Outro dia eu estava de bobeira em casa, zapeando a tevê, quando derrubaram a porta da sala a machadadas. Era o capitão Joe Náufrago, que tinha vindo me visitar. Praguejou contra minhas gerações passadas e futuras e me abraçou, quebrando uma costela. Não importa que nos vejamos quase todo dia, ele é sempre bastante caloroso.
O capitão estirou-se na poltrona e, enquanto ele limpava sua pistola com a cortina da minha mãe, nós conversamos sobre uma garota que conheci:
— Simplesmente linda, capitão. E tem uma voz que...
— Você me cheira a fraldas ainda, rapaz, pelos ossos do demônio! E que tipo de cabeça de tainha se importa com o diabo da voz de uma garota depois que ela já está amordaçada na sua cabine?
— Mas eu estou um pouco inseguro, não sei o que ela pensa de mim, não sei o que ela vai...
— Arrr!, com mil serpentes marinhas, quem é a donzela aí: ela ou você, seu remador sodomita de água doce?
— E também não sei se mando flores ou bombons, capitão.
— Maldição, claro que não, garoto! Se você quer fazer um raio de serviço, que faça como um sujeito decente, não como um porcaria de um pederasta comedor de caviar: pergunte à belezinha se ela não quer ver o tamanho da sua prancha.
O capitão não tem muita noção de romantismo, mas diz que as mulheres gostam, sei lá.
30.10.07
24.10.07
Pensamentos #1
Se algum funcionário felizardo da companhia elétrica por uma noite, uma horinha só que fosse, apagasse todos esses postes, quem sabe poderíamos ver as estrelas de novo.
22.10.07
Medo
Quando me dei conta, lá estava eu com um abismo de sessenta metros debaixo dos meus pés, olhando para um chão muito mais distante do que o bom senso me aconselharia.
Era a primeira vez que nós —eu e meus amigos, os velhos de guerra— caminhávamos pela trilha que leva de Curitiba a Morretes. Fomos assim, meio na louca, sem saber qual o caminho, qual a distância, que equipamento era preciso ou se havia guerrilheiros terroristas escondidos na mata. Não imaginava que eu iria era dar de cara com meu maior medo.
Mas maior, maior, maior medo mesmo.
Pavor.
Todos já estavam do outro lado da ponte, olhando para mim. Pensei em descer uma montanha e escalar a outra. Não, impossível para minhas limitações humanas. Pensei em passar meio agachado, segurando nos trilhos. Não, humilhante demais.
Então —mais para não dar o braço a torcer que qualquer outra coisa— respirei fundo, invoquei a proteção divina e dei o primeiro passo. E o segundo e o terceiro e o quarto... Sabe como são essas pontes de trem: um caibro, um buraco. Passo sim, passo não.
Fiquei irracional, meu QI na hora era o de uma anchova desidratada. Eu só pensava em uma coisa: que a qualquer momento eu cairia e sofreria a agonia interminável da queda e a dor excruciante de ter os ossos esmagados nas pedras e morreria uma morte terrível e levaria uma semana até que os bombeiros juntassem todos meus pedaços e me reconhecessem pela arcada dentária, isso se eu ainda tivesse uma arcada dentária.
Passo sim, passo não, passo sim, passo não.
Na metade da ponte, meu QI teve uma alta súbita —atum enlatado— e eu me dei conta de outra coisa: havia também o perigo de chegar o trem e eu observar impotente a morte se aproximar de mim a 60 quilômetros por hora e depois sentir o impacto esmagador de milhares de toneladas e ser atropelado por rodas de metal impiedosas e retalhado em fatias finas e jogado lá em baixo e sofrer a agonia interminável da queda e a dor excruciante blablablá.
Acabei atravessando só para descobrir que aquela primeira era a menor das pontes. Enfim.
Acontece que, como eu tenho pouco juízo e muita teimosia, topei quando inventaram de fazer a trilha de novo (acho até que fui eu quem inventou). E assim foi até que perdi as contas de quantas vezes cruzamos aquelas pontes e até que, numa dessas travessias, me dei conta de ter perdido outra coisa: o medo de altura.
No fim das contas, acho que essa é a única coisa para que servem os medos: serem vencidos.
Agora admito uma coisa: meu receio de ser devorado por um monstro demoníaco na escuridão enquanto me debato e não consigo chamar ajuda porque suas garras envolveram minha garganta e roubam lentamente minha vida ainda persiste.
Era a primeira vez que nós —eu e meus amigos, os velhos de guerra— caminhávamos pela trilha que leva de Curitiba a Morretes. Fomos assim, meio na louca, sem saber qual o caminho, qual a distância, que equipamento era preciso ou se havia guerrilheiros terroristas escondidos na mata. Não imaginava que eu iria era dar de cara com meu maior medo.
