VI - fim
(partes anteriores: I, II, III, IV e V)
De madrugada, o padre J. acordou sobressaltado. Chegou a sentir-se aliviado quando viu que fora um pesadelo, mas logo se lembrou de que a realidade não era menos dura: ele tinha um assassino nas mãos. Na igreja, haviam cessado as batidas do martelo. O velho homem dormiu com a pergunta ressoando na cabeça: deveria quebrar o santo segredo da confissão?
Antes do amanhecer, levantou-se, como de costume, para rezar as matinas, vestiu-se, tomou o breviário e desceu para a igreja. Antes de ajoelhar-se no altar central, o padre notou que os painéis no fundo da igreja não estavam mais cobertos com o pano: estavam prontos. Mas, embora tudo o que quisesse nos últimos meses era vê-los acabados, não quis chegar mais perto para observar, estava desgostoso.
Voltou para a sacristia, onde preparou, sem apetite nenhum, seu café da manhã. Depois da confissão do dia anterior, o padre não sabia como encararia o homem que logo sairia pela porta do quarto de hóspedes. Mas ninguém saiu por ela, ninguém dormia naquele quarto. Todas as roupas e os pertences estavam lá, como no dia anterior, mas não o artista. Correndo como podia, o padre voltou para procurá-lo na igreja, pensou que talvez a vista o tivesse traído e o homem estivesse o tempo todo lá. Não encontrou ninguém. O escultor fugira.
O padre J. caminhou lentamente até os grandes painéis de mármore. Eram uma imagem grandiosa. Espalhados no chão e na bancada diante deles, estavam ainda todos os instrumentos do escultor. No chão, o grande tecido branco que antes cobria as partes inacabadas.
Ele correu os olhos pelo paraíso e o purgatório. Eram perfeitos, mas o padre não os achava mais belos, o escultor cobrara alto demais por eles, um preço que ele jamais desejaria pagar: sangue inocente. E então o inferno. A idéia do padre era uma visão terrível, mas que bem serviria como alerta aos fiéis: sejam maus e vocês virão para cá. E de fato era aterrorizante: os corpos contorciam-se, agonizavam, imploravam por um segundo que fosse de descanso.
E então, dentre aquelas caretas de dor, um rosto saltou aos olhos do padre J. Ardendo em uma labareda, puxado por dois demônios que tentavam rasgar-lhe as carnes, estava um rosto bem familiar: o próprio escultor. O padre não pôde conter um grito de horror antes de perder os sentidos e ser acudido pelas beatas que chegavam para a missa.
Desde então, o artista misterioso nunca mais foi visto. Não em carne e osso.
30.8.07
24.8.07
O escultor
V
(leia as partes anteriores: I, II, III e IV)
Dias depois, feita a ceia, o escultor surpreendeu o padre J. com um pedido: queria se confessar. A mão ferida estava piorando, era agora um inchaço de pus e sangue coagulado. Embora o homem ainda mostrasse disposição para trabalhar, o padre temia por sua sanidade. Ele ardia em febre por quase todo o tempo e esculpia por longos períodos sem parar, de modo que o último painel, o inferno, estava agora quase pronto.
A hora não era apropriada, mas o padre J. não questionou o pedido. A qualquer hora que fosse, ele cumpriria seu dever de pastor. Colocou a estola roxa, tomou uma luz e mancou até a igreja, onde sentou-se no confessionário. O escultor ajoelhou-se com dificuldade e começou seu relato. Contou da infância difícil, do pai que nunca conheceu, da mãe prostituta morta de febre, da casa dos tios cruéis, das surras que tomou, do dia em que fugiu e de quando, quase morto de fome, foi acolhido por seu mestre.
O homem, que começara balbuciando as palavras, foi erguendo a voz, num delírio febril. O padre se esforçava para entender o porque daquilo tudo, até que chegou a parte que lhe dizia respeito: "e então o senhor me chamou para trabalhar, padre, e eu não poderia perder esta oportunidade".
