5.5.08

A flor

          "Foi o tempo que dedicaste à tua
          rosa que fez a tua rosa importante"
          -A. de Saint-Exupéry


Acreditar em acaso tira toda a poesia da vida. Prefiro pensar que Alguém arquitetou que eu visitasse minha avó Ester bem naquele dia. De todos os dias do ano, bem naquele. Vim de Curitiba para uma visita relâmpago aos parentes em São Paulo, um fim de semana e só.
     Ela recebeu-me no portão com aquele riso inconfundível, com aquele abraço de que eu sentia falta. Falamos da vida, contei da minha e ouvi da dela, lembramos os velhos tempos, falamos de tempos futuros.
     Almoçamos. Eu almocei, na verdade, porque nunca ela perdeu a mania de cozinhar refogar esquentar fritar servir insistir enquanto os outros estavam à mesa. Sentia-se bem em tratar dos outros, depois comia do que sobrasse. Uma comida cheirosa que nunca vi igual, comida mineira, cheia de caldos, gostos. Cheia de caprichos.
     Depois ela serviu café e aí, por fim, consegui que sentasse na mesa e comesse uma fatia de goiabada comigo. Como sempre, olhou com cara feia quando eu dispensei a colherinha e tomei sem açúcar. Como sempre, disse que eu fazia aquilo só para fazer bonito. Rimos.
     Foi então, depois de dar a notícia de que havia morrido o curió, aquele que cantava tão bonito, que minha avó contou-me da flor. Uma mudinha que ela ganhara de uma vizinha e plantara lá no fundo do quintal. Uma que era de um tipo especial, que dava uma flor somente uma vez ao ano, sempre no comecinho da primavera, que já no dia seguinte murchava.
     Pois bem naquela manhã, quando foi buscar uma folha de louro para colocar no feijão que faria para mim, ela reparou que a muda havia florescido. Estava lá, no dia da minha visita, neto que mora longe, a flor especial que aparece uma vez por ano. Perguntou-me se eu queria ver. Não precisava perguntar.
     Fomos juntos, então, ao quintal onde passei boa parte da infância, os anos inocentes da minha vida em que brincava de Playmobil à sombra das roupas penduradas no varal. E estava ali, aos pés do abacateiro —aquele cujos frutos os sabiás sempre bicavam antes que pudêssemos colher—, a flor. A que floresce somente numa manhã por ano para murchar já no dia seguinte.
     Passasse por ela na rua, eu não daria muita importância. Uma flor alaranjada, de pétalas finas como as de uma margarida e miolo amarelinho, felpudo. Vistosa de certa forma, mas em nada muito extraordinária. Sem sombra nenhuma de dúvida, a flor mais especial na minha vida.
     Ficamos ali, em silêncio, eu e minha avó, admirando uma flor solitária no quintal da minha infância. A sábia flor que, de todos os dias do ano, escolheu aquele em especial para desabrochar. A generosa flor que me ajudou a criar uma das lembranças mais belas que eu carrego.
     Antes de voltarmos para dentro de casa, minha avó sugeriu que eu a cheirasse. Um perfume doce e delicado encheu minhas narinas; perfume não sei explicar do quê, mas que era bom e arrancou-me um suspiro. Vó Ester sorria.
     Foi a última vez que estive naquele lugar. Minha avó faleceria no fim da primavera, deixando em mim saudades e o aroma suave de uma flor.

* * *
Hoje seria aniversário dela. Saudades, vó.

14 comentários:

Diego disse...

Dona Ester foi uma dessas avós fantásticas, que não se fazem mais como antigamente.

Fico feliz de ter tido a oportunidade de conhecê-la.

Belo texto =)

Mariah disse...

talvez os momentos até aconteçam por acaso...apesar de eu também não acreditar nisso.
mas o que torna esses momentos espciais é forma como os vivemos, saboreamos e eternizamos.
mariah

Paulo Bono disse...

vó, playmobil, goiabada...
bonito texto, cara.

abraço

Stephanie disse...

eu tenho uma vó dessas que cozinha, frita, refoga, insiste e depois de fazer comer muito me olha e diz 'mas você tá magra, filha, come mais!'. Teu texto remexeu várias das lembranças das tantas coisas boas que tenho com a minha vó (eu, comovida).