Mas maior, maior, maior medo mesmo.
Pavor.
Todos já estavam do outro lado da ponte, olhando para mim. Pensei em descer uma montanha e escalar a outra. Não, impossível para minhas limitações humanas. Pensei em passar meio agachado, segurando nos trilhos. Não, humilhante demais.
Então —mais para não dar o braço a torcer que qualquer outra coisa— respirei fundo, invoquei a proteção divina e dei o primeiro passo. E o segundo e o terceiro e o quarto... Sabe como são essas pontes de trem: um caibro, um buraco. Passo sim, passo não.
Fiquei irracional, meu QI na hora era o de uma anchova desidratada. Eu só pensava em uma coisa: que a qualquer momento eu cairia e sofreria a agonia interminável da queda e a dor excruciante de ter os ossos esmagados nas pedras e morreria uma morte terrível e levaria uma semana até que os bombeiros juntassem todos meus pedaços e me reconhecessem pela arcada dentária, isso se eu ainda tivesse uma arcada dentária.
Passo sim, passo não, passo sim, passo não.
Na metade da ponte, meu QI teve uma alta súbita —atum enlatado— e eu me dei conta de outra coisa: havia também o perigo de chegar o trem e eu observar impotente a morte se aproximar de mim a 60 quilômetros por hora e depois sentir o impacto esmagador de milhares de toneladas e ser atropelado por rodas de metal impiedosas e retalhado em fatias finas e jogado lá em baixo e sofrer a agonia interminável da queda e a dor excruciante blablablá.
Acabei atravessando só para descobrir que aquela primeira era a menor das pontes. Enfim.
Acontece que, como eu tenho pouco juízo e muita teimosia, topei quando inventaram de fazer a trilha de novo (acho até que fui eu quem inventou). E assim foi até que perdi as contas de quantas vezes cruzamos aquelas pontes e até que, numa dessas travessias, me dei conta de ter perdido outra coisa: o medo de altura.
No fim das contas, acho que essa é a única coisa para que servem os medos: serem vencidos.
Agora admito uma coisa: meu receio de ser devorado por um monstro demoníaco na escuridão enquanto me debato e não consigo chamar ajuda porque suas garras envolveram minha garganta e roubam lentamente minha vida ainda persiste.
17.10.07
O deserto vermelho
Uma chuva vermelha e muito suave caía nas estepes. O andarilho puxou seu cavalo para fora das paredes do desfiladeiro e apertou os olhos, tentando enxergar algo na vastidão do deserto que se abria diante dele. Um sol de sangue nascia no horizonte, sufocando a luz das estrelas.
No leste, a estrela da manhã ainda fazia frente ao dia, desafiando a aurora com seu brilho lânguido. Então, logo debaixo dela, o peregrino avistou uma barraca.
Depois de caminhar por toda a noite, ele animou-se com a possibilidade de, finalmente, trocar palavras com alguém. Conduziu o cavalo para lá.
Conforme se aproximava, o estrangeiro ouviu o dedilhar suave de uma cítara. Não era apenas uma barraca de viajante, mas uma tenda riquíssima, dos mais finos materiais, erguida com habilidade e capricho. Uma bandeira púrpura tremulava no alto de cada um dos pilares que sustentavam a magnífica estrutura. O crepitar da luz por trás das paredes era uma promessa tentadora de conforto.
Diante da entrada, ele encontrou um toco onde amarrar seu garanhão e um balde de água fresca. Então ele levou as mãos às dobras do tecido e abriu uma entrada, abaixando-se para passar. O aroma suave de sândalo inflou-lhe as narinas. Ao levantar a cabeça, surpreendeu-se ao dar com duas lindas mulheres. Duas princesas do deserto.
O chão estava forrado de tapetes e mal se via o teto, oculto por véus e mais véus de rica seda. Chamas tremulavam nas lâmpadas, tingindo tudo de dourado.
Assim que o peregrino tirou o capuz, a dançarina andou em sua direção, olhos nos olhos, e tomou-o pela mão, em silêncio. Tinha pele de alabastro e lábios úmidos cor de carmim. Sob o fino tecido de suas vestes podia-se entrever um corpo delicado e provocante.
A outra donzela tocava a cítara com mãos habilidosas e cobertas de ouro. Os olhos verdes e lânguidos luziam como duas esmeraldas no rosto de traços fortes. Vastos cabelos negros caíam sobre a pele dourada, um pouco suada pelo calor do deserto.
Ainda sem dizer palavra, a tocadora de cítara deixou de lado o instrumento e trouxe uma água perfumada e refrescante, que matou a sede do viajante, e um licor finíssimo, que lhe aguçou os sentidos. A dançarina serviu-o de tâmaras frescas e damascos suculentos.
