22.9.09

O jantar

V
(Partes anteriores: I, II, III e IV)

Na cozinha, senhora L. aguçou os ouvidos e alertou o marido: alguém acabara de sair do banheiro e provavelmente os ouvira conversando. Chef L. pareceu não se importar muito:
     — Bom, a esta altura não fará mais diferença se eles descobrirem que nós estamos mortos. Logo eles estarão também.
     E, de fato, se tivessem lido a nota publicada no jornal local de uma cidadezinha nas montanhas há um ano atrás, os convidados saberiam do acidente de carro que matou um casal de franceses em passeio pela região. Um parente que morava nas redondezas se encarregou do enterro discreto. O chef cantarolou um último verso antes de sair para o salão.
     — “... nous récitions des vers, groupés autour du poêle en oubliant l'hiver...”
     A frágil bailarina foi a primeira a desmaiar sobre o prato. Os músicos já haviam cessado de cantarolar. Signora B., que sempre demonstrava tanta indiferença pelo marido, tentava desesperadamente reanimá-lo enquanto ela mesma também sufocava. Os apaixonados K. tinham-se estendido as mãos antes de perder os sentidos. O desembargador e o general, homens fortes, tentavam sem nenhuma compostura arrombar a porta trancada. A bela M. jazia ao lado do namorado, o último de tantos. A mão do crítico deixara cair ao seu lado a caneta com que escrevia. O professor de latim, irônico e resignado, comia uma última garfada: estava tudo tão bom.
     Num último esforço o cônsul virou-se ao amigo, que, no meio do salão, parecia se deleitar assistindo o fim dos seus melhores clientes, os que sempre só souberam apreciar seu talento. Então, o fantasma do chef L. explicou-se, coisa que nunca fez em vida:
     — Mes amis, estar morto é um tédio. Todas aquelas pessoas desinteressantes, ninguém para apreciar meu talento. É terrível conviver (palavra estranha, non?) com gente assim, não sabem nem pronunciar os nomes dos meus pratos! Mas vocês, vocês são pessoas com algo na cabeça! Embora tenham de aprender muito, tenho que admitir que são clientes bem razoáveis. Bien, em breve estaremos todos juntos no lado de lá. E eu terei minha clientela de volta! Voilà!
     Quando o relógio bateu meia-noite já não havia mais alma viva dentro do bistrô.

2 comentários:

Stephanie disse...

ahá! eu sabia que tinha alguma coisa de clube dos anjos e cozinheiro assassino nesse conto!

bem legal, Bruno, gostei. Essa de 'estar morto é um tédio' é ótima.

beijos

Marina disse...

A última excentricidade do chef. Pelo menos, eles vão comer bem, do lado de lá.

Ótimo conto. Abraço!