20.5.08

Marcinha

Foi que a Marcinha, decidida a deixar de ser a encalhada da família, resolveu dar uma folga nas novenas para Santo Antônio e apelar para a internet, laica mesmo.
     Acessou um desses sites de solteiros e investiu uma tarde selecionando candidatos —homem, 20 a 30 anos, sem filhos, não fumante— e enviando mensagens. Alguém haveria de se interessar. Alguém, meu santo Antônio!
     Recebeu resposta quase na mesma hora de um tal "principencantado26". Era seu dia de sorte: o príncipe estava de prontidão só esperando o grito da donzela Marcinha para resgatá-la do alto da sua torre.
     Trocaram endereços, adicionaram-se, partiram para a conversa online. Sujeito simpático, agradável. Tinha senso de humor, escrevia direitinho, não atropelava as respostas dela.
     Aí é que veio a trágica pergunta, a fatídica "como você é?". Inocente Marcinha, que pensou por um momento que conseguiria se safar dessa, fugir da ditadura do corpo perfeito, cabelo liso, boca sexy e tudo o mais. Claro, pensou ela, que um principencantado26 procurava, no mínimo, uma princesasemestrias22.
     E então a Marcinha respondeu. Aumentou uns cinco —mentira, foi quase dez— centímetros na altura e diminuiu uns dez —mentira, foi quase quinze— quilos no peso. Alisou o cabelo e caprichou na produção.
     Ao que tudo indicou, o pretendente pegou fogo do lado de lá, leu na tela do computador exatamente o que queria ler. Falou pouco sobre ele, parecia envergonhado, o que a Marcinha achou até bom. Mas achou melhor ainda o peito largo e o abdômen definido.
     Madrugada adentro, a conversa correu muito bem. Os dois pareciam ter os mesmos gostos para música —Deus me livre o Latino!—, liam alguma coisinha de vez em quando, não eram muito de lugares badalados, assistiram o último desenho da Disney e odiavam morder aqueles cravos no meio do arroz doce.
     Claro que não podia dar em outra: o principencantado caiu de amores pela nossa Marcinha e propôs um encontro. Coisinha descontraída: um suco no shopping, talvez. Amanhã, umas três, três e meia? Combinado? Combinado. Boa noite, durma bem.
     Mas acabou que, no fim das contas, a Marcinha acabou não indo ao encontro. O que iria dizer ao seu príncipe? Que não tinha a cintura igual à da Gisele coisa nenhuma mas que, veja bem, a parte de calçar 36 era verdade? Ficou em casa e curou a frustração com uma comédia romântica e uma barra de chocolate com amendoim.
     E ainda bem que não foi, porque, do outro lado da conexão, o Eduardo já havia decidido que era melhor nem aparecer no shopping mesmo. Uma mulher dessas era areia demais pro seu caminhãozinho. E também como diria para ela que a parte dos bíceps não era bem assim?
     Olha, teriam sido um belo casal, viu?

* * *
Estou me autoplagiando. Este eu escrevi para o Depósito de idéias uns dias atrás...

14.5.08

Tarot: últimas notícias

E não é que alguém mais qualificado que eu conseguiu dar rumo para a história das cartas de tarot, as teias invisíveis do destino, a rainha de copas e tudo o mais? (Só faltou o russo albino, mas depois eu arranjo uma ponta de urso polar para ele num postzinho qualquer...)
     Leiam, sem falta, no blog da Stephanie.

