10.1.08

Na livraria

Quando a vi, ela estava na seção dos nacionais. Tinha acabado de passar pela poesia e começava agora a olhar os títulos de prosa. Foi o incentivo que eu precisava para deixar de lado as gôndolas centrais, das sugestões da loja —que eu nunca aceito—, e também me aventurar entre as prateleiras.
     Demorei um pouco num livro do Drummond para dar a ela alguma dianteira. Mesmo de rabo de olho foi possível ver que é bonita. Os sapatos e a bolsinha colorida denunciaram um par de olhos de menina por trás dos óculos. Ela avançou até Clarice Lispector. Bom sinal, leitura de mulher forte, independente. Avancei, enfim, para a mesma prateleira e fingi interesse num Jorge Amado.
     Passando os dedos finos, mãos delicadas, pelas lombadas, ela analisou com cuidado o Q e o R. Rachel de Queiroz, Mario Quintana, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa. Talvez procurasse algo, mas, pelo visto, não encontrou.
     Então, de um salto, ela pulou para o final dos brasileiros. Pegou um do Verissimo pai, Erico, e olhando alguns Cony, eu senti um rastro suave de perfume. Decidi chegar mais perto. Machado de Assis, o bom e velho, me oferece uma posição estratégica, logo ao lado dela. Sinto melhor o cheiro, doce na medida certa.
     Ela devolve o livro e passa os olhos pelos do Luis Fernando, Verissimo também. Não se interessa por nenhum. Será que, como eu, ela já tem todos e está esperando o próximo lançamento? Não pode ser só coincidência. Um sorriso que quase quer aparecer no cantinho dos lábios mostra que, sim, ela é bem-humorada.
     Num movimento gracioso, ela virou para a prateleira de trás e entrou no domínio dos estrangeiros. Eu me demorei ainda um pouco nos nacionais e, de costas para ela, pude ver melhor seus cabelos. Pretos, macios. Não é alta nem baixa, é sob medida.
     Li a surpresa nos olhos dela quando viu os Borges e pensei, triunfante: "tolinha, ainda não sabia que estão relançando as obras completas dele". Eu pensava que teríamos muito o que conversar e então ela se abaixou, para ver melhor o Calvino. Será que ganharia algum ponto se contasse a ela que tenho quase todos?
     Decidi tomar a dianteira e fui até o Dostoievski, no fim da estante. Quando passei por ela senti novamente o perfume e imaginei o calor do seu corpo. Não demorou muito até que ela, ignorando o García Marquez, passasse por mim e fosse para o outro lado da estante. Instigante, esta era a palavra para ela.
     A estante baixa e a posição estratégia do Umberto Eco permitiram que eu ficasse frente a frente com ela. Ela tinha os olhos baixos, provavelmente na letra J, quem sabe um James Joyce. Dei a volta também. Um Hemingway amigo ofereceu-me refúgio, rápido. Estiquei os olhos e vi que errei: era Kafka que ela olhava. Ela umedeceu os lábios com a língua e, num gesto atrevido, atravessei o braço diante dela, os corpos quase se tocando, para alcançar um Llosa.
     Talvez por imaginar que eu tivesse algum problema —sem notar, eu lia a capa de ponta-cabeça—, ela fugiu para longe, pediu socorro ao Pamuk. Decidi impor o ritmo da coisa. Fui ganhando terreno e a empurrei para o Proust. Calor no fundo da livraria, ela levantou os cabelos num coque improvisado —ai, meu Deus!—, mostrando a pele branquinha do pescoço.
     Demoramos bastante no Saramago, o velho Zé ajudou a acalmar os ânimos. Não tentei dessa vez nada mais ousado. A certo ponto, ela fez um "hum" de interesse —para mim foi o suficiente para adivinhar que tinha boa voz— e, em seguida, deu um passo para o Tolstói.
     Virginia Woolf. Estavam acabando os livros. Decidi pedi-la em casamento, de uma vez: "oi, quer casar comigo?". Juntaríamos nossas bibliotecas e viveríamos felizes para sempre!
     Mas então ela deu uma guinada brusca e voltou para as gôndolas centrais, as horrendas gôndolas centrais, dos best-sellers. Pegou o último do Paulo Coelho e foi para o caixa. Fiquei ali, meio sem reação e, pela vitrine, eu a vi ir embora.
     Posso ter perdido a mulher da minha vida, mas Paulo Coelho não entra lá em casa.

