2.1.12

Padre Amaro

(os livros e eu, cap. v)

— Pode escolher o livro que você quiser.
     Minha mãe não sabe o problema que me inventou quando disse isso. Eu tinha me comportado bem na visita a uma tia avó, o ônibus parecia que não chegaria tão cedo, e então ela decidiu entrar na livraria para me fazer um agrado. Fiquei ali, esse problemão nas mãos, enquanto ela foi procurar umas revistas de tricot.
     O livro que eu quiser. Hoje em dia, leitor mais experiente, tenho uma lista de pretendidos que posso sacar do bolso numa emergência do tipo "pense rápido" como essa, mas na época eu fui pego desprevenido. Numa livraria com milhares, qual?
     Logo nas primeiras prateleiras, um me prendeu os olhos. Olhei por tudo, pensei em mais uma meia dúzia de outros, mas sabem como é: o primeiro palpite é sempre o certo. Foi o tempo de pagar e correr para o ônibus prestes a sair do ponto final.
     Caí no sofá de tênis e tudo e tirei da sacolinha O crime do padre Amaro, do Eça de Queirós.
     Eu ainda não ligava muito para orelhas e contra-capas, comprei pelo título mesmo –e um pouco pelo meu avô, também Amaro. Imaginei uma história de suspense, um detetive, um ajudante atrapalhado, um assassino acima de qualquer suspeita, essas coisas. Que será que tinha aprontado o tal padre?
     Nada disso. O que eu tinha ali era um livro português de mil oitocentos e tanto, linguagem da época, crítica pesada à sociedade e ao clero, personagens moralmente fracos, um padre que engravida uma mulher. Só agora, quase vinte anos depois, fui descobrir que é um livro emblemático, o primeiro do realismo português, uma coisa mesmo polêmica. Mas eu tinha dez anos e só queria uma história inofensiva de detetive. Mas nada disso.
     Mandei ver mesmo assim.
     Com o tempo, dos livros vão sobrando pedaços na nossa memória. Desse, lembro logo de cara das noites em que o padre Amaro acorda e dá com dois olhos em brasa espreitando; tudo escuro e só aquelas duas luzinhas malignas no pé da cama. Também tinha essa moça Amélia, uma coitadinha que, em meu parecer inocente da época, entrou de gaiato na história. Tinha uma pensão em que se subia uma escada para entrar, tinha umas senhoras fofoqueiras mui vigilantes da moral e dos bons costumes. Tinha um outro padre que morreu de apoplexia –e até hoje eu não sei o que é apoplexia– e tinha muitas palavras complicadas.
     Li de um jeito meio clandestino, ressabiado de que me descobrissem com algo impróprio para um menino de dez anos. Terminei com uma sensação boa: tinha lido um livro de adultos, já não era mais tão bobinho assim.
     E uma coisa eu confesso: até outro dia atrás eu ainda tinha medo de acordar de madrugada e dar com dois olhos vermelhos me vigiando. Deuzolivre.

6 comentários:

Mari disse...

É fantástico achar alguém que entende essa relação com os livros e, veja só,achei que fosse exclusividade minha.
Li este texto em um ônibus e cheguei a me emocionar (salvem os óculos escuros!).
Lindo relato, tal qual os outros quer você sempre escreve.

Janayna disse...

O Crime do Padre Amaro... acho maravilhoso. Eça de Queirós dá um tom surpreendente às palavras. A forma de prender o leitor, mesmo com 10 anos. Acho que irei ler novamente Eça de Queirós... mas acho que vou começar com O Primo Basílio. Também acho fantástico. Valeu pelo dica e parabéns pelo ótimo texto.

Gabi disse...

VOCÊ ESCREVE DE UMA FORMA QUE É TÃO GOSTOSO DE LER... DÁ AQUELA NOSTALGIA... MUITO BOM!

Lígia disse...

Que texto gostoso!

Ainda não li O Crime do Padre Amaro e, ao contrário de você, não tenho uma listinha dos livros que quero ler... Eles pipocam na minha cabeça um a um e, de repente, fico doida atrás de um livro que dei de querer ler.

Realmente você deve ter ficado muito orgulhoso de ter lido esse livro aos dez anos! Lembro do meu sentimento de "adulta" quando eu li "As Meninas", da Lygia Fagundes Teles, quando eu tinha uns 11 anos.

Bjinhos!

Lucas Reis disse...

Com certeza, minha mãe não me deixaria optar por esse livro. kkk'

Amei o texto. Tô com um sorriso bobo agora.

Abraços

Lucas Reis

Izabela Santos disse...

Amei o texto...como disseram acima você prende a atenção do leitor.

Estou lendo o Crime do Padre Amaro...horas gosto, horas não. As vezes acho que se prolonga muito os detalhes para explicar um fato. Sei que é normal em literatura, e adoro esse gênero, mas as vezes se torna chato.

Por outras, é numa dinâmica tão intensa que não quero largar. Meio contraditório..rsrs

Abraços