27.9.09

Crônica erótica

dizia o Cortázar, contradizendo esse pessoal mais saidinho, que se um autor não se interessa pela literatura erótica está tudo resolvido, e dá o exemplo do Borges. Vai ver eu, como fã do Borjão, acabei incorporando isso e deu que nunca escrevi nada assim mais picante. Só que hoje eu tive uma ideia, uma história proibida para menores.
     É hora de deitar no quarto de um casal. A mulher está terminando a sessão de cremes essências óleos géis máscaras sprays tratamentos de fim de dia. Rosto, mãos, pernas, pés, pescoço, cotovelos, pálpebras, dedo mindinho esquerdo: tudo tem produto próprio, cada qual com seu cada um.
     O marido sai do banho e vai para a cama. Sente o cheiro na suíte:
     — Cheiro bom, que é?
     A mulher, rosto azul da máscara revitalizante, responde, enquanto ajeita uma rodela de pepino sobre o olho esquerdo:
     — Erva-doce.
     O marido reclina-se ao lado da mulher, que agora troca a rodela de pepino do olho direito por uma compressa de camomila. Passa ao marido a rodela para que ele jogue no lixo. Ele, tentado pelo cheiro bom daquela meleca azul, passa a fatia no creme e prova. Fala baixinho:
     — Não, não. Acho que fica melhor com alguma coisa mais picante.
     Ela, ouvindo o comentário, levanta a compressa de um dos olhos e vê a cena. Acha divertido, decide entrar no jogo:
     — Tenta com esse aqui, ó. Gengibre com especiarias.
     — Ah, bem melhor.
     O marido sente, então, um aroma que vem de baixo dos lençóis, algo bem feminino. A esposa explica, oferecendo o braço:
     — Morango. Com champanhe nos cotovelos e com baunilha nas mãos.
     — Bom. E isso aqui, o que é?
     — Pitanga. Mas depois eu passei amêndoas por cima.
     — E nas pernas? Peraí, não fala, não fala! Vou descobrir...
     — ...
     — Chocolate?
     — Mais ou menos. É cacau, na verdade.
     Ele agora mergulha os saquinhos de camomila na água quente que ela usou para o escalda-pés.
     — Você não passa mais aquela mistura de ovos no cabelo? Acho que cairia bem.
     — Hoje eu não mexi com cabelo, não deu tempo. Mas tem maracujá nos calcanhares.
     O marido avança, é louco por maracujá. Pensa um pouco, hesita um pouco, e pede:
     — Sabe que eu tava querendo algo assim mais... mais...
     A mulher se arrepia:
     — Mais...?
     — ... selvagem! Isso, algo selvagem! Exótico.
     — Planta dos pés. Cupuaçu e frutas da Amazônia.
     — Isso! Isso!
     O marido tomba, então, exausto, ao lado da mulher. Vira para o lado e, no minuto seguinte, ronca feito um anjinho. Ela espirra um negocinho refrescante de guaraná e apaga o abajur.

23.9.09

Fim de inverno

Que bela moldura:
ver o céu de inverno entre
os galhos de ipê.

O jantar

Epílogo
(Partes anteriores: I, II, III, IV e V)

A polícia vasculhou o lugar, mas não encontrou traços de mais ninguém que tenha estado no salão, com exceção das vítimas. O episódio foi –trocadilho de mau gosto– um prato cheio para os jornais. Teorias não faltaram, mas o mistério jamais foi desvendado.
     Ninguém nunca comprou o imóvel onde ficava o bistrô. Como um museu sinistro, o lugar continua lá, intocado há anos, cadeiras e mesas cobertas por um lençol de poeira.
     Volta e meia algum bando de moleques corajosos tenta, em vão, forçar as barras das janelas, só para descobrir que não se podem abrir. E há quem diga que, se aguçarmos o ouvido nas noites de sexta-feira, podemos ouvir o barulho de panelas trabalhando na cozinha e talheres tinindo no salão.

