20.10.10

Horário de verão

O sol brilhava bonito já indo deitar no meio dos prédios, mas umas poças aqui e ali no campinho de areia lembravam a gente da chuva que havia caído de manhã. Eu passava em frente à praça, subia a ladeira em direção do centro da cidade, quando vi um homem com seus dois cachorros. Soltos.
     Só a visão de cachorros já me basta para abrir um sorriso, sou desses de dar bom-dia para os vira-latas na rua. "Bom dia, amigo, que dia bonito, hein?". "Bom dia, amigo, hoje o frio tá bravo, hein?". Às vezes fico pensando como é que pode um bicho ter chegado a esse ponto de ser tão assim.
     O cachorro branco, grandão com cara de filhote, rodeava corria pulava saltitava latia fazia festa. O preto, barbinha branca despontando no focinho, andava sossegado, meditando sobre como esses jovens têm energia para gastar.
     Segunda-feira –porque domingo não conta, domingo é café-com-leite– começou o horário de verão. Minha cachorrinha dorme na cozinha, abrigada do frio das madrugadas de Curitiba e, quando acendi a luz para tomar café da manhã, ela me olhou com uns olhinhos preguiçosos e ressentidos de "que é que você está fazendo aqui a essa hora?". Não existe horário de verão para os cachorros.
     Eu subia a ladeira resmungando atrapalhado com o guarda-chuva numa mão, o livro do James Bond e as blusas que insistiam em ficar caindo na outra. E o filhotão pulava de uma alegria tão pura que me pegou desprevenido. Uma alegria tão canina. Passou numa poça, a água subiu e virou festa, porque o mais velho agora corria e pulava também.
     O dono, caminhando com as mãos para trás, não brigou, não xingou, não praguejou. Deixou que os cachorros fossem cachorros. Acho que não viu que, do outro lado da rua, eu sorria também. Aproveitava o horário de verão, o dia até mais tarde para passear na praça e deixar que seus cachorros fossem cachorros.
     Não existe horário de verão para os cachorros. Para eles é sempre agora.
     Engraçado como tantas vezes são pessoas desconhecidas que me dão os momentos de felicidade mais pura. Que me perdoem os parentes e amigos. É a felicidade inesperada, que vem enquanto subo ladeiras atrapalhado com as mãos cheias de mais coisas que consigo carregar. Como na vez em que demorei na cafeteria e me atrasei para um encontro só para ficar vigiando de canto de olho uma senhora que tomava meia garrafa de vinho e lia, deliciada, um livro do qual, para minha frustração, não consegui ver a capa.
     Na terça não acendi a luz e preparei meu café da manhã no escuro.

16.10.10

Dia a dia #12

Toda vez que pego o potinho de tampa vermelha penso que meus ancestrais mataram e morreram, moveram mundos e fundos, se aventuraram em mares desconhecidos só para que eu pudesse polvilhar um pouquinho de canela em cima do arroz doce. Sem contar o cravo no doce de abóbora. É um negócio meio solene.

12.10.10

Doze de outubro

Permita, Senhor, por intercessão de Nossa Senhora Aparecida, padroeira dos motociclistas, que eu e meus companheiros cheguemos sempre aos nossos destinos.

6.10.10

Titicaca

Sentado à janela do ônibus –uma van velha, lotada de camponeses e com três ovelhas amarradas no bagageiro em cima do teto–, eu apertava os olhos para descobrir até onde ia a paisagem seca e sem cor. O altiplano boliviano, encravado nos Andes. Como se Deus tivesse pisado ali, bem no meio das montanhas, e aplainado com Sua pegada gigantesca um bocado de terra que ia muito além do que meus olhos míopes alcançavam.
     Quando era menino, ficava horas fuçando num grande baú de gibis antigos no porão da casa da minha avó. Meus favoritos eram os do tio Patinhas e foi num deles que li o nome pela primeira vez. Não me lembro da história; lembro, para ser bem sincero, de um quadrinho só: um barco de palha sumindo no meio da neblina. Era um lago de água e de nuvens, o lago Titicaca.
     O sol brilhava, o motorista xingava o motor velho e barulhento, uma senhora se compadecia –"¡ay, pobrecitas!"– toda vez que as ovelhas amarradas lá em cima baliam, e eu viajava atrás de um sonho de menino. Sozinho. Minha vida havia desabado meses antes e eu tentava procurar nos escombros um resto de mim.
     A paisagem custava a mudar mas, aos poucos, o marrom do deserto ia sendo salpicado por um verde tímido aqui e ali. Chegávamos perto. Notei, de repente, num susto, que lá não havia pássaros. Não me lembro de ter visto nenhum nessa viagem.
     Quando dei por mim, todos os rostos me olhavam. Eu pensava em pássaros e não notei que estávamos parados e que o motorista berrava. Hora de saltar. Um garoto trepou na escadinha e me arremessou a mochila lá do alto. Puxei uma moeda do bolso e ganhei um sorriso sem dentes quando ele viu que era das graúdas. A van continuou viagem pela estrada poeirenta e sem fim e eu tive dó das ovelhas.
     Uma brisa salgada me inflou as narinas e então eu soube que havia chegado. Andei pela rua principal do povoado, entre índias de saias coloridas e toldos de armazéns baratos, até chegar numa subida suave que acabava logo ali adiante. Eu sabia o que me esperava. Corri. A mochila não pesava nada nas costas, o peso nos ombros havia sumido. Travei bem os dentes para que o coração não saltasse para fora. Subi mais um declive leve e então.
     Magnífico.
     Acho que nunca tinha falado essa palavra. Deixei escapar em voz alta, "magnífico", porque era o que eu via. Um azul profundo. Um azul sagrado, antigo. Ondas suaves lambiam as pedras na margem. Não tinha fim. E ali não era mais a paisagem seca e sem cor, tudo era verde e vicejante. Um azul generoso.
     O lago Titicaca. Puxado por mágica de um baú da minha infância, no porão da casa da minha avó.
     Contra a luz, vi a silhueta escura de um menino que atirava pedras. O lago parecia não se ofender com a brincadeira, como um pai paciente.
     E o sol se punha.