27.1.10

Verduras e morangos

Parado em frente à porta, ele sentiu de novo aquela coisa gelada virando, revirando dentro do estômago. Esticou a mão direita e em seguida puxou o braço de volta, recuou um passo, como se a maçaneta fosse um bicho pronto para o bote.
     Já tinha hesitado mil vezes antes de chegar até ali, pensado mil vezes, ensaiado mil vezes. Pensado ensaiado pensado ensaiado. Ontem mesmo, depois de ter repetido consigo a fala, parou diante da porta, juntou os fiapos de coragem para bater, aprumou-se, respirou fundo... e não bateu. Antes que alguém perguntasse o que fazia ali, voltou para a mesa sem graça na sala sem graça onde um relatório sem graça –para as cinco, urgente!– o esperava.
     Mas hoje não, hoje decidira-se que iria até o fim. Respirou fundo e, usando como combustível a indignação que sentia consigo mesmo por ser assim tão covarde, bateu.
     Sempre assim: "para as cinco, urgente!", "para daqui cinco minutos, urgente!", "para ontem, urgente!". Tudo era urgente. Mas desde uns dias atrás que ele sentia que viver era ainda mais urgente, viver era urgentíssimo.
     Empurrou a porta, pediu licença, entrou e fechou-a atrás de si. A maçaneta não mordia, afinal. Sentou-se. As mãos suavam, mas ele soube disfarçar bem. A voz saiu firme, muito melhor do que esperava. O sujeito do lado de lá da mesa largou o mouse, deixou um pouco de lado a tela de e-mails. Estava se saindo bem, afinal.
     Então ele pediu demissão.
     Sentado na sua cadeira de diretor, a única confortável da empresa, o chefe não entendeu, perguntou se era insatisfação com salário, ofereceu um pouco mais, vergonhosamente pouco mais. Mas ele não estava aberto a negociações, estava firme no que havia decido, o chefe não pôde fazer nada a não ser concordar. A tela piscava, novos e-mails caíam na caixa de entrada. Era já perto do dia trinta e eles agilizaram tudo para o dia primeiro. Começaria o mês desempregado.
     Voltou para a sala, onde não disse nada. Não tardou muito, alguém voltou da chefia e espalhou a notícia da demissão. Ninguém entendeu o porquê –"é salário?"–, mas ele nem esperava mesmo que entendessem. Era funcionário antigo da casa, era funcionário exemplar. Abriu suas planilhas, terminou um relatório urgente para as cinco e meia. Voltou para casa já levando algumas coisas das gavetas, para adiantar.
     Dia trinta, despediu-se. Lavou a caneca pela última vez, decidiu deixá-la na copa para quem quisesse, o resto das coisas –pastilhas para garganta, uns cartões, o carregador do celular– coube numa sacola de mercado. Sem alarde, sem choradeira, sem fotografias, sem almoço especial. Na cadeira de diretor, o chefe entrevistava um candidato.
     Já no dia seguinte, começou a procurar. Passou as semanas seguintes olhando classificados, fazendo contas. Não tinha pressa e só fechou negócio quando achou exatamente o que sonhava. Daí para mudar-se para o sítio foi só questão de tempo. E foi viver.
     Está difícil segurar a ansiedade, as verduras demoram para crescer e nem sinal ainda dos morangos. Mas logo ele colhe a primeira safra.

26.1.10

Obs

É só que eu queria dizer que o layout do Acepipes foi feito com Bloco de Notas e Paintbrush. Acho que nunca contei isso.

Dia a dia #11

Tenho o hábito de, quase todo dia, escrever um haikai na cadernetinha. Pois nunca isso foi tão repetitivo como nas últimas semanas. É só chuva chuva chuva. Um saco.

14.1.10

Quietinho (ou "Dos traumas da infância")