O chamado do padre fora a oportunidade para sair da vida medíocre que levara. Numa igreja como aquela, uma obra-prima da arquitetura, ele poderia escrever seu nome na História. Mas, quando iniciou o trabalho, ele viu que suas figuras não tinham emoção suficiente, não estavam à altura da missão que ele mesmo se impusera. Como esculpir o doce deleite do paraíso? Ou o êxtase de esperança do purgatório? Ou a agonia dolorosa do inferno?
Então ele descobriu a resposta. Encontrara inspiração, conseguira as expressões de que precisava e as eternizara no mármore da igreja. Agora falava rápido, absolutamente seguro de si, como se terminasse de desenhar diante do padre um quadro grandioso, que justificava todos os seus atos. "Fui eu, padre, quem matou aquelas pessoas".
Como era seu dever, o padre J. rezou pelo perdão dos pecados do homem embora não conseguisse articular nenhuma palavra. Quando saiu do confessionário, o escultor estava de volta sentado diante dos seus instrumentos de trabalho, no escuro. Faltava somente uma figura no painel.
O padre arrastou-se para a sacristia, oprimido pelo segredo que tinha de carregar. Passou a noite remexendo-se na cama, pensando atormentado sobre o que deveria fazer. E na igreja soava o bater do cinzel na pedra.
(leia as partes anteriores: I, II, III e IV)
Dias depois, feita a ceia, o escultor surpreendeu o padre J. com um pedido: queria se confessar. A mão ferida estava piorando, era agora um inchaço de pus e sangue coagulado. Embora o homem ainda mostrasse disposição para trabalhar, o padre temia por sua sanidade. Ele ardia em febre por quase todo o tempo e esculpia por longos períodos sem parar, de modo que o último painel, o inferno, estava agora quase pronto.
A hora não era apropriada, mas o padre J. não questionou o pedido. A qualquer hora que fosse, ele cumpriria seu dever de pastor. Colocou a estola roxa, tomou uma luz e mancou até a igreja, onde sentou-se no confessionário. O escultor ajoelhou-se com dificuldade e começou seu relato. Contou da infância difícil, do pai que nunca conheceu, da mãe prostituta morta de febre, da casa dos tios cruéis, das surras que tomou, do dia em que fugiu e de quando, quase morto de fome, foi acolhido por seu mestre.
O homem, que começara balbuciando as palavras, foi erguendo a voz, num delírio febril. O padre se esforçava para entender o porque daquilo tudo, até que chegou a parte que lhe dizia respeito: "e então o senhor me chamou para trabalhar, padre, e eu não poderia perder esta oportunidade".
O chamado do padre fora a oportunidade para sair da vida medíocre que levara. Numa igreja como aquela, uma obra-prima da arquitetura, ele poderia escrever seu nome na História. Mas, quando iniciou o trabalho, ele viu que suas figuras não tinham emoção suficiente, não estavam à altura da missão que ele mesmo se impusera. Como esculpir o doce deleite do paraíso? Ou o êxtase de esperança do purgatório? Ou a agonia dolorosa do inferno?
Então ele descobriu a resposta. Encontrara inspiração, conseguira as expressões de que precisava e as eternizara no mármore da igreja. Agora falava rápido, absolutamente seguro de si, como se terminasse de desenhar diante do padre um quadro grandioso, que justificava todos os seus atos. "Fui eu, padre, quem matou aquelas pessoas".
Como era seu dever, o padre J. rezou pelo perdão dos pecados do homem embora não conseguisse articular nenhuma palavra. Quando saiu do confessionário, o escultor estava de volta sentado diante dos seus instrumentos de trabalho, no escuro. Faltava somente uma figura no painel.
O padre arrastou-se para a sacristia, oprimido pelo segredo que tinha de carregar. Passou a noite remexendo-se na cama, pensando atormentado sobre o que deveria fazer. E na igreja soava o bater do cinzel na pedra.
