Esses dias mesmo eu arrastava a poltrona da sala para ver se melhorava o sinal do wi-fi quando o cachorrinho da vizinha ganiu e aparentemente atirou-se pela janela. Na verdade, era o capitão Joe Náufrago, que tocara a campainha no apartamento errado. Quase me derrubou com o abraço caloroso e o bafo de rum. A perna de pau deixou um rastro vermelho e pegajoso no tapete da sala.
— Que mil tubarões famintos me persigam! Que tipo de traquitana diabólica é essa, rapaz?
— É um iPad, capitão. Por aqui eu posso ler as notícias, conversar com...
— Serve para aparar tiros de mosquete?
— Ainda não, mas quem sabe numa próxima vers...
— Com mil prostitutas zarolhas, esses ratos sarnentos de água doce nunca fazem um serviço decente. Vamos logo, rapaz, deixe-me ver isso mais de perto.
Imaginei que isso não faria muito bem à tela, mas os anos de convivência me ensinaram que não é prudente negar um pedido a um pirata com um gancho afiado no lugar da mão. Tentei não me encolher quando ouvi aquele barulho de unhas no quadro negro.
— Mas por que, pelos ossos da minha mãezinha, não funciona?
— Deve ser por causa do gancho, capitão. Tente com a outra mão porque a tela precisa do toq...
— Maldito aparelho imprestável do inferno!
Em seguida, o iPad foi se juntar ao cachorrinho lá embaixo no pátio. O capitão me explicou que estava indo ao bar da esquina jantar umas coxinhas com catupiry e -palavras dele, não me entendam mal- dar uns tapas no traseiro daquela belezinha que vem servir o rum. Resolvi aceitar o convite. Ele pode não ter senso de misericórdia ou sinal capacitivo na mão, mas no fundo é um bom sujeito.
* * *
Perguntaram bastante do capitão, pode onde andava, se tinha naufragado de vez. Olha, esteve desaparecido um bom tempo e resolveu dar as caras barbudas agora, não sei dizer por onde andou. Mas também não sou eu que vou perguntar.
28.2.12
14.2.12
Aliança
Por um rumo desses que tomam as conversas de bar, a mulherada acabou falando sobre aliança, quem e quem não tira para isso ou aquilo.
A Selma tira para lavar louça, fazer limpeza, passar creme nas mãos. As mãos da Elza incham bastante no calor, então já viu. A Rute tira para dormir e, quando vê, saiu de casa e esqueceu de colocar de volta. A Jussara tira -e joga em seguida- toda vez que briga com o Palhares. E a Ângela não tira nunca.
Do jeito que ela contou pareceu, inclusive, uma questão de orgulho. Nunca. Colocou no dedo quando se casou com o Rubens e desde então deixou ali, onde deve ficar, sentenciou. Ué, com o tempo a gente já nem lembra que está usando, vira parte do corpo. As amigas implicaram, tentaram achar umas excessões, mas a Ângela não sem lembrou de nenhuma: não tirou nunca, para nada.
De alianças, o assunto foi para joias, de joias a sapatos e a noite passou divertida.
O assunto era bobo mas, quando se despediram na porta do lugar, a Ângela estava ainda com a história das alianças. Essa coisa de nunca ter pensado num assunto e de repente ele aparecer na nossa cabeça. Para ela fora sempre tão natural, por que será que as amigas se incomodavam?
Assim que o manobrista entregou as chaves, ela entrou apressada no carro e tirou a aliança do dedo. Olhou o anel, o mesmo de dez anos atrás e o mesmo até o fim da vida. Um círculo perfeito de ouro. O lado de fora riscado pelo dia a dia, o lado de dentro intacto com o nome do Amauri. E tantas histórias.
Amauri?
O carro de trás buzinou e ela teve que arrancar, apressada. Amauri?
Estacionou um pouco mais para frente e olhou de novo para o anel na palma da mão: "Amauri". Mas como...? Quem diabos é Amauri? Como isso veio parar no meu dedo?
Chegou a pensar que estava louca. E se toda a vida eu chamei meu marido pelo nome errado? E se tivesse um amante chamado Amauri, um que fora atrevido a ponto de lhe dar uma aliança com o nome? Não, quanto absurdo. Era Ângela, mulher realizada, mãe de família feliz, casada com o Rubens. Ângela, que não tira a aliança nunca, para nada.
Quase bateu o carro umas duas vezes.
Entrou no apartamento e fez questão de cumprimentar pelo nome:
— Oi, Rubens.
E o marido respondeu da cozinha, a mesma voz de sempre, era o Rubens mesmo. Quando se beijaram, a Ângela viu que ele tinha esquecido de tirar o crachá da empresa: Rubens.
Passou a noite se revirando na cama, agoniada atrás de alguma explicação. No dia seguinte, quando saiu para trabalhar, o Rubens estranhou quando ela gaguejou um "bom dia, Am... amor", a esposa que nunca foi desses apelidinhos.
