30.6.10

Sobre cachorros e a vida

Ontem, antes de dormir, estava pensando no vira-lata ali da esquina de casa, que corre atrás toda vez que eu passo de moto.
     Como nunca tentou me morder quando estou a pé, e inclusive já até brincamos uma ou duas vezes, imagino que a birra dele é com a moto. Ele corre atrás dela, não de mim. Por que? Para que? Será que ele saberia o que fazer se pegasse?
     Pensei em fazer uma maldade hoje: esperar que ele corresse e freiar. Parar, só para ver qual é.
     Mas pensei também que talvez isso não faça diferença nenhuma. Porque o que importa é o jogo: meu papel é ser perseguido e o dele, perseguir. Perguntar não faz parte da coisa.

* * *
Já outro dia fui pegar ônibus na rua de baixo e reparei que o dálmata do material de construção continuava no seu trabalho incansável de cavar para fugir por baixo do portão de pedestres.
     Quase sempre que vejo, o bicho está lá, dando duro na obra. Só que, pelo que pude ver, a terra é dura e, pelo que pude imaginar, alguém volta e meia deve tampar o buraco, de modo que o serviço nunca termina. Mas ele não desiste. É quase um purgatório de Dante.
     Nisso, abriram o outro portão, o de carga e descarga, e um caminhão saiu, entulhado de areia. O pessoal despachou a entrega, voltou para a loja e esqueceu o portão. Ficou assim: o portão grande aberto e o cachorro brigando com o portão fechado.
     Será que ele saberia o que fazer aqui fora?

* * *
Hoje cedo saí e o vira-lata veio. Então fiz minha parte: acelerei. E ele, bom garoto, fez a dele: correu latiu mostrou os dentes esbravejou.
     Desviei o caminho para passar em frente ao depósito. O dálmata não estava cavando ainda, mas estava lá, olhando para a rua, sonhando com a fuga.
     Porque é o jogo, entende?

26.6.10

Só umas noticiazinhas

Como ficou um vazio na minha vida virtual depois de cometer orkutcídio e facebookcídio –já no Twitter eu continuo firme, forte e rabugento–, acabei entrando numa outra modinha e criei um Tumblr. Parece divertido, vamos ver quanto tempo dura.
     E só para avisar que semana que vem tem novidades aqui no Acepipes. Nada assim tão fantástico, já aviso, mas ainda assim são novidades.

23.6.10

Thanks for playing

... essa frasezinha foi uma das coisas mais frustrantes da minha infância.
     Eram horas e horas dedicadas a um jogo no video game. Naquela época não tinha como salvar o jogo –hoje a coisa já é mais fácil–, então, para despistar minha mãe e economizar energia, eu desligava a tevê e deixava o console ligado, pausado. Naquela tela escura, o herói ficava de tocaia, pronto a retomar, a qualquer instante, nossa missão de salvar o mundo.
     No dia seguinte quando chegava da escola, lá estava eu labutando de novo. Às vezes eram dias e dias.
     Volta e meia, minha mãe ou a diarista passavam pela sala, davam com a luzinha acesa e desligavam o bendito: tudo por água abaixo. Mas eu não desistia. A persistência de um garoto de oito anos é um negócio comovente.
     E lá ia eu. Fase a fase, batalha a batalha, chefão a chefão.
     E então, depois de tanto sofrimento, depois de colocar fita crepe em cima luzinha do on-off para que minha mãe não visse que estava ligado, depois de meia dúzia de lições de casa atrasadas, depois de ganhar um calo no dedão esquerdo, o da direcional, eu conseguia: terminava o jogo.
     Fechava o jogo e, ansioso para ver o que aconteceria com o herói depois de ter resolvido toda aquela confusão, depois de ter botado para fuder, tudo o que eu ganhava era uma porcaria de um "thanks for playing".
     Thanks for playing.
     Legais eram os que tinham um finalzinho, os que inventavam alguma historinha, nem que fosse uma animaçãozinha meia-boca com legendas em inglês que eu não entendia direito. Sei lá, alguma coisa que me fizesse sentir herói por ter libertado o mundo dos alienígenas ou ajudado o Mario a resgatar a princesa. Qualquer coisa, só para me tapear. Se não quisessem inventar um final, que pelo menos tivessem a coragem e a dignidade de desligar a tela, assim sem explicação. Mas "thanks for playing", pelo amor de Deus, não.
     Acontece que eu cresci e volta e meia ainda levo um desses na cabeça. Já nem jogo mais video game, mas o "thanks for playing" dá sempre um jeito de aparecer. Vem camuflado de outros jeitos, vem de óculos e bigode, vem de vestidinho curto, mas não me engana.
     "Thanks for playing" é frustrante.

