Sentado à janela do ônibus –uma van velha, lotada de camponeses e com três ovelhas amarradas no bagageiro em cima do teto–, eu apertava os olhos para descobrir até onde ia a paisagem seca e sem cor. O altiplano boliviano, encravado nos Andes. Como se Deus tivesse pisado ali, bem no meio das montanhas, e aplainado com Sua pegada gigantesca um bocado de terra que ia muito além do que meus olhos míopes alcançavam.
Quando era menino, ficava horas fuçando num grande baú de gibis antigos no porão da casa da minha avó. Meus favoritos eram os do tio Patinhas e foi num deles que li o nome pela primeira vez. Não me lembro da história; lembro, para ser bem sincero, de um quadrinho só: um barco de palha sumindo no meio da neblina. Era um lago de água e de nuvens, o lago Titicaca.
O sol brilhava, o motorista xingava o motor velho e barulhento, uma senhora se compadecia –"¡ay, pobrecitas!"– toda vez que as ovelhas amarradas lá em cima baliam, e eu viajava atrás de um sonho de menino. Sozinho. Minha vida havia desabado meses antes e eu tentava procurar nos escombros um resto de mim.
A paisagem custava a mudar mas, aos poucos, o marrom do deserto ia sendo salpicado por um verde tímido aqui e ali. Chegávamos perto. Notei, de repente, num susto, que lá não havia pássaros. Não me lembro de ter visto nenhum nessa viagem.
Quando dei por mim, todos os rostos me olhavam. Eu pensava em pássaros e não notei que estávamos parados e que o motorista berrava. Hora de saltar. Um garoto trepou na escadinha e me arremessou a mochila lá do alto. Puxei uma moeda do bolso e ganhei um sorriso sem dentes quando ele viu que era das graúdas. A van continuou viagem pela estrada poeirenta e sem fim e eu tive dó das ovelhas.
Uma brisa salgada me inflou as narinas e então eu soube que havia chegado. Andei pela rua principal do povoado, entre índias de saias coloridas e toldos de armazéns baratos, até chegar numa subida suave que acabava logo ali adiante. Eu sabia o que me esperava. Corri. A mochila não pesava nada nas costas, o peso nos ombros havia sumido. Travei bem os dentes para que o coração não saltasse para fora. Subi mais um declive leve e então.
Magnífico.
Acho que nunca tinha falado essa palavra. Deixei escapar em voz alta, "magnífico", porque era o que eu via. Um azul profundo. Um azul sagrado, antigo. Ondas suaves lambiam as pedras na margem. Não tinha fim. E ali não era mais a paisagem seca e sem cor, tudo era verde e vicejante. Um azul generoso.
O lago Titicaca. Puxado por mágica de um baú da minha infância, no porão da casa da minha avó.
Contra a luz, vi a silhueta escura de um menino que atirava pedras. O lago parecia não se ofender com a brincadeira, como um pai paciente.
E o sol se punha.
11 comentários:
Você é o proximo que devia escrever um livro, meu Deus.
Prendi a respiração no final, emocionante.
É ótimo chegar em casa depois de um dia corrido e tenso e ler um texto desses. Incrível mais uma vez, parabéns!
Eu vi o lago Titicaca a primeira vez num desenho do Duck Tales. E depois também vi pessoalmente. E também achei magnífico.
Lindo texto.
Não sou muito de admirar paisagens mas essa eu ainda quero ver antes de morrer não só pela beleza mas por toda a história que envolve...
Os Alpes Suíços já me inspiraram muito. Falta o Titicaca.
Engraçado. Ontem mesmo eu virei pra Pri e falei "Titicaca".
Não falei mais nada, só "Titicaca" mesmo. Não havia nenhum propósito além de verbalizar um pensamento aleatório que provavelmente estava guardado em alguma gaveta obscura da minha memória desde as aulas de geografia com a professora Simone na oitava série.
"Presente!"
Parando para pensar depois de ler o seu ótimo texto eu percebi que vi a paisagem boliviana do Titicaca há 16 anos atrás já! Uau...
Seu texto: magnífico!
Que texto doce e lindo!
Amei!
Ótimo. Descrições dosadas, sem nunca se tornarem chatas. Puta conto gostoso de ler, construções bacanas.
Bem legal mesmo!
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