A história do Camilinho começou como quase todas as histórias dos gênios da Humanidade: em casa, aos poucos, meio por acaso. O talento belo dia apareceu e então foi crescendo, aparecendo até que saiu pela porta da sala e ganhou o mundo.
Só que o Camilinho não era músico, pintor, astrofísico, cientista maluco ou essas coisas que nos vem à cabeça quando se fala em "gênio". O talento dele morava na língua. E não a língua metafórica, a arte da retórica, essas coisas, não: era na língua mesmo, a língua propriamente dita. Camilinho reconhecia o gosto de qualquer coisa.
Qualquer coisa. Qualquer. Qualquerzinha mesmo.
Começou, como eu disse, em casa, aos poucos, com comida de casa, essas comidinhas do nosso dia-a-dia. A mãe punha a frigideira na mesa e ele:
— Oba, coxão mole!
Só aí já era coisa de se assombrar, um garoto de sete anos que sabia o que era patinho e o que era coxão mole, cheiro-verde ou manjericão. Mas o Camilinho foi mais longe, foi desenvolvendo o talento, e chegou nos requintes da coisa.
— Esse peixe só andava comendo ração de segunda, coitado.
— Mãe, eu já disse que não gosto desse sal do Rio Grande do Norte!
— Que galeto nada! Isso aqui é galinha das sem-vergonha, criada em quintal na vila Osternack.
— Ah, arroz parbolizado tipo B com sal e um toquezinho de alho e feijão carioquinha do, vejamos... norte do Paraná. Boa safra.
— Hum, esse é um ótimo Nissin galinha caipira, preparado com água da torneira em panela de cobre, fogo brando. Cozimento no ponto, três minutos. Perfeito.
Teve até a vez que ele desvendou um crime: o pai voltou da rua comendo um espetinho e o Camilinho descobriu que aquele contrafilé era, na verdade, o gato sumido da Cleusa. Daí para frente foi ganhar o mundo.
Tornou-se jurado de concursos de culinária, deu palestras para chefs cozinheiros gourmands enófilos madames, virou convidado de tudo quanto é programa de tevê, ficou unha e carne com a Ana Maria Braga. E mais: prestou assessoria na criação de menus de vários bistrôs na França e teve que recusar as propostas de ir para a Bélgica degustar cervejas porque era menor de idade.
A coisa toda ia muito bem até o dia, o fatídico dia, em que ele resolveu meter o nariz –e a língua– onde não fora chamado. Comendo um cachorro quente com os amigos na esquina –que, apesar de ter degustado as maiores iguarias do planeta, o Camilinho ainda gostava do bom o velho hot dog da dona Nadir–, nosso geniozinho teve uma iluminação súbita: decifrou a composição da salsicha.
Da salsicha!
Dias depois, o Camilinho desapareceu depois de uma pelada no campinho. Desespero no bairro, polícia, deu no Jornal Nacional, o Louro José fez um apelo ao vivo pedindo a libertação do amigo. Foi encontrado pela Interpol num frigorífico abandonado perto de Blumenau, dentro da câmara fria, em estado de choque. Nunca mais foi o mesmo, perdeu o gosto pela comida, desfez os contratos, passou a comer até o sal iodado do Rio Grande do Norte e a ser enganado nas churrascarias sem reclamar.
A mãe não sabe que ameaças fizeram ao garoto, mas reparou que, desde que largou a vida de degustador, ele mantém uma certa distância de minhocas e entra em pânico quando vê uma senhora obesa de tranças e sotaque alemão.
Coitado do Camilinho. Não se mexe assim fácil com os segredos da Humanidade.
8 comentários:
huahuahauhauaha
mas acho mesmo que se pudéssemos descobrir alguns dos segredos da humanidade, este seria o nosso fim.
Seu texto me lembra o livro "o PErfume" . Grenouille também era um gênio... mas do olfato...
Quem escreverá sobre o tato?
visão e audição estamos cheios nos super-heróis!!
A verdade está lá dentro... dos embutidos. Santo Fox Mulder!
o_O
"Salsichas são como leis (...)"
Ah, 'Vinas' também hehe
Um dos produtos que meu pai vende pra sustentar a família é justo a salsicha! E eu vivo dizendo, não quero nem sonhar como aquilo é feito.. senão não como! aUHAuhaUHAuha
o/
às vezes a gente acha que a ignorância é uma benção
neste caso do Camilinho, então, nossa! com certeza - saber a composição da salsicha mudaria os hábitos alimentares de muita gente, hahaha
e o que me assusta nessa história é o fato de que nem sempre nossos talentos nos favorecem, aiai.
belo conto, Bruno, belo conto
beijo!
Espero que ele nunca desvende os segredos dos rolinhos-primavera...
Camilinho estava com a namorada atrás do muro quando de repente pára de beijá-la e disse, irritado:
- Você andou por aí com o João e... Meu Deus! Ele é impotente!
Desculpe pegar emprestado seu personagem, mas não resisti.
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