Deitado na cama.
Há quanto tempo não vejo
a lua na janela?
30.4.10
16.4.10
O capitão
– O senhor gosta de água gelada, zero cinco?
Era tarde da noite. Não era nem que estivesse cansado: eu estava quase esgotado. Esgotado, sujo, com frio, sei lá onde no meio da Serra do Mar. Meu grupo já estava na barraca preparando-se para dormir, mas eu tive que, sabem como é, atender um chamado da natureza. Voltando, cruzei com o capitão.
– O senhor gosta de água gelada, zero cinco?
Dei a única resposta razoável:
— Não, senhor.
— Pois então pule na água para aprender a gostar.
A "água" era um poço escuro e fundo, um resto de água podre represada no canto do brejo. Corri o mais rápido que pude, levantei o fuzil –jamais largue seu fuzil, jamais– o mais alto que pude, pulei o mais longe que pude e gritei "Brasil!" o mais alto que pude. Uma camada fina de gelo se quebrou. Apresentei-me diante do capitão tremendo de frio.
— E agora, gosta de água gelada, zero cinco?
Dei a única resposta razoável:
— Gosto, sim, senhor.
— Pois já que gosta tanto, pule lá de novo.
O sangue ferveu. Levantei o fuzil pulei gritei mais alto ainda. Quando saí da água, não tremia mais de frio: tremia de raiva.
— A senhora sua mãe, como se chama, zero cinco?
— Izabel.
— E a dona Izabel sabe fazer bolo, zero cinco?
— Sabe, sim, senhor.
— Com cobertura de chocolate, zero cinco?
— Sim, senhor.
— Você não precisa estar aqui, zero cinco, tremendo de frio, obedecendo um capitão maluco. É só pedir para sair, zero cinco, e você estará quite com o serviço militar do mesmo jeito. É só pedir para sair, o motorista te leva em casa e você pode comer um bolo quentinho com cobertura de chocolate da dona Izabel, zero cinco.
— Não, senhor.
— Não ouvi, zero cinco. Acho que meus ouvidos congelaram. Quer voltar pra casa, zero cinco?
— NÃO, SENHOR!
— Eu vi que você e o oito ficaram para trás e ajudaram a carregar o equipamento do onze na corrida hoje de manhã. Você é um bom soldado, Palma. Você é um homem, esse foi o seu batismo.
Homem. Eu tinha dezoito anos e foi a primeira vez que alguém me chamou assim. Senti o corpo aquecer, o peito estufar de orgulho.
No quartel, tínhamos uma regra: cada minuto de atraso, cinco flexões. Um dia, esperávamos diante do refeitório e nada do capitão. Ele podia ter explicado que fora chamado pelo coronel –aliás, ele nem devia ter dito nada, um capitão não deve explicações aos soldados– mas não: deitou-se diante da tropa e pagou flexões. Cem delas.
Outra vez, ele decidiu que correríamos não só os doze de sempre, mas sessenta minutos. E não de tênis, shorts e regata, mas de coturno e fuzil. Eu olhei em volta e vi caras de espanto, e a minha não devia ser diferente. Então o capitão entregou a pistola, pediu ao cabo que lhe trouxesse um fuzil e correu. Ele não precisava estar lá. Ele era um oficial do Exército Brasileiro e não precisava se sujeitar a correr como soldado, a carregar um fuzil de soldado. Mas ele estava lá. E todos, todos –magros ou gordos, fracos ou fortes, corredores ou não– chegaram ao final. Todos.
Um dia o pessoal da empresa invocou de me chamar de Palma –tinha entrado um outro Bruno no mesmo setor– e eu cortei a onda na mesma hora. Porque só me chama pelo nome de guerra quem carregou fuzil e rastejou na lama ao meu lado. Só me chama de Palma quem largou o orgulho de lado e dormiu quase abraçado comigo para que eu –magricelo que era– não morresse de frio. Só me chama de Palma quem me incentivou a fazer só mais uma flexão, a correr só mais cem metros, a aguentar só mais um dia, a ir só mais um pouco além do limite.
Descobri mais tarde que naquela madrugada a temperatura chegou a dois graus negativos na Serra do Mar –e cinco negativos, na noite seguinte. Mas eu teria pulado na água quantas vezes o capitão mandasse. Eu teria seguido aquele homem até o inferno.
Chefes já tive muitos. Mas líderes eu conheci poucos.
Bons tempos.
Bons tempos.
(E isso que nem contei histórias dos sargentos. Grandes sujeitos.)
* * *
ps. Oito é o De Niro, de quem já falei por aqui. E o soldado onze é o grande Fabrício, que anda lá pras bandas do Espírito Santo e de quem me bateu uma saudade enorme agora. Saravá, meu amigo.