25 comentários:

Anônimo disse...

Antes que me achem um "tarado da livraria" ou coisa do tipo, essa história foi inventada, tá?

:P

Eduardo Vilar disse...

hahaha
seria muito perfeita demais para ser verdade :P

o final foi mesmo dramático hahaha. o suspense de qual livro ela ia pegar ficou muito bacana
gostei bastante do conto!

quanto ao comentário no meu blog, às vezes é melhor nem pensar e deixar o universo escolher...

abraços!

Stephanie disse...

ah, que pena...

eu estava pensando em ir comprar livros em Curitiba! pedir seus Calvinos emprestados, ou te pedir em casamento (hahahahaha)

ai ai, a ficção... só faltou passar pelo Cortázar depois do Borges e dar uma espiada nos existencialistas!

=)

beijo

Stephanie disse...

voltei pra responder seu comentário:

Bruno, eu li a autobiografia da Doris Lessing e fiquei muito impressionada com a lucidez com que a mulher fala da vida dela, de suas posições políticas (ela era comunista durante a guerra fria) e de literatura. Fora que ela não era uma moça convencional para os padrões de quem nasceu nos anos 20...

a autobiografia dela se divide em dois livros: Debaixo da minha pele e Andando na sombra.

ando atrás de O Carnê Dourado, não só por ser um dos livros mais conhecidos dela, mas também porque é um dos mais ousados - mistura trechos de diário e a narrativa.

espero que você goste!

beijo

Zana Queiroz disse...

meu!!pode ter certeza que o dia que vc achar a mulher da tua vida , ela será o oposto de ti!!
hahahaha os opostos se distraem, o dispostos se atraem... adorei seu post...vc é demais , tenho uma certa inveja literária de vc!!!! bjus

Tyler Bazz disse...

Porra, Bruno!
É difícil escolher o seu melhor texto, mas esse é do tipo que merece ser enviado por email para os amigos! Muuuito bom!
Sensual e literário AUHauhAUHA

o/

Unknown disse...

kkkkkkkkkkkkkkkk.....sabia! Paulo Coelho e Harry Potter, não passam nem perto seu quarto!

Discutindo Espiritismo disse...

haiuehauiehiuaheuiahiea...
adorei o texto! nossa, demais!

eu concordo com o comentário ali de cima. é um texto muito massa pra mandar pra gente querida. =D
[e concordo com a parte da inveja literária também...]

- e Clarice Lispector é minha preferida. -

Nathalia Alvarez disse...

estava td indo tão bem...
até chegar o Coelho.

concordo com vc, mas infelizmente moro com meus pais e eles gostam dele.

Anônimo disse...

A outra metada da laranja... seu texto alma gêmea. No me gusta pero recomendo que o veja.
http://montacabeca.wordpress.com/2007/10/18/de-mim/

Confesso que Tieta é minha favorita. Mentira, como sou beija-flor e beija-flor fêmea é claaaaro que é Dona Flor e seus 2 Maridos.

Bicadas banguelas.

Unknown disse...

é...oi vc naum me conhece, mais me considero uma apaixona pela literatura amadora(espero q não julgue como uma ofensa), gostaria de agradecer por me proporcinar uma dose de prazer ao ler o seu blogger, dentre tantos q já "fucei", a sua facilidade de escrever e de nos fazer viajar, foi oq q mais me chamou a atenção!
O seu dom esta estampado em cada palavra e em cada frase aqui postado! Por isso já me considero uma frequntadora ascidoa!

Diego disse...

