O sol, que acabara de se levantar, iluminava a casinha de madeira. Paredes, portas, janelas, grades, tudo branco. O nascer do sol dava à casa um brilho delicado, ao contrário dos prédios de concreto e vidro que a ladeavam. Uma casinha frágil no meio dos prédios brutos.
E, enquanto a cidade acordava, a velhinha regava seu jardim, com a serenidade que os anos lhe deram. Embora os prédios não lhes concedessem mais que algumas poucas horas de sol, as margaridas do jardim continuavam floridas como há quase cinqüenta anos. Ainda não era época de rosas.
Como fazia há cinqüenta anos, ela sorriu quando o velhinho empurrou o portão e entrou com o pacote de pão debaixo do braço. Deixou o regador no canteiro e os dois entraram, ela primeiro, ele depois.
A mesa estava posta como sempre desde que ficaram sozinhos: duas colherinhas e uma faca; duas xícaras e um açucareiro de porcelana branca; manteiga e um bolo coberto por um pano de prato bordado. Dedicada, ela serviu o café, colocou o bule de volta no fogão e sentou-se para comer o pedaço de pão que ele já lhe havia cortado.
Os dois conversaram sobre os filhos que não apareciam há algum tempo e os netos de quem tinham poucas notícias. Falaram sobre o passado, mas não sabiam do futuro. Comeram o bolo de laranja em silêncio. Terminaram o café e ela tirou a mesa enquanto ele fechava as janelas brancas. Tinham de sair.
O velhinho abriu a porta para que a velhinha saísse e deu-lhe a mão para que descesse os três degraus da varanda. Embora o pulso não tivesse mais a antiga força, a gentileza era a mesma de cinqüenta anos atrás. Fechou o portão e os dois saíram na direção de todos os dias. Mas hoje não iriam passear.
Moravam ali desde que se casaram, quando ele anunciou que havia comprado um lote num setor novo da cidade. Não havia ainda todas aquelas casas, muito menos as lojas e os prédios. Construíram juntos a casa, que sempre foi branca, e plantaram juntos o jardim, que sempre foi florido. Os filhos cresceram e hoje moram em prédios cinzentos sem flores e sem varandas. E aos netos nunca interessou brincar no balanço ou procurar ninhos nas pitangueiras.
Andando de mãos dadas, reconheceram no caminho os locais onde um dia ficavam a sapataria, a mercearia, a quitanda e a farmácia. Lembraram da casa da árvore aonde iam, às vezes procurar as crianças, que sumiam o dia inteiro. Hoje tudo lojas, prédios e escritórios. Da rua tranqüila também nada sobrava, exceto por uns pedaços do calçamento e alguns ipês um tanto descuidados. Nada também dos velhos vizinhos, renderam-se todos. Os dois atravessaram a avenida o mais rápido que puderam, mas o sinal ficou verde antes que chegassem ao outro lado. O tempo já não era suficiente. Os motoristas buzinaram.
Entraram num escritório. Um homem gordo, apressado, estendeu-lhes duas cadeiras, mas foi o velhinho quem ajudou a esposa a se sentar. Quase não conversaram: já há alguns meses a proposta fora feita e o homem sabia que, hora ou outra, eles viriam. Todos um dia vêm. Disse algumas palavras e tirou uns papéis de uma pasta, uma pasta entre tantas. Uma casinha entre tantas. O velhinho tomou a caneta e, mãos trêmulas um tanto pela idade, um tanto pela emoção, olhou para sua velhinha por uns instantes. Encontrou ali, no silêncio do mesmo olhar doce de cinqüenta anos atrás, a força de que precisava. Sentiu os olhos embaçarem, suspirou e assinou o papel. Todas as vias.
E os dois saíram de mãos dadas, no ritmo que as pernas permitiam e que a tristeza impunha, em direção à casinha toda branca onde moraram durante toda uma vida. Mas logo não morariam mais, e amanhã o velhinho sairá pela última vez para buscar pão enquanto a velhinha rega pela última vez seu jardim de margaridas floridas. E as rosas não chegarão a florescer.
10 comentários:
Ok, este também já estava no blog antigo. Mas falta de inspiração, sabe como é...
E meus leitores novos ainda não leram. E este é um dos meus preferidos.
Linkei seu blog,Bruno!
Bom-dia.
Muito bom.... a gente pega no seu pé que já leu, mas não é pessoal amiguinho....
triste...
bate um rium de pois de ler esse...ainda mais repetido (hehehehe)!
Puxa, Bruno, foi uma surpresa quando abri o seu blog e percebi que se tratava de textos de sua autoria. Bem, na verdade, não fiquei extamente surpreendida. Uma pessoa bacana e sensível como vc só poderia mesmo gostar de literatura e de escrever. E escrever bem, o que é mais sensacional ainda! E ainda ter leveza no olhar... Vou voltar outras vezes. Bj.
nossa eu amei este texto
muito lindo e triste
mas muito lindo mesmo, é a mais pura realidade
to vivendo uma situação parecida em casa
meu avós moram a 60 anos na mesma casa e hoje estam tento que se mudar de lá
maior treta e o pior que fico com dó dos velhos!
Belo texto! Obrigada pela xícara de chá...
Apareça para me visitar também:
http://simsenhoras.blogspot.com
Um abraço
é um dos meus preferidos também. e eu ainda não conhecia.
lindo.
eu sempre quis uma casinha com um cerca branca, na frente. mas temo que hoje de branco só restem os alarmes...
Os filhos vão se arrepender de nao poderem mais se lembrarem das rosas que nao puderam vir para serem regadas.
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