Sob os véus de seda ela dançou. Sob a chuva vermelha ela tocou. Sob a estrela da manhã elas o seduziram. Sob o sol de sangue elas o convidaram a deitar. E então sob...
É claro que dona Eulália não entendeu nada quando o seu Glicério jogou o despertador na parede, revoltado.
Melhor nem entender, aliás.
No leste, a estrela da manhã ainda fazia frente ao dia, desafiando a aurora com seu brilho lânguido. Então, logo debaixo dela, o peregrino avistou uma barraca.
Depois de caminhar por toda a noite, ele animou-se com a possibilidade de, finalmente, trocar palavras com alguém. Conduziu o cavalo para lá.
Conforme se aproximava, o estrangeiro ouviu o dedilhar suave de uma cítara. Não era apenas uma barraca de viajante, mas uma tenda riquíssima, dos mais finos materiais, erguida com habilidade e capricho. Uma bandeira púrpura tremulava no alto de cada um dos pilares que sustentavam a magnífica estrutura. O crepitar da luz por trás das paredes era uma promessa tentadora de conforto.
Diante da entrada, ele encontrou um toco onde amarrar seu garanhão e um balde de água fresca. Então ele levou as mãos às dobras do tecido e abriu uma entrada, abaixando-se para passar. O aroma suave de sândalo inflou-lhe as narinas. Ao levantar a cabeça, surpreendeu-se ao dar com duas lindas mulheres. Duas princesas do deserto.
O chão estava forrado de tapetes e mal se via o teto, oculto por véus e mais véus de rica seda. Chamas tremulavam nas lâmpadas, tingindo tudo de dourado.
Assim que o peregrino tirou o capuz, a dançarina andou em sua direção, olhos nos olhos, e tomou-o pela mão, em silêncio. Tinha pele de alabastro e lábios úmidos cor de carmim. Sob o fino tecido de suas vestes podia-se entrever um corpo delicado e provocante.
A outra donzela tocava a cítara com mãos habilidosas e cobertas de ouro. Os olhos verdes e lânguidos luziam como duas esmeraldas no rosto de traços fortes. Vastos cabelos negros caíam sobre a pele dourada, um pouco suada pelo calor do deserto.
Ainda sem dizer palavra, a tocadora de cítara deixou de lado o instrumento e trouxe uma água perfumada e refrescante, que matou a sede do viajante, e um licor finíssimo, que lhe aguçou os sentidos. A dançarina serviu-o de tâmaras frescas e damascos suculentos.
Sob os véus de seda ela dançou. Sob a chuva vermelha ela tocou. Sob a estrela da manhã elas o seduziram. Sob o sol de sangue elas o convidaram a deitar. E então sob...
É claro que dona Eulália não entendeu nada quando o seu Glicério jogou o despertador na parede, revoltado.
Melhor nem entender, aliás.
10.10.07
Em algum lugar
em memória de Claudio Scarpetta,
grande homem, grande amigo
Em algum lugar
além dos campos cinzentos
das folhas caídas de outono
eu consigo ver
as colinas floridas
uma nascente refrescante
Em algum lugar
além do mar revolto
das tempestades
eu posso enxergar
as águas cristalinas
uma praia de areia branca
Em algum lugar
além da incerteza da noite
da madrugada interminável
enchem meus olhos
a alvorada esplendente
a estrela da manhã
Em algum lugar
além de toda miséria
do sofrimento que apresa
eu sei que nos espera
a brisa fresca da liberdade
a abundância da vida
E em algum lugar
além do horizonte
sob o sol nascente
eu quase posso testemunhar
um abraço de ternura
o amor que a tudo consola
grande homem, grande amigo
Em algum lugar
além dos campos cinzentos
das folhas caídas de outono
eu consigo ver
as colinas floridas
uma nascente refrescante
Em algum lugar
além do mar revolto
das tempestades
eu posso enxergar
as águas cristalinas
uma praia de areia branca
Em algum lugar
além da incerteza da noite
da madrugada interminável
enchem meus olhos
a alvorada esplendente
a estrela da manhã
Em algum lugar
além de toda miséria
do sofrimento que apresa
eu sei que nos espera
a brisa fresca da liberdade
a abundância da vida
E em algum lugar
além do horizonte
sob o sol nascente
eu quase posso testemunhar
um abraço de ternura
o amor que a tudo consola
8.10.07
Música #2
Quando coloco meus fones de ouvido —o que acontece várias vezes ao dia—, eu sempre pego o L para colocar na orelha direita e vice-versa. Pelo que sei de matemática, a chance é de 50% de errar ou acertar, só que no meu caso toda vez vem trocado. Toda vez. Toda.
1.10.07
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