20.8.07
O escultor
IV
(partes anteriores: I, II e III)
"Deus, homem, você está ferido!", exclamou o padre J. largando o breviário quando o escultor entrou, noite escura, pela porta da rua. A mão esquerda, atada numa manga arrancada da camisa, estava empapada de sangue meio seco. O padre buscou água e panos limpos. Lavou a ferida e não pôde deixar de observar que parecia uma mordida. Uma mordida humana que rasgara a pele até quase os tendões.
Depois de ter tomado outro gole da cachaça que o padre lhe servira, o homem limitou-se a dizer que um alguém o atacara quando passava numa rua escura. Houve uma luta e o agressor fugiu, só um vulto escuro. O padre andava de um lado para o outro, aflito, e dava graças a Deus: seu artista escapara por pouco. E que os santos tivessem piedade da alma atormentada deste escravo assassino.
Depois de limpa a ferida, recuperada a calma fria de sempre, o escultor disse que não tinha tempo a perder e foi à igreja, onde dedicou-se noite adentro à sua obra.
Mas naquela madrugada houve choro na senzala: o capitão-do-mato encontrou um corpo de negro, o escravo desaparecido. Estava morto já há uns cinco dias e uma punhalada no coração dizia que, longe de ser o assassino, ele fora outra vítima.
E, na manhã seguinte, a lavadeira gritou quando, saindo do cortiço, numa viela apertada e escura, deu com o um cadáver ensagüentado. O sétimo.
(partes anteriores: I, II e III)
"Deus, homem, você está ferido!", exclamou o padre J. largando o breviário quando o escultor entrou, noite escura, pela porta da rua. A mão esquerda, atada numa manga arrancada da camisa, estava empapada de sangue meio seco. O padre buscou água e panos limpos. Lavou a ferida e não pôde deixar de observar que parecia uma mordida. Uma mordida humana que rasgara a pele até quase os tendões.
Depois de ter tomado outro gole da cachaça que o padre lhe servira, o homem limitou-se a dizer que um alguém o atacara quando passava numa rua escura. Houve uma luta e o agressor fugiu, só um vulto escuro. O padre andava de um lado para o outro, aflito, e dava graças a Deus: seu artista escapara por pouco. E que os santos tivessem piedade da alma atormentada deste escravo assassino.
Depois de limpa a ferida, recuperada a calma fria de sempre, o escultor disse que não tinha tempo a perder e foi à igreja, onde dedicou-se noite adentro à sua obra.
Mas naquela madrugada houve choro na senzala: o capitão-do-mato encontrou um corpo de negro, o escravo desaparecido. Estava morto já há uns cinco dias e uma punhalada no coração dizia que, longe de ser o assassino, ele fora outra vítima.
E, na manhã seguinte, a lavadeira gritou quando, saindo do cortiço, numa viela apertada e escura, deu com o um cadáver ensagüentado. O sétimo.
17.8.07
O escultor
III
(leia as partes anteriores: I e II)
Foi do padre J. a idéia de que o escultor descansasse uns dias depois de terminar o painel do purgatório. Depois de madrugar trabalhando febrilmente por noites a fio, o homem pálido precisava de algum sol e ar fresco. Não causou curiosidade ao velho homem, já acostumado com o mistério que sempre envolvia seu hóspede, quando ele disse vagamente que queria cavalgar pelos campos, sozinho. E por três dias ele saiu muito cedo, com o cantar do galo e voltou tarde, sol já posto. Depois disso, lançou-se novamente a esculpir, com a inspiração renovada.
O padre se paramentava para a missa de sétimo dia da garota assassinada quando recebeu, estarrecido, a notícia de outro corpo encontrado. Desta vez, um figurão da cidade, senhor de muitas terras, que fora encontrado caído entre o pasto alto. Mas agora havia um acusado: um escravo estava sumido desde então. O capitão-do-mato já estava à caça do autor dos outros quatro homicídios.
