14.5.07

A cristaleira

Quem entra na casa do seu Glicério logo vê. Bem no meio da sala, na parede maior, de frente para a Santa Ceia: lá está a cristaleira da dona Eulália. Daquelas que não se faz mais como antigamente, de madeira de lei, pés entalhados e duas portas de cristal com friso dourado. Mais umas fotos 3x4 das filhas e dos dois netinhos encaixadas por trás do vidro. E, por cima, umas toalhinhas de crochê que ela faz.
     É quase uma arca do tesouro. Um jogo de copos tchecos, um faqueiro de prata italiano, um conjunto completo de pratos portugueses com florais azuis, um sisudo bule com suas xícaras vitorianas, um açucareiro de porcelana que ela jura chinesa e uma garrafa de cristal da Boêmia com um líquido verde que ela já esqueceu o que é. Seu Glicério, inclusive, defende a tese de que é possível alguém dar a volta ao mundo sem sair de dentro da cristaleira.
     Acontece que, assim como nosso bom e velho companheiro tem seus caprichos, dona Eulália tem os dela. E a regra número um é simples: na cristaleira ninguém mexe. Ninguém, e ponto. Só ela, e em dia de limpeza. Porque, diz, aquilo é herança de família. E não tem negociação: seja aniversário, seja Natal, seja casamento, dona Eulália serve tudo em copos de requeijão.
     Quando mudaram para o apartamento novo, o Jorjão do frete se ofereceu para carregar aquele —como ele mesmo disse— armarinho com tudo dentro. Dona Eulália quase teve de ser socorrida às pressas quando ele —um sujeito quadrado de dois metros de altura por dois de largura— já ia abraçando a cristaleira.
     Ela acabou embrulhando cada peça numa folha dupla de papel e organizando, cuidadosamente, cada seis delas numa caixa cheia de mais papel amassado. Coisa que levou ali umas oito horas. E nada de jogar no caminhão: nosso paciente amigo Glicério teve de levar tudo no banco traseiro do carro, e nem pensar em passar dos vinte por hora. Quase que um guarda parou para verificar se se tratava de contrabando de nitroglicerina.
     Outro dia, a Marcinha, que está grávida, quis fazer graça e ameaçou desmaiar bem em cima da cristaleira. Dona Eulália foi mais rápida e desmaiou antes. Só descobriu que era brincadeira quando acordou. Enquanto abanava a esposa, seu Glicério lançou um desafio:
     — Mas nem se o Papa bater na porta e pedir um copo de água, pelo amor de Deus?
     E ela continou inflexível:
     — Aí eu sirvo neste de geléia, que tem florzinha do lado. Deus me livre, os copos da mamãe!

* * *
Clique aqui para ler as outras aventuras do seu Glicério.

10 comentários:

Professor disse...

eu me divirto com estes dois... agora vem cá, dá para fazer um livro só com as aventuras dele... hehehehehe


Gostei do final que vc fez para a poesia, se não fosse para alguém em especial eu incorporava na poesia

Diego disse...

Muito boa!!!!

Parace a casa da Sela, aonde tem a mesa de jantar que nunca serviu um mísero jantarzinho.

Eu digo que é a mesa do presidente, para o dia que ele for jantar lá em casa :P

Zana disse...

hahhahahahaha!! Que legal essa historia, lembrei da minha vó, que tem exatamente uma cristaleira desse jeitinho, a unica diferença que ela usa os copos e os pratos rs...Eu adorei seu blog tbm, vou passar aki todos os dias...e com certeza pode virar leitor do meu!!!um grande bju

Jane Malaquias disse...

Lembrei da cristaleira da minha avó, era onde ela guardava os sequilhos, os pãezinhos de queijo. A cristaleira tinha um cheiro especial de madeira com biscoitos caseiros, ai, ai, ai.

Isadora disse...

é por isso que eu voto em você: foi o MELHOR post sobre o papa que eu li assim, em meeeeeeeeeses de "o papa é pop" !

ah menino, você é meu ídolo, viu !?

(eu tenho uma cristaleira em casa. quando vem visita, meus pais compram vinho de 5 reais no supermercado. um dia, a visita perguntou "pq nao tomamos o licor de cacau?". resposta: "pq não é de cacau... era de pêssego.")

dän disse...

ow... essa aí é A MINHA MÃE escrita.

literalmente escrita!

Anônimo disse...

como sempre ,mais um excelente texto ! linkei aqui,ok ?

valeu

Anônimo disse...

kkk...sabe que hoje parei pra "ouvir" o nome "glicério"..... fonéticamente falando, será que ele tem cara de glicerina?! hehe

beijo

Pathaua Brasil disse...

Moro na casa da minha vó (recentemente falecida), e lá tem uma cristaleira dessas, com fotinhos da familía e louças variadas.
Precisa ver a briga pela tal cristaleira, todos querem de herança!
Virou peça cult de decoração!

Fernando disse...

"dona Eulália serve tudo em copos de requeijão."

Hahaha... pois foi o mesmo aqui em casa por anos...!!

Ótimo.

P.S.: pena que há copos de requeijão tão feios e inadequados hoje)