Era tarde da noite. Não era nem que estivesse cansado: eu estava quase esgotado. Esgotado, sujo, com frio, sei lá onde no meio da Serra do Mar. Meu grupo já estava na barraca preparando-se para dormir, mas eu tive que, sabem como é, atender um chamado da natureza. Voltando, cruzei com o capitão.
– O senhor gosta de água gelada, zero cinco?
Dei a única resposta razoável:
— Não, senhor.
— Pois então pule na água para aprender a gostar.
A "água" era um poço escuro e fundo, um resto de água podre represada no canto do brejo. Corri o mais rápido que pude, levantei o fuzil –jamais largue seu fuzil, jamais– o mais alto que pude, pulei o mais longe que pude e gritei "Brasil!" o mais alto que pude. Uma camada fina de gelo se quebrou. Apresentei-me diante do capitão tremendo de frio.
— E agora, gosta de água gelada, zero cinco?
Dei a única resposta razoável:
— Gosto, sim, senhor.
— Pois já que gosta tanto, pule lá de novo.
O sangue ferveu. Levantei o fuzil pulei gritei mais alto ainda. Quando saí da água, não tremia mais de frio: tremia de raiva.
— A senhora sua mãe, como se chama, zero cinco?
— Izabel.
— E a dona Izabel sabe fazer bolo, zero cinco?
— Sabe, sim, senhor.
— Com cobertura de chocolate, zero cinco?
— Sim, senhor.
— Você não precisa estar aqui, zero cinco, tremendo de frio, obedecendo um capitão maluco. É só pedir para sair, zero cinco, e você estará quite com o serviço militar do mesmo jeito. É só pedir para sair, o motorista te leva em casa e você pode comer um bolo quentinho com cobertura de chocolate da dona Izabel, zero cinco.
— Não, senhor.
— Não ouvi, zero cinco. Acho que meus ouvidos congelaram. Quer voltar pra casa, zero cinco?
— NÃO, SENHOR!
— Eu vi que você e o oito ficaram para trás e ajudaram a carregar o equipamento do onze na corrida hoje de manhã. Você é um bom soldado, Palma. Você é um homem, esse foi o seu batismo.
Homem. Eu tinha dezoito anos e foi a primeira vez que alguém me chamou assim. Senti o corpo aquecer, o peito estufar de orgulho.
No quartel, tínhamos uma regra: cada minuto de atraso, cinco flexões. Um dia, esperávamos diante do refeitório e nada do capitão. Ele podia ter explicado que fora chamado pelo coronel –aliás, ele nem devia ter dito nada, um capitão não deve explicações aos soldados– mas não: deitou-se diante da tropa e pagou flexões. Cem delas.
Outra vez, ele decidiu que correríamos não só os doze de sempre, mas sessenta minutos. E não de tênis, shorts e regata, mas de coturno e fuzil. Eu olhei em volta e vi caras de espanto, e a minha não devia ser diferente. Então o capitão entregou a pistola, pediu ao cabo que lhe trouxesse um fuzil e correu. Ele não precisava estar lá. Ele era um oficial do Exército Brasileiro e não precisava se sujeitar a correr como soldado, a carregar um fuzil de soldado. Mas ele estava lá. E todos, todos –magros ou gordos, fracos ou fortes, corredores ou não– chegaram ao final. Todos.
Um dia o pessoal da empresa invocou de me chamar de Palma –tinha entrado um outro Bruno no mesmo setor– e eu cortei a onda na mesma hora. Porque só me chama pelo nome de guerra quem carregou fuzil e rastejou na lama ao meu lado. Só me chama de Palma quem largou o orgulho de lado e dormiu quase abraçado comigo para que eu –magricelo que era– não morresse de frio. Só me chama de Palma quem me incentivou a fazer só mais uma flexão, a correr só mais cem metros, a aguentar só mais um dia, a ir só mais um pouco além do limite.
Descobri mais tarde que naquela madrugada a temperatura chegou a dois graus negativos na Serra do Mar –e cinco negativos, na noite seguinte. Mas eu teria pulado na água quantas vezes o capitão mandasse. Eu teria seguido aquele homem até o inferno.
Chefes já tive muitos. Mas líderes eu conheci poucos.
Bons tempos.
Bons tempos.
(E isso que nem contei histórias dos sargentos. Grandes sujeitos.)
* * *
ps. Oito é o De Niro, de quem já falei por aqui. E o soldado onze é o grande Fabrício, que anda lá pras bandas do Espírito Santo e de quem me bateu uma saudade enorme agora. Saravá, meu amigo.
5.4.10
A falta que faz uma capa
Uma historinha de amor entre amantes da Literatura. Nada de mais, deve acontecer por aí o tempo todo.
