23.3.10

Uma de comédia romântica

Chovia.
     De longe, ela viu o carro e soube o que ia acontecer. Tem vezes que a gente simplesmente sabe, então ela soube, foi mais para o fundo do ponto de ônibus e começou a chorar por antecipação. Droga.
     Tinha passado outro dia na frente da loja, se apaixonado pelo vestido, namorado por uns dias, pensado "ai, mas é muito caro", comentado com as amigas, pensado "ah, mas eu mereço", entrado, provado e saído com a sacola. Em vezes no cartão, várias vezes. O resto do limite foi num sapato, umas bijuzinhas, aquele batom. Essas coisas.
     Tinha se arrependido e desarrependido umas dez vezes no ônibus de volta para casa. Provado na frente do espelho e não gostado, depois provado de novo e voltado a gostar. Tinha também ouvido o comentário da mãe e decidido trocar, ouvido a opinião da irmã e resolvido ficar com ele. Tinha se imaginado em situações, virando para a direita, olhando por cima do ombro, andando devagar, ajeitando a alça, jogando o cabelo. Essas coisas.
     Tudo porque o cara do financeiro, que não decidia se casava ou comprava uma bicicleta, havia decidido finalmente e a convidado para sair.
     Daí o vestido, daí a insegurança, daí a euforia, daí a insegurança de novo e a euforia de novo umas dez vezes, daí ela estar chorando por antecipação no ponto de ônibus numa noite de sexta debaixo de uma garoinha chata com um carro vindo na sua direção. Droga, droga.
     E então o carro chegou.
     Não, ela não morreu atropelada: foi pior. O carro passou e levantou uma onda de água. Um tsunami de lama que molhou os sapatos, emporcalhou a bolsa, respingou no cabelo. E o vestido, acabou com o vestido.
     Então ela voltou para casa, ignorou o pai, mandou a mãe para o inferno, bateu a porta na cara da irmã, desligou o celular, chorou debaixo do chuveiro quente, fez as pazes com a mãe, chamou a irmã para desabafar, ganhou um beijo silencioso do pai, ficou de pijama de pelúcia rosa no sofá da sala assistindo um filme da Jennifer Aniston e devorou todo o chocolate –inclusive um pacotinho de granulado– da casa. Droga, droga, droga.
     E aí parou de chover. Às vezes a vida é assim.

(Mas, se ela tiver paciência, semana que vem, o cara do financeiro vai convidar de novo, ela vai ficar o tempo todo com a mão na perna direita para disfarçar a mancha do vestido, eles vão se beijar na hora da música romântica dos créditos e terão três filhos e dois labradores. Só, por favor, não contem nada para ela para não estragar o final.)

13 comentários:

Marina disse...

Adoro chuva, mas uma situação dessas é pra acabar com o humor de qualquer um mesmo.

Adorei o conto. Beijos!

Marina disse...

"Inclusive um pacotinho de granulado." A descrição da mocinha tá perfeita.
Achei que no final quem tinha passado jogando água nela era o cara do financeiro e que isso tinha acontecido porque ele ia pegar o celular pra atender - era a ex ligando -, o celular caiu, ele abaixou e enroscou a gravata no volante, o que fez com que ele perdesse o controle momentaneamente. Então ele atenderia o celular, a ex ia falar que ainda o amava, mas ele ia dizer que tava em outra e, quando percebesse que a moça tinha ficado coberta de lama, resolveria dar no pé pra não se encrencar.
Mas essa seria outra história.

Magnum Opus disse...

Nossa, uma descrição comportamental feminina fantástica! =)

Ariel Martins disse...

E aí Bruno...
retribuindo a visita.
Muito massa esses contos..

Varotto disse...

Caindo, mais uma vez, no óbvio:

Sensacional!

C. Lisdália disse...

Aaai genti!! Que ótimo esse texto...... Adore!

No more coments!

Anne disse...

Aiiiinda bem q tu colocou esse PS salvador aí embaixo, menino do acepipes, senao eu já ia te dizer q esse final tava todo errado. Até pq, eu ia de pijama de pelúcia se fosse necessário, de vestido manchado, sapato de salto quebrado ou whatever, nao é sempre q o cara do financeiro resolve desencantar e fazer alguma coisa, heim?
Aliás, eu tô faceríiiissima com a sua presença constante no meu blog, to começando a achar que ou eu to escrevendo melhor, ou tu tá menos exigente...de qq maneira, tua visita é sempre um acontecimento!!! E agora nem é mais a cada 64 anos, o q me deixa mais facera ainda! AMEI!!!

Bjosssss (e capricha nesses finais de romance aí =P)

Anne disse...

Tá bom, nao resisto... a do pacotinho de granulado foi oooooootima. No auge do desespero, abrimos esses ou uma lata de nescau........

Natalia Máximo disse...

Podexá, vou manter esse segredo =)

Anônimo disse...

Bruno...que coisa mais linda...
Sério, fiquei sem ar aqui.
Cada detalhe esté perfeito.
É tão, mas tão assim...
Tudo, todo esse ritual, toda a montanha russa...
Não sei nem o que te falar. Fiquei sem palavras...

Anônimo disse...

Mais um texto cativante, sua maneira de descrever as situações cotidianas e os sentimentos é linda. Poxa terrível ter as espectativas frustradas... O detalhe do granulado foi muito bom.

Cissa disse...

eu ri!

Mariana disse...

Esse texto ficou muito bom.... sutilezas da vida...
=)