Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 17.10.2008)
Numa sexta, depois de uma cerveja com os amigos, ele chegou em casa molhado da garoa fina. Sozinho, ninguém na garupa da moto. Um gato fugiu, rápido, quando ele abriu o portão.
Numa sexta, depois de um cinema com as amigas, ela voltou ouvindo música baixinho no carro. Sozinha, ninguém no banco do carona. O cachorro correu para saudá-la na garagem.
Debaixo do chuveiro, ele pensava que a havia deixado escapar. Escapar como a água que agora corria para o ralo. Delicada, refinada. Uns olhos que faziam a coisa valer a pena. Bela garota, talvez a que ele andava precisando para deixar de vez de viver do passado.
Sentada no sofá, ela lembrava de como ele, desde a última vez, sumira. Sumira feito a fumaça do chá que ela agora assoprava. Bem-humorado, bom caráter. Uma voz que a fazia sentir-se mais leve. Bom rapaz, quem sabe o que ela estava esperando para viver o futuro.
Pensando consigo, ele sabia que tinha mexido com ela. Certa vez concluíra –embora não fosse dizer isso jamais– que ele deveria ser diferente dos outros com quem ela havia convivido até então. Notara como ela parecia mais à vontade e deixava-se afundar lentamente nas cadeiras quando estava ao lado dele e como –coisa tão sutil nela– tocava-lhe as mãos, às vezes, enquanto conversavam.
No fundo, ela sabia que havia, sim, despertado o interesse dele. Um dia tivera a impressão –que jamais dividiria com ninguém, para não soar pretensiosa– de que ela trouxera frescor ao mundo tão rígido dele. Notara como ele se empertigava todo ao entrar em algum lugar ao lado dela e achara bonitinho o gesto –parecia tão natural nele– de empurrar as portas e deixá-la entrar antes.
Para ele, não havia mais volta. Hesitante, deixara o tempo passar, deixara as coisas chegarem a um ponto onde não havia mais conserto. Na verdade, para ele, tudo havia começado errado.
Para ela, tudo estava perdido. As coisas tinham esfriado, culpava-se por talvez ter sido muito precipitada, talvez tê-lo assustado de alguma forma. Para ela, terminaram tudo errado.
Mas, no fundo, pensava que cederia caso ela voltasse. Censurava-se por ter pensado demais.
Porém, tinha uma esperança de que ele aparecesse. Consolava-se por ter sentido demais.
No quarto, antes de dormir, ela ouvia Chet Baker. Lembrava de terem comentado uma vez e sorrido ao descobrir esse gosto em comum.
E no quarto, antes de dormir, ele amaldiçoava Chet Baker porque cantava, com sua voz mansa, no ouvido dela, tudo o que ele fora covarde demais para dizer.
8 comentários:
eu adoro esse texto. lembro que eu li e reli na sequencia, querendo que o final mudasse, que ela ligasse pra ele, que ele fosse atrás dela - inconformada.
confesso que fiquei aqui essa semana acompanhando os textos e achei superlegal ver conhecidos que gosto muito e descobrir outros que antes de eu começar a frequentar o acepipes. Tava esperando esse texto aparecer por aqui, hahaha.
vou aproveitar e dar os parabéns de novo e dizer que é muito feliz quando nosso blog fica maior do que a gente espera quando inventa ele. Tanto pelos escritos, quanto pelos amigos.
e longa vida ao acepipes!
\0/
beijo
esse texto é muito bom.
eu lembro de quando o li da primeira vez.
é bacana pensar o quanto ele pode fazer sentido, e o quanto o Chet é incrível independente da situação pela qual voce passa com ele.
parabéns pelo texto e pelo blog, espero que continue por aqui bastante tempo!
Também lembro quando li esse texto. Acho ele mais incrível cada vez que leio.
Parabéns pelo aniversário do blog e pelos textos.
Amo passar por aqui.Sei lá. É tudo tão leve! Sempre faço questão de voltar.
;D
Esse foi e é top... conheci o Chet por esse texto
Ao contrário de todo mundo, aqui, rsrs, eu não lembro qdo li esse texto pela primeira vez, pq nunca li, mesmo...
Mas, olha, ótima essa sua idéia de republicar seus textos. São tantos parceiros de blog, tantos textos, que talvez nunca lesse essas suas 'retomadas'.
Muito bom. A vida como ela é. Desencontros, na maioria das vezes, movidos pelo orgulho e pelos pre conceitos (no sentido mais literal da palavra).
Um beijão!
Sempre torcemos pelo final feliz, mas sabemos que o que acontece na realidade é sempre mais desencontros que encontros...
No fundo o final feliz que desejamos é um suspiro aliviado, a sensação de paz que tudo deu certo...eles ficaram juntos.
Mas talvez, talvez se o esperado acontecesse, não seria tão mágico, não teria tanta poesia...poderia se transformar no comum.
Este é o poder do inalcansável, do não adquirido, do não tocado...sempre desperta a fantasia, o desejo...e fica sempre no sempre.
Eu penso que os finais tristes são bons porque tem dupla função: nos alertam dos caminhos que devemos evitar e, quando já trilhamos esses caminhos desencontrados pelo egoísmo ou acaso, nos ensinam que ainda sim há poesia.
Uau.
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