21.12.09

O Frank

— E então o Frank puxava esse banco aí, esse aí que você tá sentado, Carlão, pedia uma dose, encostava no balcão e a gente ficava papeando.
     O "Frank", no caso, era o Frank Sinatra. E quem contava a história, apontando para o banco do lado direito do balcão, bem em frente ao vidro de rolmops, era o seu Juvêncio, dono do boteco, para mais de cinquenta anos de vida boêmia. E contava sempre assim, com toda seriedade do mundo.
     Volta e meia alguém puxava o assunto mais uma vez. Na verdade, era meio que um plano B: quando tudo estava quieto, o futebol estava de férias, naquela época em que acabou o Brasileirão mas ainda não vieram os regionais e o último escândalo político já tivesse dado pizza, eles puxavam o assunto do Frank Sinatra. E o seu Juvêncio não negava prosa.
     Diz que lá pelo final dos sessenta, começo dos setenta, quando o boteco era recém aberto e nem tinha muita coisa ali em volta ainda, o Frank Sinatra apareceu por aquela porta. Veio um dia, voltou no seguinte e virou cliente amigo. Abria o pote e pescava ele mesmo um rolmops, pedia uma caninha e ficava ali, de papo.
     — Mas se o senhor não fala inglês e o Sinatra não falava português, seu Juvêncio...
     — Meu amigo, dois semelhantes, quando se encontram, se comunicam. É coisa de alma.
     E dava um gole em brinde ao amigo falecido. O pessoal da roda ficava sempre entre indignado e divertido,não sabia se chamava o velho botequeiro de volta à realidade –Sinatra tomando cachaça e comendo rolmops em boteco pé de porco?– ou se incentivava a fantasia dele. Eram histórias divertidas, afinal.
     — Volta e meia alguma mulher, toda chorosa, ligava aqui, desesperada para falar com ele. O Frankie ficava ali, acenando, e eu dizia "Frank Sinatra no meu bar, minha senhora? Não me faça rir!"
     E virava outro gole. O bom do seu Juvêncio é que ele parecia não notar a ironia dos amigos. Quando pediam para repetir alguma, ele fingia não ouvir os risos escondidos e a ironia nas vozes. Para ele, falar do Frank era assunto sério.
     — Então ele combinou de fazer um sinalzinho. Disse que quando coçasse a orelha, é porque aquela era pra mim. Grande Frank.
     Outro gole.
     Um dia anunciaram atração de gala na Globo: especial do Sinatra. De madrugada, é claro, porque horário nobre é só para cantora de axé. Combinaram de assistir todos ali no boteco. Naquela noite, o seu Juvêncio não contou nenhuma história. Ficou ali, preparando massa e recheio, arrumando o freezer, passando paninho com álcool no balcão de fórmica azul. O pessoal tomou o silêncio como nervosismo: a máscara estava prestes a cair.
     Lá pelas tantas, cantando My Way –justo My Way!–, o Frank Sinatra deu uma coçadinha na orelha direita. Seu Juvêncio deu um suspiro fundo, como quem segura a emoção, levantou o copo em direção da tevê, virou de um gole só e voltou em silêncio para a fritadeira, de onde tirou mais uma leva de pastéis. Tirando a voz do Blue Eyes, o boteco passou o resto da noite em silêncio.
     — The record shows, I took the blows and did it my way...
     Desde então ninguém mais pediu para o seu Juvêncio contar nenhuma do Frank Sinatra. Também, por precaução, ninguém mais sentou no banco do lado direito do balcão, o que ficava bem em frente do pote de rolmops. Com essas coisas não se brinca. Vai saber.

10 comentários:

Magnum Opus disse...

Esse era galãzão...

Anne disse...

Wazaaaaa, chique demais o seu Juvêncio. Acho melhor a gente chamar ele pra brindar com aquelaS vodcaS (sim, no meu caso foi plural, e bota plural naquilo...) e já reserva o banquinho do Frank, pq nunca se sabe...

Adorei essa, menino dos acepipes! Tu tem uma imaginação que é show!!!

Bjos pra ti!

Anônimo disse...

Ai que gostoso que é ler acepipes antes de dormir...
"Meu amigo, dois semelhantes, quando se encontram, se comunicam. É coisa de alma."
Seu Juvêncio sabe das coisas...

Marina disse...

História deliciosa. Não duvidaria que Frank Sinatra tenha mesmo ido lá, já que ele sempre fez tudo o jeito dele.

Henrique Miné disse...

é...Vai saber.

ótimo conto, como sempre e, parabéns pelos três ano de blog..

Keep Walking :D

Nathalia Alvarez disse...

Grande Blue Eyes!

Eu acreditaria numa historia dessas pelo simples fato de querer ter participado dela...

ex-amnésico disse...

É, parece que às vezes é difícil ter certeza de certas amizades; boa idéia essa do sinalzinho!


Boas Festas mnemônicas! (coçando a orelha, hehehe!)

Lua Durand disse...

Vai saber...
ótimo conto, Bruno! Três anos de acepipes e melhorando a cada dia! :)
é sempre bom vir aqui.

até.

Stephanie disse...

é melhor não brincar com essas histórias mesmo. Nunca se sabe o que o Blue Eyes pode ter aprontado num daqueles tempos em que ele precisava dar uma descansadinha dessa vida de star.

muito bom o conto, Bruno.

=)
Feliz Natal pra você!
beijos

Anônimo disse...

"De madrugada, é claro, porque horário nobre é só para cantora de axé" Os pop's e os emos já ganharam espaço, colega.
Curti seus textos, criativos.
Parabéns!