Começou com o Tobi a tradição de a dona Mirtes mandar empalhar cada cãozinho que passa dessa para uma melhor. E já são três pequineses empertigados em cima da cristaleira na sala de estar: o Tobi, o Nonô e o Xereta. O Capitão, que ainda está bem vivo, se bem que já meio ruim de fôlego, olha meio ressabiado para o destino inevitável toda vez que passa por ali.
É uma daquelas velhinhas miúdas, magrinhas, que parecem que vão quebrar se um dia tomam um encontrão na rua. Velhinha de vestido florido de cambraia, casaquinho de tricô por cima, meias de lã puxadas até o meio das canelas, óculos grandão de lente cor de âmbar, sombrinha nos dias de sol. Uma velhinha autêntica.
Todo santo dia, depois de rezar para santa Edwirges, ela passa a flanelinha num quadro de moldura dourada e vidro já meio embaçado pendurado em lugar de destaque, logo ao lado da cristaleira com as baixelas, os cristais e os pequineses. É o retrato do falecido, que lhe deu trinta e tantos anos de casamento feliz, três filhos e a simpática casa azul no final da ruazinha sem saída.
Todo santo dia, dona Mirtes leva o Capitão para o passeio matinal. Segue pela rua tranquila nos seus chinelos peluciados, seguida pelo tique-tique-tique-tique das patinhas do inseparável companheiro. O Capitão, sempre vigilante, vai distribuindo rosnados a quem cruzar o caminho. A Cida da casa 8? Rosnado. O Tarcísio de bicicleta? Rosnado. Criança jogando bola? Rosnado. O pessoal da república? Grrrrr!
Todo santo dia, depois do almoço, dona Mirtes deita no sofá e o Capitão pula para sua poltrona preferida —leva uma vida boa o cachorrinho, disso ele não pode reclamar— para assistirem o reprise da novela. Acaba que caem os dois numa soneca preguiçosa —e todo santo dia o Capitão tem pesadelos com o empalhador— até a hora da sopinha.
Todo santo dia, dona Mirtes cozinha bem os legumes para a sopa. Bate bem no mixer que ganhou da filha, que a dentadura anda meio ruim para mastigar. Derrama uma concha por cima da comida do Capitão, um pouco por agrado e um pouco para ajudar a amolecer a ração, que os dentes dele já não andam lá essas coisas também.
Volta e meia algum filho vem visitar e passa um sermão sobre medir o diabetes, cuidar do colesterol e um tal sujeito de nome complicado: Alzimar, Alzemir, Alzheimer... que ela sempre esquece quem é. Se enchem muito a paciência, dona Mirtes desliga o aparelhinho de surdez e deixa o pobre aflito falando com as paredes. Ela explica que não entende de morrer, só sabe viver.
Todo santo dia, dona Mirtes leva o Capitão para o passeio da manhã. Um percurso de mais ou menos 100 metros, que ela percorre com exatamente cento e vinte passinhos cautelosos nos chinelos peluciados. O Capitão precisa de quatrocentos e quarenta e oito passinhos nervosos, tique-tique-tique-tique das patinhas de pequinês. Todo santo dia, ela reza para santa Edwirges. Todo santo dia, ela suspira pelo falecido.
Devagarinho, passo a passo. E, mesmo com a calma de quem já não precisa mais chegar, vai longe a dona Mirtes.
Todo santo dia, ela é feliz.
5 comentários:
Linda a historinha.
Adoro quando escreve de um modo tão detalhado, que eu sou capaz de ouvir os passinhos do Capitão, sentir o vento suave das caminhadas de Dona Mirtes num dia em que parecem ter colocado uma película fosca sobre as coisas, deixando tudo com cara de outono inglês, e enxergar toda serenidade que ela pode passar...
... a ponto de dar vontade de fechar os olhos, respirar bem fundo, e dar aquele sorriso de cantinho de rosto, sabe?
Linda mesmo...
abraços... :)
Que texto! Adorei!!!
E não, não seria uma típica velhinha sem um vestido de cambraia!!!
o/
Começou o ano com tudo, hein?!
Bons trabalhos!
Abraço
Marco
*embaçado* (3º parágrafo - pq não tem como deixar esse texto mais perfeito, mas ao mesmo tempo, dói ver as sacanagens da digitação moderna!)
Capitão pra mim era um buldogue, branco. Com as perninhas bem, bem tortas, e o fundo dos olhos vermelhos já, beeem abatidos. E os dentinhos pra fora - os que sobraram.
Ao menos, os dentinhos eu acertei!
a minha vó que não era uma velhinha nada convencional era que nem a Dona Mirtes nesse aspecto de não entender de morrer, só de viver.
agora, eu achei de uma ironia incrível que uma senhorinha que empalhava seus cãezinhos - o que me parece um apego ao tempo, à memória, ao amor que ela teve por eles, acabar com alzheimer.
(cê não tem idéia do arrepio que me deu, a imagem desses cachorros empalhados, olhos de vidro, nossa! que medo - só consegui simpetizar com a Dona Mirtes lá pro fim do texto só por causa desses cachorros)
e mais uma vez, você surpreende o leitor.
beijo
Postar um comentário