É uma casa aconchegante, sóbria. Um homem arruma as malas de viagem. É um cavalheiro à moda antiga, de sapatos envernizados, paletó xadrez, colete e óculos. Diga-se de passagem que são seus melhores sapatos, seu terno preferido, seus óculos de armação de ouro.
Dispõe, com demora proposital, peça por peça dentro das duas malas e da valise de couro. Roupas, lenços, alguns livros, material de barbear, uma caixa de aquarelas. Lembra-se da caderneta –trechos de livros, impressões, alguns haicais– no criado mudo. Acha na mesma gaveta o jogo portátil de xadrez e decide também levá-lo, embora não espere encontrar ninguém com quem jogar. Coloca a caderneta no bolso do paletó e o jogo na mala.
Tudo pronto, ele fecha os zíperes com cuidado, senta-se à mesinha e serve-se de mais uma xícara de chá enquanto espera a hora de sair.
Lá fora, um relógio bate quinze para as cinco horas. O cavalheiro joga um cachecol por cima do pescoço, pega um chapéu no cabideiro. Uma das malas fica ali mesmo, não chega a sair de cima da cama.
Carregando a mala e a valise, ele desce as escadas e passa pela porta. Repousa a bagagem no chão para achar as chaves no bolso. Tranca a porta e, conscientemente, deixa a mala ali, no alpendre.
É uma cidade pequena, bucólica. Carregando somente a valise, o homem caminha em direção a estação. É um dia de outono, cinzento. Ele para numa banquinha, compra cigarros. Não ouve quando o rapaz tenta alcançá-lo, avisando que esqueceu sobre o balcão os cigarros e a carteira.
Dobra uma esquina e para uma outra vez. É uma ponte antiga, de sólidas fundações de pedra. Tira a caderneta do bolso para tomar nota da paisagem, do entardecer. É um rio de águas tranquilas, escuras. O homem não escreve nada e retoma o caminho, deixando cair a caderneta.
Entra à direita na última esquina, está quase lá. É uma rua antiga, de paralelepípedos. Ele caminha com passos largos sobre as folhas secas da alameda e chega no minuto exato em que o trem, com um apito, desponta na grande curva antes da estação.
O trem chega. É um trem que vai para longe, muito longe. Enquanto os mais afoitos correm para instalar-se nos vagões, ele senta-se num banco, não tem pressa. Abre a valise para encontrar a passagem e então levanta-se, levando somente o tíquete. Detem-se um instante no limiar da plataforma, com a mão na alça da escada, inspira fundo e então embarca, sem nenhuma bagagem.
O trem parte. Deixa atrás de si fumaça e um homem na estação. É um cavalheiro à moda antiga, de sapatos envernizados, paletó xadrez, colete e óculos. O passageiro aconchega-se no banco e parte sem olhar para trás, sem acenar para o cavalheiro solitário. Sem despedir-se de si mesmo.
É ele quem ficou.
6 comentários:
"Só encontrará a sua vida aquele que a perdeu." (Provérbio Zen)
Já fiz essa viagem, em algumas paradas acho que vi o "eu" que dexei para trás me acenando, talvez querendo que eu volte. Mas decidi partir para uma nova vida e nada mais me fará voltar.
Lindo conto!
Bjos
“Antes que eu penetrasse no Zen, as montanhas e os rios nada mais eram senão montanhas e rios. Quando aderi ao Zen, as montanhas não eram mais montanhas, nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o Zen, as montanhas eram só montanhas e os rios, apenas rios.”
Sabe, há situações em que desejo mesmo fazer essa viagem, pra muito longe, deixando tudo para trás e sem levar absolutamente nada.
O problema é que sinto que o "tudo" que deixaria pra trás, iria atrás de mim e que, não conseguiria viver sem ele.
Sinto inveja do cavaleiro a moda antiga.
Abraço.
juroo que por instante achei que ele fosse se matar, na ponte...
mas bem meditatante esse conto...
gostei!
Também achei que ele fosse se matar, e tbm que ele tivesse alguma doença tipo mal de Alzheimer.
Uma vez, numa conversa com um amigo ele disse que ao longo da vida mudamos tanto, que só não deixamos de ser nós mesmos pq estamos presos ao corpo...Aaah, se isso fosse verdade.
Lindo texto.
;-)
Praticamente passou um curta-metragem na minha cabeça. Muito bom...
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