoal perseguido. Na quarta série meus amigos eram uma gordinha aspirante a metaleira, o único japonês da escola e um garoto pobre que não tinha dinheiro para comprar o uniforme novo para o qual a escola tinha trocado naquele ano. Éramos os que sobravam no canto do pátio na hora do recreio.
     Cresci e aprendi a lidar com isso, decidi que não queria mais sobrar. Fui campeão de vôlei, servi o Exército, liderei movimento na paróquia, namorei a menina que todo mundo queria, perdi o medo de altura, ganhei faixa preta de kung fu, aprendi boxe. Mas não esqueci de como é amargo ser escolhido por último no futebol.
     Porque por mais que eu me pinte de machão nessa história toda, ainda sou tímido e medroso. Ainda me pego recebendo troco errado e não dizendo nada, aceitando o pedido que veio errado no restaurante, pagando a conta absurda de celular sem questionar, ficando no acostamento por causa de uma fechada no trânsito, esperando o próximo ônibus porque o motorista fechou a porta na minha cara, deixando que me puxem o tapete.

* * *

No dia em que quase fui morto por uma cretina que furou o sinal vermelho e me acertou a noventa por hora, um sujeito buzinava para eu levantar logo e tirar a moto do meio da rua, da frente da pick-up importada dele. As pessoas passavam, apontavam e diziam que "motoqueiro é foda". Só que a culpa não era do motoqueiro sentado na sarjeta, era da senhora mãe de família loira, bonita e bem vestida. Antes de ir embora, ela esticou a mãozinha e, com as pontas dos dedos, me deu um cartão de seguro. Não fui capaz nem de responder "eu tenho seguro, não preciso disso". Não fui capaz de nada. Meu corpo inteiro doía, meu orgulho estava despedaçado. Eu me senti um lixo.
     Tinha gente na rua no dia em que cheguei em casa e ninguém fez nada pelos cachorros. Tinha gente no terminal de ônibus e ninguém fez nada pelo garoto. Tenho medo de ficar como essa gente, de fingir que não vi.
     Acho que nunca vou chegar no ponto de virada, na gota d'água. Duvido que um dia vire um novo Zé da Peixeira. Mas às vezes sinto que estou por um triz.

11.3.10

Viola

Debruçado na janela do apartamento, ele olhou para a viola, largada num canto, atrás da pilha de antigos livros da faculdade.
     Às vezes tinha essas saudades. Saudades da terra onde nasceu, dos campos onde cresceu, da casa onde ainda –se Deus quiser– voltaria para morrer. Saudade dos pomares, das plantações, dos pastos, dos riachos. Do canto do galo, do grito do quero-quero, do mugido, do relincho, do cacarejo, do pio. Do canto próximo de um sabiá, do som distante de um berrante.
     Saudades dos dias, mas principalmente saudades das noites.
     Meses atrás, um telefonema o avisara da morte do pai. O dono da viola. O pai, que carregava a bandeira todos os anos na Festa do Divino. O pai que, todas as noites, tocava antes de deitar-se e que chorou de orgulho quando ouviu os primeiros acordes nascerem das mãos do filho. O pai, sábio de uma sabedoria que não se ensina na escola, que o incentivara a buscar estudo na cidade grande.
     De tudo, do que mais ele sentia falta era das noites. Na cidade não se pode ver as estrelas porque as luzes dos homens ofuscaram a luz do céu. Vivem todos tão ocupados aqui em baixo, tão preocupados com aqui em baixo que esqueceram que existe um lá em cima.
     Quando era pequeno, ele se deitava de barriga para cima no terreiro e via a Lua e todas aquelas estrelas. Ficava lá, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, ouvindo a viola trinar na varanda até que a mãe chamasse para dentro. No dia seguinte, o trabalho era duro: nem tudo na vida é olhar estrelas. Os dias eram difíceis, mas as noites eram gentis e ele tinha saudades delas.
     Então ele saiu da janela. Pegou a viola há tempo tempo encostada e tocou, tocou como se morasse ainda na roça, onde não há vizinhos que reclamem do barulho a essas horas da noite. Uma lágrima correu quando ele viu que ainda sabia como se faz.
     E os vizinhos reclamaram, mas só porque não sabem da tristeza que lhe dá a lua cheia.

9.3.10

Aposentadoria

Não há mais lugar
para a fúria dos poetas,
suspira o Godzilla.

2.3.10

De como me tornei marginal

Até pouco tempo atrás era coisa que quase todo mundo gostava. Em casa era normal, cresci vendo meus pais e lembro da minha mãe dizer, quando pedia para experimentar um pouquinho, que ainda não, que não era coisa de criança. Vai ver foi isso que me atraiu. Daí que no dia que decidi que não era mais criança eu já sabia o que fazer: comprei um pacote e, olha, me senti adulto. Aquela fumaça subindo, aquele cheiro no ar... Era um negócio charmoso.
     Era.
     Porque aí começou essa onda de ser politicamente correto, saudável, ecológico, sustentável e o diabo a quatro. Começaram com campanhas contra, estatísticas de que todo ano não sei quantas mil pessoas têm problemas em decorrência de, que o Estado gasta não sei quantos milhões com, que não sei quanto porcento da renda familiar acaba indo para, que crianças estão experimentando cada vez mais cedo, que na terceira idade o consumo está avançando. Não era mais inofensivo.
     Pessoal mais impressionado começou a parar preocupado com a saúde. Quem era pai largou para não dar mau exemplo em casa. Quem era solteiro deixou para arranjar namorada. Passou um tempo, a coisa foi aumentando. Mais notícias, mais estudos. Obrigaram a colocar mensagens –"o Ministério da Saúde adverte blablablá"– na embalagem, resolveram proibir em lugares fechados, na escola, no trabalho. Não era mais charmoso.
     Eu acabei me adaptando, em alguns lugares ainda era permitido. Frequentava cafeterias no horário do expediente, dava uma fugidinha para uma ou outra lanchonete amiga na hora do almoço. E o povo olhando feio, porque me vieram com essas ideias de consumidor passivo, que quem está por perto acaba se prejudicando também. Aí danou-se: viramos os vilões da história e a coisa ficou séria.
     Não deu outra: dali um tempo em lugar nenhum podia mais. Só na rua e em casa –se a mulher deixar, e a minha não deixa desde que o Júnior ficou maiorzinho e começou a entender as coisas. Foi rápida, a nossa queda: não era mais permitido.
     Inclusive vou admitir agora que, no fundo, no fundo, nem acho tão bom assim. É amargo, deixa gosto na boca. Mas é um negócio bacana, relaxa, serve de boa companhia quando eu leio –cá entre nós, serve de desculpa para uma escapadinha no trabalho também. Não consigo ficar sem e, sei lá, não me entra na cabeça que é errado.
     Já me aconselharam a frequentar um grupo de ajuda. Cheguei a assistir uma reunião –mentira, assisti meia reunião–, e, olha, foi demais para minha cabeça. Nada contra quem gosta de sentar diante de olhares de piedade e dizer "oi, meu nome é Fulaninho e já estou há dois dias limpo", mas, desculpem, não faz meu estilo. Decidi que sairia sozinho do buraco.
     Só que não saí.
     E agora eu estou aqui, de madrugada na cozinha, escondido da minha mulher, que ameaça sair de casa se me vir de novo tomando uma xícara, improvisando com uma meia e pedindo ao Rex que não comece a latir. Deus me livre, as crianças ficarem sabendo que o pai bebe café.