HHAHAHAHA Bom txt.

Ah, paulo coelho é legal. O cara tá muito mais rico que nos dois junto escrevendo as mesma coisas que todo mundo jah sabe, que nem o segredo.

seu chato.

Anônimo disse...

Cara, achei que tinha acontecido mesmo, tava muito revoltada, uma pessoa que se interessa por Borges não pode gostar de Paulo Coelho... Mas vc deu uma pista, quando ela ignorou o García Marquez...

Anônimo disse...

Eu ignoro o García Márquez e não me envergonho disso. Tem que ter guts para tal.

Murdock disse...

Acho que nunca vi uma mulher interessante numa livraria...

A Autora disse...

Oi Bruno
saudades....
ri muito
delicioso o texto...como sempre fico viajando numa esqeute de teatro...coisas de atriz...sua forma de descrever é ímpar...agora algumas coisas
fiquei toda pimpona porque AMO AMO AMO Clarice, ELA ME ACOlhe ha TEMPOs, mas nem sei se sou tao forte e/ou independente...sei qeu tento.....a sua lista de escritores está ótima..nada contra...amo vários afinal somos todos filinhos pretensos desses peixões maravilhosos...só que Paulo Coelho nem é tão ruim assim...del só li 11 minutos e Zahir e penso que é é popularesco sim , sem estilo talvez, um pouco tosco, mas no meio de tudo isso há coisas bonitas, singelas também...'talvez caiba mesmo à escritores como ele traduzirem "os clássicos"...para quem nasceu senso comum e morreria mais burro ainda sem um Alquimista e de mais a mais lembre-se que Guita, uma das músicas mais belas de Raul seixas foi escrita por ele...hahaha
só apra trocar idéias....
no mais tudo de bom para vc...que continue compartilhando este talento menino
beijão de ano novo
Carol Montone

Júnia disse...

Realmente! (Respondendo seu comentário)

Tomara que ela não seja a mulher da sua vida, então, hahahá.

Esther disse...

Olá Bruno...Criativo o texto, prende nossa atenção até o final brochante.

bj

Camila Costa disse...

hahaha...muitoooo bom, e o final é surpreendente! Adorei.
Eu sei que já deves ter lido/ouvido isso um milhão de vezes, mas como é real, eu nem me importo em repetir: escreves muito bem, moço! :)
Sempre é um prazer vir aqui.

Que suas idéias e seus dedinhos continuem sendo abençoados. <=D

beijos e boa semana.

Anônimo disse...

desde a primeira prateleira eu estava aqui torcendo "Paulo coelho nããããããooooo!"

Juro.

-any valette disse...

shdhsadiuhaduhsdusd

adorei! Muito mesmo!
Impressiona-me o ritmo com que escreves! Há algum tempo que não leio nada que tire tanto a respiração, e olha que tenho andado lá pelo dumas filho, um nome clássico. Enfim, parabéns pelo texto :D



[e obrigada pelo comentário no meu blog (; se ganhei um leitor que escreve tão bem assim, tô mais que feliz]

Anônimo disse...

Mas Bruno, pode ser que ela tenha decidido levar o livro apenas para dar de presente a alguém. E mesmo assim, não que aquele livro esteja entre as opções dela (para presentear), mas porque ela sabe que quem vai receber gosta bastante. Ela só quis agradar alguém e mais nada. Tenta encontrá-la por lá novamente (em um novo conto) e tira isso a limpo de uma vez, hehe...

Ah, mas de qualquer forma, que incrível seria encontrar alguém tão igualzinho assim. Eu nunca cheguei nem um pinguinho perto. Humpf! Ah, não me faz ficar sonhando com isso não Bruno, hehehe...

=)

Zé(d's) disse...

gênio!

Anônimo disse...

ótimo.

ex-amnésico disse...

Estupendo! Devia estar em livro, por sinal.

Hehehe! "Tarado da livraria"! Sabe que é uma idéia interessante (para se escrever a respeito, note bem!)?