16.6.10

O príncipe

Não vou ficar contando como se conheceram, como começaram a sair juntos, como ela o achara um fofo, o candidato a namorado perfeito, essas coisas, porque não é essa a parte da história que me interessa. A história para valer começa quando ela recebeu uma ligação. "Esteja no parque hoje, tal lugar, tal banco, tal horas; tenho uma coisa importante pra te dizer". Assim, decidido, deu nem tempo para ela responder. Pronto!, o final feliz estava perto.
     Todo aquele ritual. Umas duas horas para escolher colocar trocar destrocar roupa, fazer desfazer refazer maquiagem, insegurança, euforia, ansiedade. Ai, meu Deus, é hoje. Na hora combinada, mãos molhadas e boca seca, ela estava lá, sentada no banco.
     Só que nada do rapaz.
     Dez minutos e nada, quinze minutos e nada. Então ela pensou que o cara talvez não fosse perfeito, enfim. Ficou com vontade de chorar. Mas não, ele não faria isso, não ele.
     Até que então.
     Então ele saiu do meio do bosque, de trás de uma árvore. Pelo jeito, estava ali o tempo todo, observando. Ensaiando o que falaria, como andaria, para onde olharia, em que momento a beijaria, essas coisas.
     E então ele saiu do meio do bosque, de trás de uma árvore e veio andando em direção dela. Fantasiado de príncipe. Com aquelas calças que vão só até metade das canelas e colã branco por baixo, sapatinhos de tecido de bico fino, capa vermelha, chapéu com pluma, camisa de babado no colarinho. Fantasiado de príncipe, indumentária completa. Domingo, parque cheio. Fantasiado de príncipe.
     Talvez o rapaz tenha pensado que a expressão de choque da moça foi por causa da emoção, porque ele continuou com a performance. Puxou de trás de uma outra árvore um cavalinho de pau no qual montou e veio trotando pocotó pocotó pocotó na direção da garota. Então o pretendente parou diante da amada e, sem apear do cavalo, fez a proposta:
     — Eu sou seu príncipe. Quer ser minha princesa?
     E o mundo, que até então vinha se movimentando em câmera lenta, parou.
     O mundo parou para ver a cena. Quem estava fazendo cooper parou, quem estava andando de bicicleta parou, quem estava fofocando parou, quem estava namorando parou, quem estava tomando um caldo de cana parou, quem estava comprando pipoca parou, quem estava correndo atrás das crianças parou, quem estava correndo atrás da bolinha parou, quem estava ouvindo Latino no último volume do som do carro parou.
     Stop.
     Fantasiado de príncipe.
     Ela ficou em silêncio coisa de meio segundo, sem reação, mas foi praticamente meio minuto. Meio século. O príncipe estava ali, uma mão no cavalo e a outra –de luvas brancas, note-se– estendida em direção da princesa. Mais meio segundo passou, meio milênio, até que ela conseguisse articular resposta:
     — Não.
     Deu as costas e foi embora chorando. E o príncipe ficou lá, com cara de sapo.

          (Baseada em fatos reais, infelizmente.
          Amiga de um amigo meu.)

14.6.10

Olwlhchkrasjia sz'ozsye!

capítulo doze – conclusão

Como o leitor já há de ter atentado, atrativos não faltam para que o Zwkrshjistão seja escolhido seu próximo destino de férias. Povo acolhedor, competições esportivas empolgantes, cultura rica e variada, culinária exuberante e concentrações baixíssimas de turistas americanos costumam ser atrativos mais que suficientes, já não bastassem as belas paisagens concretadas.
     Por ser considerado segredo industrial, os fiscais da alfândega não podem, infelizmente, permitir que turistas deixem o país levando vodka de cebola. No caso de encontrarem garrafas escondidas na bagagem, o procedimento padrão é que o piloto as confisque e se encarregue pessoalmente de esvaziá-las –brindando com toda a tripulação e passageiros– antes de levantar voo.
     Já outros produtos tradicionais, como lâmpadas de abajur infantil radioativas, piteiras e palitos de dente podem ser levados sem maiores complicações, desde que preenchidos os formulários B3546-Z, A23W, T456-S, em quatro vias autenticadas. E, como cortesia, todos os visitantes, ao deixarem o país, são presenteados com um retrato oficial de corpo inteiro em tamanho natural do presidente Trçakydf.
     Não se preocupe caso um de seus filhos ou esposa tenha ficado no país como garantia de pagamento de dívidas de jogo. O governo mantém um asilo especial para esses casos, sob a tutela de Herr Captain Htwrshër, reconhecido pedagogo teuto-zwkrshjistanês.
     Seja sempre bem vindo, não se esqueça de voltar a tempo das finais do campeonato de futebol zwkrshjistanês –ou saldar suas dívidas com a máfia– e olwlhchkrasjia sz'ozsye!