8.5.08

Tarot

Há meses eu tento escrever uma história de suspense com cartas de tarot. O Calvino escreveu um livro só com isso e ficou genial; eu nem tenho tanta pretensão, só queria uma história curtinha mesmo. Mas deparo-me sempre com dois problemas: nem eu acredito muito e nem eu entendo nada de tarot. O negócio é que acho as cartas muito charmosas, vejo nelas uma possibilidade literária muito grande, sem contar que aumentaria minha popularidade escrever sobre coisas assim esotéricas —vejam só o Paulo Coelho.
     Pensei talvez numa coisa assim: uma mulher de roupão de seda cai do décimo terceiro andar de um hotel no centro da cidade. Aquela comoção, os populares fazem roda para olhar, os bombeiros chegam tarde demais, o IML é chamado. Então um rapaz repara que ela tem na mão esquerda uma carta. Num gesto meio impensado, ele a pega e esconde debaixo das blusas. Não sabe por quê fez isso, mas sentiu que devia, as teias invisíveis do destino o moveram. Sai andando, as mãos suando de nervosismo pelo que acabou de fazer. Entra, ofegante, numa cabine telefônica e olha para a carta que escondeu sob a jaqueta: é a rainha de copas.
     Ou assim: um sujeito entra num pub. O lugar é meio escuro, quase vazio, o neon atrás do balcão pisca de tempos em tempos, no fundo toca um blues. Num dos cantos, um cara meio estranho, encapuzado, dispõe um baralho na mesa. Nosso sujeito senta no balcão e pede um uísque duplo, cowboy. Passou por um dia muito difícil, precisa de um bom trago para pensar na vida, nas teias invisíveis do destino. O barman erra no pedido e serve rum com duas pedras de gelo. Porém, quando nosso amigo levanta os olhos para reclamar, vê que o barman sumiu. Então o homem do capuz vem na sua direção e lhe entrega uma carta: é o enforcado.
     Ou então: um contador solteirão resolve comemorar a aposentadoria com uma viagem no Expresso do Oriente. Numa noite, enquanto toma uma sopa no vagão restaurante, ele é abordado por um sujeito visivelmente transtornado que fala algo sobre as teias invisíveis do destino, entrega-lhe um envelope e sai, apressado. Em seguida, passa por ali um russo albino enorme, mais parece um urso polar, com uma cicatriz que vai de fora a fora no rosto, e toma o mesmo rumo. Ouve-se um estampido lá fora. Mais tarde, na sua cabine, o contador abre o envelope: dentro há uma carta de tarot, o arcano do usurpador.
     E aí é que entram mais problemas: não sei como terminar nenhuma das possibilidades, suspeito que minha interpretação das cartas esteja errada e acho que nem deve existir um arcano —se é que é mesmo essa a palavra, "arcano"— do usurpador.
     Melhor deixar para lá, viu?

5.5.08

A flor

          "Foi o tempo que dedicaste à tua
          rosa que fez a tua rosa importante"
          -A. de Saint-Exupéry


Acreditar em acaso tira toda a poesia da vida. Prefiro pensar que Alguém arquitetou que eu visitasse minha avó Ester bem naquele dia. De todos os dias do ano, bem naquele. Vim de Curitiba para uma visita relâmpago aos parentes em São Paulo, um fim de semana e só.
     Ela recebeu-me no portão com aquele riso inconfundível, com aquele abraço de que eu sentia falta. Falamos da vida, contei da minha e ouvi da dela, lembramos os velhos tempos, falamos de tempos futuros.
     Almoçamos. Eu almocei, na verdade, porque nunca ela perdeu a mania de cozinhar refogar esquentar fritar servir insistir enquanto os outros estavam à mesa. Sentia-se bem em tratar dos outros, depois comia do que sobrasse. Uma comida cheirosa que nunca vi igual, comida mineira, cheia de caldos, gostos. Cheia de caprichos.
     Depois ela serviu café e aí, por fim, consegui que sentasse na mesa e comesse uma fatia de goiabada comigo. Como sempre, olhou com cara feia quando eu dispensei a colherinha e tomei sem açúcar. Como sempre, disse que eu fazia aquilo só para fazer bonito. Rimos.
     Foi então, depois de dar a notícia de que havia morrido o curió, aquele que cantava tão bonito, que minha avó contou-me da flor. Uma mudinha que ela ganhara de uma vizinha e plantara lá no fundo do quintal. Uma que era de um tipo especial, que dava uma flor somente uma vez ao ano, sempre no comecinho da primavera, que já no dia seguinte murchava.
     Pois bem naquela manhã, quando foi buscar uma folha de louro para colocar no feijão que faria para mim, ela reparou que a muda havia florescido. Estava lá, no dia da minha visita, neto que mora longe, a flor especial que aparece uma vez por ano. Perguntou-me se eu queria ver. Não precisava perguntar.
     Fomos juntos, então, ao quintal onde passei boa parte da infância, os anos inocentes da minha vida em que brincava de Playmobil à sombra das roupas penduradas no varal. E estava ali, aos pés do abacateiro —aquele cujos frutos os sabiás sempre bicavam antes que pudêssemos colher—, a flor. A que floresce somente numa manhã por ano para murchar já no dia seguinte.
     Passasse por ela na rua, eu não daria muita importância. Uma flor alaranjada, de pétalas finas como as de uma margarida e miolo amarelinho, felpudo. Vistosa de certa forma, mas em nada muito extraordinária. Sem sombra nenhuma de dúvida, a flor mais especial na minha vida.
     Ficamos ali, em silêncio, eu e minha avó, admirando uma flor solitária no quintal da minha infância. A sábia flor que, de todos os dias do ano, escolheu aquele em especial para desabrochar. A generosa flor que me ajudou a criar uma das lembranças mais belas que eu carrego.
     Antes de voltarmos para dentro de casa, minha avó sugeriu que eu a cheirasse. Um perfume doce e delicado encheu minhas narinas; perfume não sei explicar do quê, mas que era bom e arrancou-me um suspiro. Vó Ester sorria.
     Foi a última vez que estive naquele lugar. Minha avó faleceria no fim da primavera, deixando em mim saudades e o aroma suave de uma flor.

* * *
Hoje seria aniversário dela. Saudades, vó.