22.2.07

Alto Tarumã

Houve uma época, numa das várias casas da minha vida, em que ônibus era complicado. Tinha só um —o Alto Tarumã—, e de meia em meia hora. À noite, quando voltava para casa, era pior: só de hora em hora. Saía do centro da cidade sempre no minuto 35 —20h35, 21h35, 22h35 e 23h35.
     Eu tinha de correr para pegar o das oito e trinta e cinco. Se perdesse, tinha de fazer hora em algum lugar e ir para a fila às nove e meia. Foi isso que aconteceu certa noite. E foi nessa noite que eu a vi.
     Era uma moça delicada, de pele branca —e, imagino, macia—, cabelo cortado curtinho, preto. Usava roupas de bom gosto, discretas, femininas —saia, ai, essa minha queda por mulher de saia—, e um perfume suave de que me lembro até hoje. Carregava sempre umas bolsinhas pequenas, coloridas, o que denunciava um ar de menina. Braços finos, mãos delicadas, unhas pintadas de esmalte clarinho. Uma vez pude ver a tatuagem de cereja no ombro direito. Atrevi-me a olhar para seus olhos poucas vezes, e eram cinzentos, brilhantes, lindos. Linda.
     Acabei descobrindo com o tempo que ela voltava para casa sempre no mesmo ônibus: o Alto Tarumã das nove e trinta e cinco. Passei, então, a, de propósito, perder todas as noites o ônibus das oito. Algumas vezes, quando eu chegava, ela já estava lá. Outras, eu não a via na fila, mas logo ela entrava num lugar lá atrás.
     Numa noite sem nada de especial, cheguei na praça e vi que ela era a última da fila. Parei bem atrás dela e senti seu perfume. Então ela virou-se e perguntou, com um sorriso simpático, "tudo bem?". Respondi, surpreso. A voz era como tudo nela: delicada, doce.
     Ficamos conhecidos. E a mim bastava somente isso. Não tínhamos relação nenhuma além dos cumprimentos de toda noite. Talvez, bobeira minha, uma amizade ou até um romance não tivessem me contentado tanto quanto esses simples "boa noite". Jamais cheguei a prolongar a conversa além de comentar, uma ou duas vezes, sobre o ônibus atrasado. Não sei explicar. Não queria parecer vulgar, nem demonstrar que a achava assim. Ou talvez ela fosse para mim meio inalcançável, quase irreal. Pura. Não sei.
     Também não sei dizer se cheguei a me apaixonar. Sei que me atraíam sua beleza feminina e seus modos delicados, como se, depois de um dia de estudo e trabalho, encontrá-la na fila fosse um descanso. Minha recompensa por ter sido um bom menino. E, embora minha história pareça longa, foram poucas as noites em que a vi.
     Numa terça-feira cheguei em casa e minha mãe me avisou da mudança. Casa de aluguel, sabe como é. O dono já pedira há algumas semanas e meu pai finalmente conseguira uma nova. Iríamos mudar já no fim de semana. Ótimo, sempre gostei de mudança, mas logo notei que teria de pegar outro ônibus para estudar e trabalhar e nunca mais veria a moça do cabelo curto.
     A semana passou e eu a encontrei na fila como sempre. Não sabia o que fazer. Não sabia nem mesmo se devia fazer algo.
     Na sexta-feira, o último dia em que eu tomava o Alto Tarumã das 21h35, o último dia em que veria a moça do cabelo curto, cheguei atrasado. As pessoas da fila já haviam embarcado e o ônibus esperava, parado, a hora de sair. Passei pela roleta e logo a enxerguei, e bem atrás dela, um banco vago. Ela levantou os olhos do livro, me disse "olá, como vai?" e eu me sentei. Durante o trajeto, enquanto sentia seu perfume doce e olhava para seu pescoço delicado, me despedi em silêncio.
     Pensei em escrever às pressas um bilhete, pensei em levantar e dizer a ela tudo de um fôlego só, pensei em deixar meu telefone, pensei em puxá-la pelo braço e beijá-la. Mas tudo o que fiz foi levantar-me, apertar o botão e descer no meu ponto. Pela última vez.
     Covarde.
     Nunca mais a vi.

7 comentários:

Mariliza Silva disse...

É com prazer que te recebo no meu blog e adoraria ter sua visita sempre!

Venho agora somente para pingar um beijinho no seu blog. Voltarei com mais calma para me deliciar nos seus escritos.

Beijão e some não

Mariliza

Anônimo disse...

Um conselho de Ovídio para você: "Audetem Forsque Venusque juvat" - A sorte e Vênus favorecem os ousados...


MAs no fundo eu sou igual a você: o que eu curto mesmo é o flerte....

Anônimo disse...

Adorei saber disso. Obrigada

Isadora disse...

... e eu começo a andar de onibus agora. uau !

Mariliza Silva disse...

Voltando agora com mais calma, para curtir seu texto: Que Lindo e real, cara!!! Já passei por um flerte desse mais ou menos desta forma. Quando puder leia meu post "Cilada Perfumada". Por isso que falam que nossa felicidade está nas pequenas coisas que acontecem e as vezes na hora a gente não vê a dimensão.

Beijão e some não

Mariliza

Anônimo disse...

Puxa Bruno, tu descreveu tão bem a cena que pensei estar lendo um romance/drama.

Raphael disse...

Linda história meu amigo.

Mas acho que essas coisas a gente não pode deixar passar assim. Já passei por situação parecida, mas não saberia descrevê-la tão bem.

Da próxima vez vc poderia ao menos pegar o msn dela... rsrs