Pré primário. 1988.
     Os chineses se acham maus porque inventaram a tortura chinesa, os iranianos se acham piores ainda por terem inventado o cinema iraniano, mas a professora Viviane era particularmente cruel.
     Para quem não sabe, tia Vivi –nome de guerra– tinha um método particular de deixar as crianças sairem de sala, no fim da tarde. Nada de debandar como uma horda pequenos bárbaros arrastando as lancheiras e correndo para ver quem chegava primeiro na perua escolar; saíamos um por um, e na ordem que ela mandasse. Era muito simples: quem estivesse quietinho, podia ir embora.
     Eu cruzava os braços sobre a carteira, apoiava a cabeça sobre eles e ficava ali, com cara de eujátôbemquietinhopelamordedeusmechamatia. Era um exercício de autoridade, ali ela mostrava quem é que mandava e quem é que obedecia. Aos cinco anos de idade, nós já nos deparávamos com a dura lei da vida: sempre vai ter alguém maior que você. Sempre.
     — Gabriel.
     E então o Gabriel ganhava a liberdade e olhares de inveja. Pegava a mochila, a lancheira e podia ir embora. Ficávamos todos ali, nossos destinos à mercê de uma professorinha com avental xadrez, cara de boazinha e lindos cabelos loiros. Lembro, inclusive, de um dia uma menina não ter aguentado a pressão, levantar a mão e pedir:
     — Deixa eu, tia. Deixa eu!
     Tia Vivi olhou com complacência, a complacência que prestamos para os fracos, para os que sabemos que, cedo ou tarde, serão engolidos pelo monstro terrível que é o mundo sem nem saberem o que lhes aconteceu, e deixou que a menina saísse. Mas não eu, eu jamais pedi misericórdia, eu era um soldado da linha de frente, um bom infante, e meu orgulho combatente não me permitiu jamais entregar os pontos. Só os fracos pediam para ser chamados. Atrás das trincheiras dos meus braços finos, eu disparava em direção da tia meu melhor olhar de anjo comportadinho. Mas ela era durona:
     — Marina.
     — Daniel.
     (Eu, tia! Eu!)
     — Carolina.
     Eu dobrava redobrava tresdobrava o silêncio, ficava feito um tigre pronto para o bote de tão quietinho, um atirador de elite em cima do telhado de tão quietinho. E nada. Eu, tia!
     — Vinícius.
     Modéstia à parte, eu era um sujeito quietinho, e era bom no que fazia. Normalmente eu saía rápido e não ficava para ver a espera desesperada dos derrotados.
     Mas não naquele dia.
     Naquele dia fatídico, todos foram saindo e, no final, sobramos eu e um outro garoto: Rafael –sempre tive problemas com Rafaeis na minha vida, mas isso é outra história–, conhecidamente um mau-elemento, o menos quietinho da sala. Eu havia sido abertamente desafiado para um duelo. Tia Vivi olhou para os dois, prendeu a respiração um instante, instaurando aquele silêncio que precede as decisões mais solenes, aquele segundo que tem o peso dos séculos, e então proferiu a sentença que marcaria minha vida dali em diante:
     — Rafael.
     Não cheguei nem a ouvi-la dizer meu nome. Saí desconsolado, carregando um peso maior do que o da mochila nas costas. Fui o último a ir embora, derrotado pelo menino mais bagunceiro do pré primário da escola. Estigmatizado pelo resto da vida, praticamente um pária da sociedade. Foi o fundo do poço. Teria pensado nas drogas, se soubesse que elas existiam.
     Agora com licença, que eu preciso ir ali me recompor. Escrever isso mexeu demais comigo.

11.1.10

Contada mil vezes...

Um casal normal. Casados há alguns anos, dois filhos pequenos, cachorro, almoço na sogra aos domingos, essas coisas de casal normal.
     Pois bem. Os dois tomavam café num sábado, coisa bonita de ver: a mulher tentando fazer o menorzinho acertar a colher na boca, o cachorro roubando o pão do maior, o marido lendo o jornal, caderno de variedades. Então a mulher aponta para a capa:
     — Querido, é você ali!
     O marido fecha o caderno e olha bem para a primeira página. É um homem, mesma altura, mesmo peso, mesmo cabelo, mesmas feições, mesmas roupas. Mesmo tudo, só que abraçado com duas mulatas na quadra de uma escola de samba. A mulher espera uma explicação. Ele analisa a foto mais um instante e solta, impassível:
     — Acho que não... Não sou eu, não.
     E volta para a matéria sobre a nova safra de escritores do leste europeu. Só isso, como se nada tivesse acontecido. Não se assusta, não se admira, não dá explicação, não diz que nem nunca esteve no Rio, não faz drama de como é que você me acusa de uma coisa dessas?. A mulher larga o menino comendo mingau pela testa mesmo e puxa o jornal do marido:
     — Mas como não? Olha aqui! E eu não conheço meu marido depois desses anos? É você, seu safado!
     Ele dá mais uma mordida no pão de forma com geleia e diz, na maior naturalidade:
     — Mas não sou eu, querida.
     Silêncio. Uma nuvem paira em cima da mesa. A mulher toma o jornal dele, não quer brigar na frente das crianças. termina de dar comida para o menor, veste os dois e sai para a casa da mãe, o marido e o cachorro que se virem para almoçar. Volta só no fim do dia, coloca os meninos na cama, tira o jornal da bolsa mostra a foto e tenta de novo:
     — Pode dizer, eu sei que é você.
     — Não sou eu, amor. Agora vamos dormir, vamos?
     E apaga o abajur.
     Passam dias, semanas. A mulher não se conforma, fala pergunta acusa aponta a foto no jornal; o marido parece não se incomodar. Ela chora grita esperneia ameaça xinga desespera; ele diz que não é ele.
     Passam meses, anos. Volta e meia, ela volta à foto, diz que não tem mais problema se ele confessar, e o marido sempre na mesma calma, diz que não é ele, esqueça isso, querida. Vêm os netos, bodas de ouro, o bisnetinho e o infarto.
     A esposa pede que os filhos fiquem no corredor e entra no quarto sozinha. Ele abre os olhos assim que ela entra, faz sinal para que chegue mais perto e fala com dificuldade:
     — Eu preciso contar uma coisa, querida: era eu na foto. Era eu abraçado com as mulatas.
     A mulher recua, horrorizada, não consegue acreditar. Ele repete, diz que, sim, era ele, e pede perdão pela mentira de tantos anos. Ela diz que não, que ele está confuso, que deve ser a medicação que o está fazendo delirar. Ele insiste mais, diz que não pode morrer em paz levando essa mentira. E ela não acredita, não tem Cristo que a faça acreditar. Ele morre.
     Homens... Mulheres...