Depois de dizer a missa e atender às confissões, o padre foi até o altar lateral onde o escultor fitava o mármore que começava a ganhar vida, alguns vultos surgindo em relevo da pedra plana. Os dois painéis prontos estavam cobertos com um pano, que o velho homem puxou num gesto delicado para observar mais uma vez o paraíso e o purgatório.
Uma das almas bem-aventuradas, entre anjos e santos, lhe chamava a atenção já há alguns dias. "Este menino... ele me é familiar", resmungou o padre. O escultor virou-se, a expressão sempre insensível transformada num olhar espantado, mas o padre J. abanou a mão, desistindo de seu comentário. A memória prega peças depois de uma certa idade, e ele já havia passado dessa idade há muito tempo. Foi embora, mancando bastante da perna doente, sinal de que vinha mais chuva logo.
Naquela noite, todos dormiram um pouco mais tranqüilos, embora as portas continuassem trancadas. O capitão era um homem implacável e competente, logo o assassino seria enforcado e a justiça seria feita.
(leia as partes anteriores: I e II)
Foi do padre J. a idéia de que o escultor descansasse uns dias depois de terminar o painel do purgatório. Depois de madrugar trabalhando febrilmente por noites a fio, o homem pálido precisava de algum sol e ar fresco. Não causou curiosidade ao velho homem, já acostumado com o mistério que sempre envolvia seu hóspede, quando ele disse vagamente que queria cavalgar pelos campos, sozinho. E por três dias ele saiu muito cedo, com o cantar do galo e voltou tarde, sol já posto. Depois disso, lançou-se novamente a esculpir, com a inspiração renovada.
O padre se paramentava para a missa de sétimo dia da garota assassinada quando recebeu, estarrecido, a notícia de outro corpo encontrado. Desta vez, um figurão da cidade, senhor de muitas terras, que fora encontrado caído entre o pasto alto. Mas agora havia um acusado: um escravo estava sumido desde então. O capitão-do-mato já estava à caça do autor dos outros quatro homicídios.
Depois de dizer a missa e atender às confissões, o padre foi até o altar lateral onde o escultor fitava o mármore que começava a ganhar vida, alguns vultos surgindo em relevo da pedra plana. Os dois painéis prontos estavam cobertos com um pano, que o velho homem puxou num gesto delicado para observar mais uma vez o paraíso e o purgatório.
Uma das almas bem-aventuradas, entre anjos e santos, lhe chamava a atenção já há alguns dias. "Este menino... ele me é familiar", resmungou o padre. O escultor virou-se, a expressão sempre insensível transformada num olhar espantado, mas o padre J. abanou a mão, desistindo de seu comentário. A memória prega peças depois de uma certa idade, e ele já havia passado dessa idade há muito tempo. Foi embora, mancando bastante da perna doente, sinal de que vinha mais chuva logo.
Naquela noite, todos dormiram um pouco mais tranqüilos, embora as portas continuassem trancadas. O capitão era um homem implacável e competente, logo o assassino seria enforcado e a justiça seria feita.
13.8.07
O escultor
II
(caso tenha perdido, leia aqui a parte I)
Semanas antes, uma chuva forte castigou toda a região, o que deixou o padre J. preocupado com o telhado da igreja. Uma goteira poderia acabar com a tinta do painel recém pintado no teto. Calçou as sandálias, pegou um lampião e foi verificar.
O padre J. era um homem velho, de corpo cansado mas de mente brilhante e viva. Seus muitos anos de bom sacerdócio e seu carisma faziam dele a escolha perfeita para conquistar fiéis e fundar uma paróquia. Por isso fora mandado pelo arcebispo com a missão de terminar a construção da nova igreja. E, de fato, em poucas semanas no local, já era amado por todos e conseguira várias famílias piedosas para financiar a obra.