22.9.09

O jantar

V
(Partes anteriores: I, II, III e IV)

Na cozinha, senhora L. aguçou os ouvidos e alertou o marido: alguém acabara de sair do banheiro e provavelmente os ouvira conversando. Chef L. pareceu não se importar muito:
     — Bom, a esta altura não fará mais diferença se eles descobrirem que nós estamos mortos. Logo eles estarão também.
     E, de fato, se tivessem lido a nota publicada no jornal local de uma cidadezinha nas montanhas há um ano atrás, os convidados saberiam do acidente de carro que matou um casal de franceses em passeio pela região. Um parente que morava nas redondezas se encarregou do enterro discreto. O chef cantarolou um último verso antes de sair para o salão.
     — “... nous récitions des vers, groupés autour du poêle en oubliant l'hiver...”
     A frágil bailarina foi a primeira a desmaiar sobre o prato. Os músicos já haviam cessado de cantarolar. Signora B., que sempre demonstrava tanta indiferença pelo marido, tentava desesperadamente reanimá-lo enquanto ela mesma também sufocava. Os apaixonados K. tinham-se estendido as mãos antes de perder os sentidos. O desembargador e o general, homens fortes, tentavam sem nenhuma compostura arrombar a porta trancada. A bela M. jazia ao lado do namorado, o último de tantos. A mão do crítico deixara cair ao seu lado a caneta com que escrevia. O professor de latim, irônico e resignado, comia uma última garfada: estava tudo tão bom.
     Num último esforço o cônsul virou-se ao amigo, que, no meio do salão, parecia se deleitar assistindo o fim dos seus melhores clientes, os que sempre só souberam apreciar seu talento. Então, o fantasma do chef L. explicou-se, coisa que nunca fez em vida:
     — Mes amis, estar morto é um tédio. Todas aquelas pessoas desinteressantes, ninguém para apreciar meu talento. É terrível conviver (palavra estranha, non?) com gente assim, não sabem nem pronunciar os nomes dos meus pratos! Mas vocês, vocês são pessoas com algo na cabeça! Embora tenham de aprender muito, tenho que admitir que são clientes bem razoáveis. Bien, em breve estaremos todos juntos no lado de lá. E eu terei minha clientela de volta! Voilà!
     Quando o relógio bateu meia-noite já não havia mais alma viva dentro do bistrô.

14.9.09

O jantar

IV
(Partes anteriores: I, II e III)

Logo começaram a chegar os pratos e os ânimos melhoraram, tanto no salão quanto na cozinha. Chef L. agora podia ser ouvido cantarolando baixinho enquanto sua esposa entrava e saía pelas portas da cozinha carregando bandejas.
     Só uma salade niçoise para a bailarina, blanquette de veau para os músicos, coq au vin para os K., ratatouile para o professor de latim, um enorme caldeirão de pot au feu para o desembargador, porções duplas dos pratos preferidos da signora C., o que sobrasse disso para o signor C... Em cada mesa que senhora L. parava, um sorriso se acendia.
     Na cozinha, o chef cantava agora a plenos pulmões. O silêncio do salão era o elogio que mais lhe agradava. O clima agora era leve, todos sentiam-se felizes: a mágica da boa culinária.
     Depois de beber uma garrafa de vinho, o crítico de literatura levantou-se para ir ao banheiro. Acendeu as luzes. A janelinha dava para um cubículo escuro, o quintal atrás do restaurante, para onde fugiam a fumaça perfumada dos exaustores da cozinha e o som da voz de chef L. cantando Charles Aznavour. Uma bela canção.
     — "La bohème, la bohème, nous ne mangions qu'un jour sur deux..."
     O crítico, espantado com a boa voz –e o bom humor– do chef, apurou o ouvido, chegou mais perto da janela. Ouviu, então um ranger e um bater de porta. O chef parou de cantar e a senhora L., que devia ter entrado na cozinha, pediu outra porção de foie gras para a mesa 13, senhorita M. O crítico ouviu algo que devia ser um grunhido de aceitação e, logo em seguida o chef, perguntou:
     — Ainda vai demorar muito? Não tenho muito tempo.
     — Mas como você está agitado, querido! Calma, logo virá o efeito.
     O crítico puxou a descarga e saiu rápido do banheiro. Efeito, que efeito? Antes de sentar-se, apressado, teve a sensação de que o chão se mexeu sob seus pés.