Não sei se o acaso tira a poesia da vida, às vezes acho que ele se junta e conspira com Alguém justo pra arquitetar momentos assim.

beijo

ps. deixei uma pergunta pr'ocê no twitter sobre esse texto - cê nem...

La Javanaise disse...

Até quem nunca teve uma avó assim, fica com saudade.


Beijo.

• duh soŧŧo mayor • disse...

saudades da minha avó!

criscalina disse...

Engraçado, do nada eu também fui visitar meu avô no interior. Ele passou mal no dia em que eu cheguei. Fui a neta que o levou no médico pela última vez. Ficamos na sala de espera conversando, eu me admirando da esperteza da mente dele, não do corpo. Tirei o relógio do vovô do braço. Ele saiu da clínica para se internar. Nunca mais vi vovô consciente.

Eu senti o gosto dessa comida mineira cheia de caldos, de gostos e de caprichos. :) Delícia!

Lari Bohnenberger disse...

Linda história!
Lembranças assim fazem com que a saudade seja menos dolorosa e mais bonita!

Bjs!

Anônimo disse...

Amém.

(gosto de passar por aqui...)

Aline Ribeiro disse...

"Almoçamos. Eu almocei, na verdade, porque nunca ela perdeu a mania de cozinhar refogar esquentar fritar servir insistir enquanto os outros estavam à mesa. Sentia-se bem em tratar dos outros, depois comia do que sobrasse. Uma comida cheirosa que nunca vi igual, comida mineira, cheia de caldos, gostos. Cheia de caprichos."
Coisa de avó mineira, poderia ser a minha tb.

Linda comparação com a flor Bruno, fiquei emocionada.

Bjm

Unlucky disse...

Vó...

sinto falta da minha. q veio a falecer dois dias antes do meu priemiro aniversário. Do jeito q todos, inclusive minha mãe conta como ela foi, parece q eu a conheçi!

sinto falta da outra, q ainda viva e perto, parece estar sempre tão longe. No seu jeito rispido e fechado, dentro da sua carapaça dura q não deixa neto algum com mais de 5 anos se aproximar dela.

Axo q é por esse motivo q eu odeio q maltratem senhoras na rua, em onibus ou em qlqr outro lugar.


E parabéns para Dona Ester. Parabéns por ela ter deixado otimas lembranças para você.

=)

Anônimo disse...

Ah, olha só o que encontrei aqui. Outra historinha de vó. E como presente de aniversário. Que ótimo!

Bruno, agora toda vez que visito a minha vó lembro da D. Ester (ou melhor, imagino-a). Basta que ela me conte casos ou transmita a sua experiência de vida, que uma imagem da vó Ester me vem à cabeça.

Nem quero comparar avós, pois existem detalhes e particularidades que são exclusivos de cada uma delas, mas sobre tudo que você descreve, me transmite a sensação do mesmo modo de vida que a minha vó leva até hoje. Vejo as duas como pessoas cheias de sabedoria das antigas que sabem exatamente como convertê-las para uma linguagem contemporânea. Acho bacana o pessoal idoso que com serenidade, segurança e sabedoria acompanha a evolução no modo de pensar e agir da população e assim, consegue levar a velhice na tranqüilidade.

Ah e sobre a florzinha, fiquei aqui imaginando a vó Ester trocando um papo com as plantas do quintal e contando algo sobre você para essa mudinha. Acho que a florzinha estabeleceu como meta lhe conhecer, hehe... Eu super curti essa flor. Achei massa isso!

E para D. Ester um super Parabéns, que envio para o novo lar dela, por tudo que fez e conseguiu transmitir (até para os leitores aqui).

Beijo

Unknown disse...

Não tinha lido este ainda. Eu não tive a oportunidade de ver a vó antes dela falecer. Este privilégio foi seu, essa benção foi sua. Saudades...muita saudades mesmo.

Leo disse...

Que bonito... Bela homenagem!
E a sua avá fazia aniversário no mesmo dia da minha filha.