Lá fora a tempestade caía com violência, mas dentro da igreja, tudo era ordem e silêncio. Graças a Deus, pensou ele, graças a Deus. Um relâmpago riscou o céu e iluminou por um instante toda a nave, deixando o padre extasiado com a visão. O trovão ribombou longe, mas ele pensou ouvir um barulho mais próximo.
Levantou o lampião e olhou em volta. O padre conhecia —e ajudara o arquiteto a escolher— cada detalhe, mas não cansava de se maravilhar com o que mãos habilidosas podiam fazer. Então ouviu de novo o ruído: sim, alguém batia na porta!
O padre atravessou todo o corredor central e abriu uma folha da porta pesada. Deu com um homem sozinho na tempestade e, aflito pela situação do estranho, puxou-o para dentro. Só depois de fechada a porta e feito o convite para ir até a sacristia e secar-se é que ele perguntou de quem se tratava: o escultor contratado para trabalhar nos painéis do altar lateral.
Enquanto fervia água no fogão a lenha, o padre deu uma boa olhada no homem: um sujeito de aparência austera e refinada. As roupas de corte elegante e o bigode bem aparado denunciavam uma certa vaidade. Os cabelos negros encharcados caíam ao redor do rosto ossudo, onde brilhavam os dois olhos escuros. Havia algo naquele olhar, algo que padre não conseguiu definir de imediato, mas que o deixou intrigado.
Conversaram durante algum tempo, embora o artista fosse um tanto calado, e depois o padre o levou de volta à igreja, para mostrar as pedras a serem esculpidas: três grandes placas de mármore italiano, presente de um coronel da região. A idéia do padre, também aprovada pelo arquiteto, eram três cenas da Divina Comédia: o inferno, o purgatório e o paraíso.
O silêncio com que o escultor observou os painéis brutos deixou o padre apreensivo, talvez a Divina Comédia não fosse uma idéia tão boa assim. Mas depois de dois minutos, ele foi surpreendido por uma resposta calorosa de que, sim, era possível e que aquele seria um trabalho digno das grandes catedrais da Humanidade.
Quando se deitou, depois de ter acomodado seu hóspede, o padre teve um lampejo. Chegou a uma conclusão sobre o olhar do escultor: era frio.
(caso tenha perdido, leia aqui a parte I)
Semanas antes, uma chuva forte castigou toda a região, o que deixou o padre J. preocupado com o telhado da igreja. Uma goteira poderia acabar com a tinta do painel recém pintado no teto. Calçou as sandálias, pegou um lampião e foi verificar.
O padre J. era um homem velho, de corpo cansado mas de mente brilhante e viva. Seus muitos anos de bom sacerdócio e seu carisma faziam dele a escolha perfeita para conquistar fiéis e fundar uma paróquia. Por isso fora mandado pelo arcebispo com a missão de terminar a construção da nova igreja. E, de fato, em poucas semanas no local, já era amado por todos e conseguira várias famílias piedosas para financiar a obra.
Lá fora a tempestade caía com violência, mas dentro da igreja, tudo era ordem e silêncio. Graças a Deus, pensou ele, graças a Deus. Um relâmpago riscou o céu e iluminou por um instante toda a nave, deixando o padre extasiado com a visão. O trovão ribombou longe, mas ele pensou ouvir um barulho mais próximo.
Levantou o lampião e olhou em volta. O padre conhecia —e ajudara o arquiteto a escolher— cada detalhe, mas não cansava de se maravilhar com o que mãos habilidosas podiam fazer. Então ouviu de novo o ruído: sim, alguém batia na porta!
O padre atravessou todo o corredor central e abriu uma folha da porta pesada. Deu com um homem sozinho na tempestade e, aflito pela situação do estranho, puxou-o para dentro. Só depois de fechada a porta e feito o convite para ir até a sacristia e secar-se é que ele perguntou de quem se tratava: o escultor contratado para trabalhar nos painéis do altar lateral.
