2.9.10

Aos pedaços

Volta e meia me pegam olhando para um banco de praça, um tufo de grama que brotou no meio do asfalto e me puxam as orelhas porque fiquei mudo e me perdi na conversa. O pessoal costuma não entender.
     Sei lá quando começou; sei que é de menino. Uma vez me mudei de cidade, de estado, e tive de começar tudo do zero, foi uma barra. Agora, anos depois, já estou bem estabelecido e sigo firme no meu ofício: eu me aproprio de pedaços da cidade.
     É impossível amar uma cidade inteira, o que me interessa são só uns pedacinhos. É de pedacinhos que se faz uma cidade e alguns me agradam em especial, então eu os tomo para mim.
     Meu inventário é repleto de árvores: tenho, por exemplo, uma meia dúzia de paineiras, dois pessegueiros e três figueiras. Araucárias são oito, desde que uma foi derrubada semana passada, vítima de gente incomodada com os galhos caídos no quintal. Sou dono também de uma cerejeira, mas infelizmente não dela toda: são meus só os galhos do lado de cá. Tenho quase certeza de que um senhor japonês que volta e meia encontro caminhando pela praça com os braços para trás é o dono da outra parte. Mas temos convivido pacificamente.
     Não chego ao ponto de tomar casas inteiras, não sou assim pretensioso. Mas sou o dono, por exemplo, do telhadinho em forma de cone na entrada de um casarão, assim como da janela rodeada de trepadeiras no segundo andar de um predinho e dos lambrequins na varanda de uma casinha de madeira. O relógio sem ponteiros na fachada de um sobrado colonial meio caindo aos pedaços: é meu.
     Uma vez cheguei a ter um anjo de túmulo, um querubim magnífico de asas abertas e espada em punho que aparecia por cima do muro do cemitério, mas o acabei trocando por um metro e meio do caminho de pedras em frente da capela.
     De algumas coisas eu sou dono só em certos horário do dia. Aquele trechinho da alameda só me interessa às quatro e quinze da tarde, quando a luz passa entre os galhos dos álamos e tinge a fachada da charutaria de um tom esverdeado. Já o chafariz só é meu pela manhã, quando os sabiás vão tomar banho por lá; depois pode ser de quem quiser.
     Já outros bens são mais difíceis de listar. Sou o feliz proprietário do cheiro de café que se sente quando se atravessa uma certa rua numa certa altura, do raio de luz vermelho –só do vermelho– que passa pelo vitral lateral da basílica numa certa época do ano, do barulho oco que faz quando se pisa numa certa pedra solta do calçamento.
     É tudo meu, pago com sorrisos silenciosos, olhares admirados, suspiros de satisfação. Às vezes à vista, às vezes a prestação.
     Mas não é assim tão fácil, não ganhei nada assim, de mão beijada. É trabalho duro, muitos passeios, muitos torcicolos de olhar para cima, muitos esbarrões no poste porque estava olhando para outro lado... Sem contar que é difícil ser dono de tantas coisas; preciso sempre passar pelos meus pedaços de cidade para ver se tudo está indo bem.
     Mas, tirando um portãozinho que foi arruinado por uma nova pintura cinza, sem graça e quase criminosa, tudo tem andado bem.
     Esses dias, tenho desviado meu caminho por uns quarteirões para passar numa rua onde dez ou doze ipês amarelos coloriram o chão e o teto de um dourado que, por Deus, só vendo para saber. Estou me segurando para não tomá-los todos, de uma vez só, para mim. Acho que não resistirei, amanhã cedinho passo lá.

15 comentários:

Ana Savini disse...

Que lindo esse texto Bruno!
=D

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Emocionante do início ao fim, singelo.

Nathalia Alvarez disse...

depois do brutamontes do Capitão, um texto suave como esse. Muito bacana, parabens!


alias... postei um texto com esse nome faz uns 10 dias. rs

Dani disse...

Caramba, que texto lindo, Bruno!

Também me sinto assim, sou dona de vários pedacinhos dos meus caminhos. Também tentando me adaptar a essa cidade...

Parabéns!!!

gabi disse...

Você tem uma veia poética quase sobressaltando! Lindo texto , lindo sempre :)

Lubi disse...

achei tão lindo.
apreciar a vida. :)
sempre.

um beijo.

Ana Luísa disse...

Ahh Bruno, que lindo!
Nunca tinha parado pra pensar assim.
Agora defini: A árvore na frente da casa da minha avó é minha, com certeza!
E as janelas com florezinhas da casa do lado do meu prédio também o são!
Beijoss

Fabi. disse...

Adoreei!Também tenho pedacinhos daqui, do céu, do Sol, dos outros...

Isadora disse...

uma das coisas mais bonitas - e verdadeiras - que já li.

Raíssa Christófaro disse...

e eu te agradeço por poder te ler. você não tem idéia da alegria que é.

Varotto disse...

Cara, muito bom mesmo!

Obrigado por este pedacinho de vida.

Marina disse...

Não costumo ser possessiva, mas agora tive vontade de ser dona de um monte de coisas lindas que vejo de vez em quando.

Lindo texto, Bruno.

Bruxx disse...

Oi Bruno, como vai?
O texto é lindo, como tudo o que você faz.

Mas, na verdade, eu vim aqui para comentar o último post (só de sacanagem, rsrs).
Meu anjo lindo... estive tanto tempo ausente (por motivos alheios à minha vontade) mas, não esquecí de você não, viu.

Você é uma das pessoas que, ainda por trás de uma tela, valeu demais tê-lo conhecido... e, é um privilégio, tê-lo como amigo.

Apoio a campanha!

Beijokinhas saudosas, cheias de energias azuis!

Flávia Higashi disse...

Sou dona de vários cantinhos da cidade e só fiquei sabendo agora, com seu texto.


Tou comentando já que a falta de comentários virou uma revolução no mundo bloguistíco. ;]

ex-amnésico disse...

Você é dos meus: lugares são mais que 'lugares', são universos-ilhas no tempo.

Meus parabéns pela sensibilidade (e é sempre bom saber que não se está sozinho)!


Abraços mnemônicos.