Fim de noite, sexta-feira, a cidade já está quase vazia. Um cara está sentado no metrô –vou contar a história com metrô porque é mais charmoso, mas pode ser no ônibus, na lotação, na perua escolar, sei lá–, cansado depois de um dia de trabalho. Almoçou mal, correu o dia inteiro, teve que ficar na hora extra e perdeu o happy hour com os amigos, essas coisas. Os passageiros em volta deviam ter passado por um dia igual, o vagão todo estava meio apagado.
Aí então o vagão se ilumina. O vagão se ilumina e não foi porque uma lâmpada preguiçosa que estava apagada decidiu acender, foi porque uma garota acabou de entrar. Bonita na medida, bem vestida, charmosa, com um meio sorriso e uma bolsa colorida de bolinhas. Ela –destino, destino– decide sentar-se ali, de frente para ele.
Então, a garota abre a bolsa e...
Versão analógica
... tira um livro lá de dentro. Nosso amigo reconhece as cores, a foto, o título. A sorte acaba de sorrir para ele: os dois estão lendo o mesmo livro.
Ele procura rápido na mochila e saca o livro também, faz questão de segurar de um jeito que todos possam ver a capa. A garota levanta os olhos, curiosa, para ver o que ele está lendo e... Bingo! O meio sorriso vira um sorriso inteiro. É a deixa.
Os dois conversam, ele troca para o banco dela, acaba descendo uma estação antes só para acompanhá-la até em casa. No dia seguinte foram à livraria ver as novidades, passaram o fim de semana juntos e o resto vocês já sabem: acabaram juntando as bibliotecas e vivendo felizes para sempre.
Versão digital
... tira um Kindle lá de dentro. Ela está lendo o mesmo livro que ele, mas nosso amigo não tem como saber: só vê a parte de trás do aparelhinho.
Sem saber como puxar papo, ele saca da mochila o iPad, para passar o tempo. A garota levanta os olhos, curiosa, para ver o que ele está lendo e... Só vê uma estampa de maçã. O meio sorriso continua meio. Nada de deixas.
Não conversam. Ela desce numa estação, ele fica na seguinte. No dia seguinte, cada um baixou um livro novo, cada um na sua casa, e o resto vocês já sabem: passaram o fim de semana na Internet. Além do mais, nem daria para juntar as bibliotecas mesmo, porque tem arquivo que nem é compatível.
Fim de noite, sexta-feira, a cidade já está quase vazia. Um cara está sentado no metrô –vou contar a história com metrô porque é mais charmoso, mas pode ser no ônibus, na lotação, na perua escolar, sei lá–, cansado depois de um dia de trabalho. Almoçou mal, correu o dia inteiro, teve que ficar na hora extra e perdeu o happy hour com os amigos, essas coisas. Os passageiros em volta deviam ter passado por um dia igual, o vagão todo estava meio apagado.
Aí então o vagão se ilumina. O vagão se ilumina e não foi porque uma lâmpada preguiçosa que estava apagada decidiu acender, foi porque uma garota acabou de entrar. Bonita na medida, bem vestida, charmosa, com um meio sorriso e uma bolsa colorida de bolinhas. Ela –destino, destino– decide sentar-se ali, de frente para ele.
Então, a garota abre a bolsa e...
Versão analógica
... tira um livro lá de dentro. Nosso amigo reconhece as cores, a foto, o título. A sorte acaba de sorrir para ele: os dois estão lendo o mesmo livro.
Ele procura rápido na mochila e saca o livro também, faz questão de segurar de um jeito que todos possam ver a capa. A garota levanta os olhos, curiosa, para ver o que ele está lendo e... Bingo! O meio sorriso vira um sorriso inteiro. É a deixa.
Os dois conversam, ele troca para o banco dela, acaba descendo uma estação antes só para acompanhá-la até em casa. No dia seguinte foram à livraria ver as novidades, passaram o fim de semana juntos e o resto vocês já sabem: acabaram juntando as bibliotecas e vivendo felizes para sempre.
Versão digital
... tira um Kindle lá de dentro. Ela está lendo o mesmo livro que ele, mas nosso amigo não tem como saber: só vê a parte de trás do aparelhinho.
Sem saber como puxar papo, ele saca da mochila o iPad, para passar o tempo. A garota levanta os olhos, curiosa, para ver o que ele está lendo e... Só vê uma estampa de maçã. O meio sorriso continua meio. Nada de deixas.
Não conversam. Ela desce numa estação, ele fica na seguinte. No dia seguinte, cada um baixou um livro novo, cada um na sua casa, e o resto vocês já sabem: passaram o fim de semana na Internet. Além do mais, nem daria para juntar as bibliotecas mesmo, porque tem arquivo que nem é compatível.
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