Enquanto fervia água no fogão a lenha, o padre deu uma boa olhada no homem: um sujeito de aparência austera e refinada. As roupas de corte elegante e o bigode bem aparado denunciavam uma certa vaidade. Os cabelos negros encharcados caíam ao redor do rosto ossudo, onde brilhavam os dois olhos escuros. Havia algo naquele olhar, algo que padre não conseguiu definir de imediato, mas que o deixou intrigado.
Conversaram durante algum tempo, embora o artista fosse um tanto calado, e depois o padre o levou de volta à igreja, para mostrar as pedras a serem esculpidas: três grandes placas de mármore italiano, presente de um coronel da região. A idéia do padre, também aprovada pelo arquiteto, eram três cenas da Divina Comédia: o inferno, o purgatório e o paraíso.
O silêncio com que o escultor observou os painéis brutos deixou o padre apreensivo, talvez a Divina Comédia não fosse uma idéia tão boa assim. Mas depois de dois minutos, ele foi surpreendido por uma resposta calorosa de que, sim, era possível e que aquele seria um trabalho digno das grandes catedrais da Humanidade.
Quando se deitou, depois de ter acomodado seu hóspede, o padre teve um lampejo. Chegou a uma conclusão sobre o olhar do escultor: era frio.
6.8.07
O escultor
Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l'etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.
Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate!*
-Divina Commedia, D. Alighieri
I
Na noite de 6 de agosto de 1807, um corpo de mulher foi encontrado por um um bêbado no beco mais escuro da cidade. O terceiro assassinato em duas semanas.
Assim que o capelão lhe deu a notícia, o padre J., um velho e santo homem, uma alma piedosa e sensível, tomou alguma luz e entrou na igreja para rezar pela alma da pobre vítima. Empurrou a porta da sacristia com cuidado e deu a volta no altar-mor.
Quando ajoelhou-se, ouviu o bater cadenciado de um martelo. Acostumado a estar sozinho, o padre logo pensou nos ladrões que rondavam o ouro dos retábulos, mas, no momento seguinte, imaginou o que poderia ser. Então virou-se e deu com o escultor trabalhando em seus painéis. À volta do homem, todas as velas, exceto uma única, já haviam se consumido. Mas ele parecia não se dar conta da escuridão e esculpia com furor, como se tivesse algo urgente a terminar.
O padre, que puxava de uma perna, aproximou-se lentamente, os passos suaves ecoando no silêncio da igreja. Ergueu o candelabro para enxergar melhor, embora seus olhos cansados já enxergassem muito pouco: da placa de mármore haviam brotado várias almas que penavam pela expiação das suas culpas. Era o Purgatório.
O artista cinzelava agora uma figura nova, que o padre ainda não havia visto. Em primeiro plano, uma jovem parecia ignorar o sofrimento e olhava com esperança para longe, talvez o Paraíso pelo qual tanto ansiava. O padre J. espantou-se com a intensidade que ele conseguira imprimir na pedra fria.
Não querendo perturbar, e satisfeito com o que vira —a vista embaçada não o impedia de reconhecer um belo trabalho—, o padre voltou ao altar, rezou as completas, pediu piedade pela alma da moça e foi dormir.
O cinzel trabalhou durante quase toda a madrugada e, no dia seguinte, quando foi dizer as matinas, o padre J. deu com o belo painel terminado.
__________
* "Por mim se vai à cidade dolente, / por mim se vai à eterna dor, / por mim se vai à perdida gente. / Deixai toda esperança, ó vós que entrais!" Dante Alighieri, Divina comédia, canto III.
per me si va ne l'etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.
Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate!*
-Divina Commedia, D. Alighieri
I
Na noite de 6 de agosto de 1807, um corpo de mulher foi encontrado por um um bêbado no beco mais escuro da cidade. O terceiro assassinato em duas semanas.