9.6.10

Zwkrshjistão: um tesouro da fonética

capítulo onze – idioma

A ouvidos desatentos, o zwkrshjistanês pode passar por uma variação de romeno com sotaque mongol e estrutura frasal levemente javanesa. Impressão que, depois de estudos aprofundados e alguns golpes de palmatória da professora, mostra-se totalmente infundada: o sotaque, na verdade, puxa mais para alguns dialetos de uigur.
     Não existem conjugação de verbos no futuro, o que talvez reflita na despreocupação dos alegres cidadãos zwkrshjistaneses com o que está por vir, como as mudanças climáticas ou a turnê mundial do Prince. Outra característica marcante é a flexibilidade semântica: um único termo pode significar, por exemplo, "por gentileza, cavalheiro" ou "agora mesmo, seu estúpido", dependendo do contexto, da fase da lua ou da proximidade do rifle de quem fala.
     Seguem algumas expressões básicas, de uso bastante corriqueiro, que podem ajudar na sua estada. A pronúncia é bastante simples, especialmente depois da quinta ou sexta dose de vodka de cebola.

     • Sim – Hhf
     • Não – Hhff
     • Bom dia – Ojqwr psh
     • Não tem nada de bom – Humpf
     • Viva o presidente! – Trçakydf!
     • Com licença, o senhor sentou sobre minha sopa – Mshjka' gwjie inh fshjik ssss
     • Quanto custa aquele calibre .38 ali? – Krshjas qechwsh 38'wh'sj ïwtkjl?
     • Pago dez rúpias e ainda dou mais uma mula zarolha de lambuja pela sua filha mais velha – Çhtwq wk
     • Um brinde à sua saúde e que jamais lhe falte um copo de vodka de cebola e uma boa mula que lhe carregue bêbado de volta para casa – Olwlhchkrasjia sz'ozsye!

8.6.10

Zwkrshjistão: um refúgio de tradições

capítulo décimo – cultura

Numa visita ao país, não se esqueça de visitar o Museu Nacional, em especial a sala Zskl'l Ayhiaqrk, dedicada ao engenhoso construtor de instrumentos de tortura. Caso encontre um mafioso utilizando um dos aparelhos da sala para extorquir dinheiro de um comerciante local, aja com naturalidade e lembre-se de tirar seu chapéu ao cumprimentá-lo –mafiosos zwkrshjistaneses são fortemente apegados aos antigos bons costumes.
     A Biblioteca Nacional Tzawsëj Trçakydf é mantida pela Associação Zwkrshjistanesa de Letras, academia responsável por manter viva e incólume –a custo de pequenos genocídios, se preciso– a literatura do país. O exuberante edifício da BNTT abriga, além de obras menores da literatura ocidental, os manuscritos originais e em torno de trinta mil exemplares do clássico Meditações sobre minha infância, do presidente Trçakydf.
     Madame Trçakydf é conhecida pelo seu apreço à arte, o que costuma custar ao presidente grandes somas de dólares zwkrshjistaneses. O casal presidencial possui uma coleção de arte que inclui um Picasso apócrifo e uma coleção completa de pinturas a dedo das crianças da escola primária Baba Yaga, a na Sibéria. Além disso, ela é a presidente de honra e principal mantenedora do Coro Nacional de Fanhos e da Orquestra Sinfônica Nacional de Xilofones. A primeira-dama recebeu também, há alguns anos, por aclamação popular e indicação expressa do presidente Trçakydf, o cargo de Ministra da Cultura, Moda e Saraus de Poesia Neoarcaica Zwkrshjistanesa.
     A polka é o ritmo que embala as noites zwkrshjistanesas, em especial nas tabernas de Z'zträkosk, onde as garçonetes costumam dançar carregando nos ombros dois ou três fregueses de sua simpatia. Ainda falando sobre música, corre à boca pequena que Eduard Khil, o Trololó Man, entrou com pedido de cidadania zwkrshjistanesa, e em breve juntar-se-á ao panteão de artistas da fascinante cultura dessa riquíssima nação.