Um casal normal. Casados há alguns anos, dois filhos pequenos, cachorro, almoço na sogra aos domingos, essas coisas de casal normal.
Pois bem. Os dois tomavam café num sábado, coisa bonita de ver: a mulher tentando fazer o menorzinho acertar a colher na boca, o cachorro roubando o pão do maior, o marido lendo o jornal, caderno de variedades. Então a mulher aponta para a capa:
— Querido, é você ali!
O marido fecha o caderno e olha bem para a primeira página. É um homem, mesma altura, mesmo peso, mesmo cabelo, mesmas feições, mesmas roupas. Mesmo tudo, só que abraçado com duas mulatas na quadra de uma escola de samba. A mulher espera uma explicação. Ele analisa a foto mais um instante e solta, impassível:
— Acho que não... Não sou eu, não.
E volta para a matéria sobre a nova safra de escritores do leste europeu. Só isso, como se nada tivesse acontecido. Não se assusta, não se admira, não dá explicação, não diz que nem nunca esteve no Rio, não faz drama de como é que você me acusa de uma coisa dessas?. A mulher larga o menino comendo mingau pela testa mesmo e puxa o jornal do marido:
— Mas como não? Olha aqui! E eu não conheço meu marido depois desses anos? É você, seu safado!
Ele dá mais uma mordida no pão de forma com geleia e diz, na maior naturalidade:
— Mas não sou eu, querida.
Silêncio. Uma nuvem paira em cima da mesa. A mulher toma o jornal dele, não quer brigar na frente das crianças. termina de dar comida para o menor, veste os dois e sai para a casa da mãe, o marido e o cachorro que se virem para almoçar. Volta só no fim do dia, coloca os meninos na cama, tira o jornal da bolsa mostra a foto e tenta de novo:
— Pode dizer, eu sei que é você.
— Não sou eu, amor. Agora vamos dormir, vamos?
E apaga o abajur.
Passam dias, semanas. A mulher não se conforma, fala pergunta acusa aponta a foto no jornal; o marido parece não se incomodar. Ela chora grita esperneia ameaça xinga desespera; ele diz que não é ele.
Passam meses, anos. Volta e meia, ela volta à foto, diz que não tem mais problema se ele confessar, e o marido sempre na mesma calma, diz que não é ele, esqueça isso, querida. Vêm os netos, bodas de ouro, o bisnetinho e o infarto.
A esposa pede que os filhos fiquem no corredor e entra no quarto sozinha. Ele abre os olhos assim que ela entra, faz sinal para que chegue mais perto e fala com dificuldade:
— Eu preciso contar uma coisa, querida: era eu na foto. Era eu abraçado com as mulatas.
A mulher recua, horrorizada, não consegue acreditar. Ele repete, diz que, sim, era ele, e pede perdão pela mentira de tantos anos. Ela diz que não, que ele está confuso, que deve ser a medicação que o está fazendo delirar. Ele insiste mais, diz que não pode morrer em paz levando essa mentira. E ela não acredita, não tem Cristo que a faça acreditar. Ele morre.
Homens... Mulheres...
10 comentários:
se fosse eu que tivesse escrito essa história, no fim a mulher teria dito alguma coisa bem sarcástica do tipo: 'aham, eu sabia, por isso quando disse que fui pra um retiro de mães cristãs há 20 anos, nas verdade peguei o dinheiro fui passar uma semana em Paris como sempre sonhei. Tá tudo bem , meu filho.' aí o cara morre.
aiai, essas coisas que as pessoas não contam...
beijo!
..torna-se uma verdade né?
fazer o que, ehhe
haha, caralho, genial o post! Como sempre :D
abraço
hehehe boazinha essa mulher!
Ótimo texto! :)
Como dizem "cada um acredita no que quer"...
Voltarei aqui mais vezes! :)
e é exatamente assim, fazer o que?
o mundo provavelmente está perdido, só nao sabemos disso ainda. hahaha
Uma estratégia simples, barata e eficiente às vezes é melhor do que aquelas nas quais gastamos um montão de energia. E cá para nós: Ninguém pega duas mulatas. Definitivamente, não era ele!
Mil vezes, mas vc conta bem demais pra deixar passar...
Rapaz, assustei! por um instante achei que ia ler "... a nova safra de escritores da editora Landscape"! (não gosto da linha editorial, sabe? muito 'corporativa'...)
Bem, dita a besteira irrefreável vamos ao que interessa: gostei do jeito como o cara se portou, coisa de profissional — um pouco decepcionante ele se render no fim, mas é da vida.
Pois é, nossa espécie foi feita sob encomenda, não? Belo conto, dá o que pensar. Como de costume. Parabéns!
rs... eu sairia no próximo jornal abraçada a dois go go boys!rs...
beijocas...
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