Assim que o capelão lhe deu a notícia, o padre J., um velho e santo homem, uma alma piedosa e sensível, tomou alguma luz e entrou na igreja para rezar pela alma da pobre vítima. Empurrou a porta da sacristia com cuidado e deu a volta no altar-mor.
Quando ajoelhou-se, ouviu o bater cadenciado de um martelo. Acostumado a estar sozinho, o padre logo pensou nos ladrões que rondavam o ouro dos retábulos, mas, no momento seguinte, imaginou o que poderia ser. Então virou-se e deu com o escultor trabalhando em seus painéis. À volta do homem, todas as velas, exceto uma única, já haviam se consumido. Mas ele parecia não se dar conta da escuridão e esculpia com furor, como se tivesse algo urgente a terminar.
O padre, que puxava de uma perna, aproximou-se lentamente, os passos suaves ecoando no silêncio da igreja. Ergueu o candelabro para enxergar melhor, embora seus olhos cansados já enxergassem muito pouco: da placa de mármore haviam brotado várias almas que penavam pela expiação das suas culpas. Era o Purgatório.
O artista cinzelava agora uma figura nova, que o padre ainda não havia visto. Em primeiro plano, uma jovem parecia ignorar o sofrimento e olhava com esperança para longe, talvez o Paraíso pelo qual tanto ansiava. O padre J. espantou-se com a intensidade que ele conseguira imprimir na pedra fria.
Não querendo perturbar, e satisfeito com o que vira —a vista embaçada não o impedia de reconhecer um belo trabalho—, o padre voltou ao altar, rezou as completas, pediu piedade pela alma da moça e foi dormir.
O cinzel trabalhou durante quase toda a madrugada e, no dia seguinte, quando foi dizer as matinas, o padre J. deu com o belo painel terminado.
__________
* "Por mim se vai à cidade dolente, / por mim se vai à eterna dor, / por mim se vai à perdida gente. / Deixai toda esperança, ó vós que entrais!" Dante Alighieri, Divina comédia, canto III.
1.8.07
Acepipes fotográficos
Muita gente reclama de não ter nem uma figurinha aqui no Acepipes. Admito que parece livro pesado, daqueles que não têm nem um desenhinho no rodapé para distrair. Mas aprendi com o Analista de Bagé a ser ortodoxo: se fosse para ter figura, música, vídeo, cheiro, gosto, o nome seria Acepipes multimídia. E não teria o mesmo charme.
Resolvi, então, ser drástico e abrir uma filial só com fotos, o Acepipes fotográficos. Aí talvez reclamem que lá não haverá textos, mas eu sou assim: preto no branco. Tudo separadinho. Claro que isso é perigoso, pode dar vazão à minha megalomania e, assim, um dia comandarei um grande império de blogs, abrindo também um Acepipes sonoros, um Acepipes cinematográficos e quem sabe até —e este talvez fosse o único título coerente da série— um Acepipes culinários.
Só espero que esse meu outro filhote não faça mais sucesso que o primogênito —tenho mais mania de escritor que de fotógrafo.
O primeiro ensaio já foi servido e está aqui o link. Bom apetite!
Resolvi, então, ser drástico e abrir uma filial só com fotos, o Acepipes fotográficos. Aí talvez reclamem que lá não haverá textos, mas eu sou assim: preto no branco. Tudo separadinho. Claro que isso é perigoso, pode dar vazão à minha megalomania e, assim, um dia comandarei um grande império de blogs, abrindo também um Acepipes sonoros, um Acepipes cinematográficos e quem sabe até —e este talvez fosse o único título coerente da série— um Acepipes culinários.
Só espero que esse meu outro filhote não faça mais sucesso que o primogênito —tenho mais mania de escritor que de fotógrafo.
O primeiro ensaio já foi servido e está aqui o link. Bom apetite!
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