17.11.08

Olhai as aves do céu

          Em homenagem à simpática família
          que veio morar na garagem de casa.


É primavera.
     Cedo, assim que nasce o sol atrás da serra, sem cerimônia, sabiá sai assobiando sossegado e lança-se à sua missão.
     Nem aí com as pessoas na cozinha, nem aí com quem ganhou as eleições nos Estados Unidos, nem aí com o Brasileirão, o bichinho passa carregando galho depois de galho. Vai juntando tudo numa prateleira da garagem, entre dois vasos de violetas. "Bom lugar para se trazer uma garota", deve pensar; é um sabiá romântico. Entre um galho e outro, já que o petisco está ali dando bobeira, ele se serve de um grão de ração da tigela do cachorro e, se não estivesse frio, talvez se banhasse na água da outra tigela; é um sabiá folgado também.
     Desde que o mundo é mundo, desde que sabiás são sabiás a coisa funciona assim. Nenhum outro o ensinou: ele simplesmente sabe o que tem que fazer. E faz. Nunca lhe passou pela cabecinha emplumada fazer outra coisa que não isso. E assobiar, porque além de carregar galhos ramos talos brotos folhas até flores, o sabiá sabe assobiar.
     Tempo bom, o sabiá está lá, de galho no bico. Tempo ruim, o sabiá está lá, de galho no bico. Bom construtor, o material é todo de qualidade. Bom engenheiro, parece que tão cedo não vai cair. Bom arquiteto, logo o emaranhado toma jeito de casa. No fim das contas, é um ninho. E um baita ninho de sabiá que come ração de cachorro.
     A noitada deve ter sido boa. E merecida, porque o sabiá bem que arrumou tudo direitinho, é rapaz de família. Belo dia, entre os dois vasos de violeta amanhece por lá a nora que mamãe pediu a Deus, sabiazinha vistosa, de peito amarelo e olhos vigilantes. Não por coincidência, não tarda para que surjam três ovinhos.
     Namorado apaixonado, sabiá macho leva café da manhã na cama para a sabiá fêmea. Minhocas selecionadas e frutas da estação -ela não gosta de ração, homem é que come qualquer porcaria na rua-, como convém a uma moça de bons costumes. Que emoção quando o primeiro ovo, mais espertinho, começa a chutar dentro da casca. Logo o segundo e o terceiro também. A casca vai ficando pequena, pequena até que mamãe sente uma pontada, e outra, e outra. Nascem feinhos, os pobres, mas ai de quem disser isso a uma mãe sabiá orgulhosa.
     A situação complica, as despesas aumentam, e mamãe sai de casa atrás de comida também. Agora são dois caçando minhocas para sustentar a casa. Porque estão lá, três biquinhos abertos para o alto, piu piu piu sem parar. Três sacos sem fundo e sem penas que um dia virarão sabiás e terão seus próprios ninhos porque assim é a vida.
     Diz que lá fora o petróleo está acabando, o capitalismo anda em colapso, o buraco da camada de ozônio aumentou de novo e o gelo do Ártico derreteu quase todo. Mas os sabiás não sabem de nada disso, têm mais no que pensar.

* * *
ps. E hoje, dia seguinte ao post, dei com os três filhotinhos no chão de manhã. Algum gato se encarregou de dar um final triste para minha historinha. Mamãe sabiá não sei para onde foi.

11 comentários:

Magnum Opus disse...

Bem que falavam que o sabiá sabia assobiar. Sábio é o sabiá que não aplicou seus recursos na bolsa, não fica estressado e investe tudo o que tem na sua família :)

Isolado disse...

Simples e eficiente. Vida longa à essa familia.

Barbarella disse...

Sabiá é sabio, sabe conquistar uma sabiá fêmea levando café da manhã na cama para ela! Eita sabiá danado, fez a sabiá virar os bicos e os "óis". ô vidão. "No estress", sem crise financeira, sem cartão de crédito e ainda têm milhagem!

Esse post me trouxe a lembrança de uma velha canção:

"Não se admire se um dia
um beija-flor invadir
a porta da tua casa
te der um beijo e partir..
Fui eu que lhe mandei o beijo
que é pra matar meu desejo..
Faz tempo que eu não te vejo ai que saudade d'oce..."

Só que em vez de pensar no beija-flor, pensei no sabiá...rsrs

Adorei o post, mais um né!

A minha redundância nesta parte me mata.

bjos

Barbarella disse...

Ah pensei na música sendo cantada pelo Geraldo Azevedo! Fábio Jr não hein...rsrs

Jeniffer Santos disse...

sempre bons contos hein moço...
xD

beijos

Marcio Sarge disse...

Se todos pudessem aprender com o sabiá...

Esse é uma das melhores crônicas que li aqui.
Em tempo de crise, sabiá neles. :)

Eli Kuhnen disse...

coitados dos sabiázinhos.... ai que pena... triste fim para uma história tão bonita....

=/
Eli

ex-amnésico disse...

Para nós, as crises da civilização; para o sábia, a vitória do mais apto.

Triste sim; mas assim a vida segue...


Ponto pra vc de novo, meu caro!

Anônimo disse...

Tchuááááá...mas que sacanagem...!

Anônimo disse...

Primeiro texto seu que leio. O suficiente para justificar uma boa favoritada por aqui. Pelo jeito, o resto nos arquivos promete. Muito bom, mesmo. Falar de sabiás no meio de todo esse mundo? É possível, pra minha surpresa.

Stephanie disse...

os sabiás na garagem me lembraram uma rolinha que fez ninho no xaxim da minha varanda, um filhote cresceu e partiu, mas o outro tentou voar, caiu no chão meu cão pegou.

a história desses sabiás que construiram uma casinha e família com carinho, e veio um imprevisto e desfez o ninho - me parece um pouco com uma história que eu conheço bem, com a diferença de que foi o sabiá pego pelo gato que não voltou pra casa e a mãe teve que segurar a barra com filhotes

e o desfecho sobre a sabedoria do sabiá que tem mais no que pensar, me trouxe um verso do Ricardo Reis - 'os deuses assim são porque não se pensam'.

mas como são impressionantes esses pássaros...

beijo