Até hoje a Ângela não descobriu. Todos os dias, convive com aquele mistério no dedo, ainda não criou coragem para tirar a aliança de novo. E por via das dúvidas tem ficado em silêncio na cama, na hora do vamos ver, com medo de que escape o nome proibido. Vai saber.
* * *
Estive de férias uns tempos. Férias offline é sempre bom. E, como forma de me desculpar pelos atrasos, hoje são -faz tempo que isso não acontecia, hein!- dois posts.
A Selma tira para lavar louça, fazer limpeza, passar creme nas mãos. As mãos da Elza incham bastante no calor, então já viu. A Rute tira para dormir e, quando vê, saiu de casa e esqueceu de colocar de volta. A Jussara tira -e joga em seguida- toda vez que briga com o Palhares. E a Ângela não tira nunca.
Do jeito que ela contou pareceu, inclusive, uma questão de orgulho. Nunca. Colocou no dedo quando se casou com o Rubens e desde então deixou ali, onde deve ficar, sentenciou. Ué, com o tempo a gente já nem lembra que está usando, vira parte do corpo. As amigas implicaram, tentaram achar umas excessões, mas a Ângela não sem lembrou de nenhuma: não tirou nunca, para nada.
De alianças, o assunto foi para joias, de joias a sapatos e a noite passou divertida.
O assunto era bobo mas, quando se despediram na porta do lugar, a Ângela estava ainda com a história das alianças. Essa coisa de nunca ter pensado num assunto e de repente ele aparecer na nossa cabeça. Para ela fora sempre tão natural, por que será que as amigas se incomodavam?
Assim que o manobrista entregou as chaves, ela entrou apressada no carro e tirou a aliança do dedo. Olhou o anel, o mesmo de dez anos atrás e o mesmo até o fim da vida. Um círculo perfeito de ouro. O lado de fora riscado pelo dia a dia, o lado de dentro intacto com o nome do Amauri. E tantas histórias.
Amauri?
O carro de trás buzinou e ela teve que arrancar, apressada. Amauri?
Estacionou um pouco mais para frente e olhou de novo para o anel na palma da mão: "Amauri". Mas como...? Quem diabos é Amauri? Como isso veio parar no meu dedo?
Chegou a pensar que estava louca. E se toda a vida eu chamei meu marido pelo nome errado? E se tivesse um amante chamado Amauri, um que fora atrevido a ponto de lhe dar uma aliança com o nome? Não, quanto absurdo. Era Ângela, mulher realizada, mãe de família feliz, casada com o Rubens. Ângela, que não tira a aliança nunca, para nada.
Quase bateu o carro umas duas vezes.
Entrou no apartamento e fez questão de cumprimentar pelo nome:
— Oi, Rubens.
E o marido respondeu da cozinha, a mesma voz de sempre, era o Rubens mesmo. Quando se beijaram, a Ângela viu que ele tinha esquecido de tirar o crachá da empresa: Rubens.
Passou a noite se revirando na cama, agoniada atrás de alguma explicação. No dia seguinte, quando saiu para trabalhar, o Rubens estranhou quando ela gaguejou um "bom dia, Am... amor", a esposa que nunca foi desses apelidinhos.
Até hoje a Ângela não descobriu. Todos os dias, convive com aquele mistério no dedo, ainda não criou coragem para tirar a aliança de novo. E por via das dúvidas tem ficado em silêncio na cama, na hora do vamos ver, com medo de que escape o nome proibido. Vai saber.
* * *
Estive de férias uns tempos. Férias offline é sempre bom. E, como forma de me desculpar pelos atrasos, hoje são -faz tempo que isso não acontecia, hein!- dois posts.
Debaixo da carteira
(os livros e eu, cap. vii)
Talvez seja só esse negócio de achar que as coisas de antes eram melhores, mas aquela edição em três grandes volumes -azul, vermelho e verde-, com letras espaçosas e papel fosco e amarelado que um dia um amigo me emprestou era muito mais bonita que essas de hoje.
Era a sexta série, e eu ainda não sabia que tinha acabado de conhecer, num colégio novo e numa cidade nova, os amigos que me acompanhariam pelo resto da vida. Não sabia que aqueles livros virariam filmes e nós esperaríamos -um pouco ansiosos, um pouco temerosos- cada lançamento. Não sabia também que teria pesadelos com logaritmos umas séries adiante, então li O senhor dos anéis nas aulas de matemática mesmo, escondendo os livros embaixo da carteira.
Eu já estava ali mesmo, o tempo demorava pra passar mesmo, então me pareceu uma boa trocar números, formas e fórmulas por elfos, anões e hobbits. Espero que meus filhos não leiam isso, mas lembro de ter copiado umas respostas da menina que sentava do lado -secretamente apaixonada por mim, me contaram mais tarde- para poder terminar de uma vez o capítulo em que o Frodo fugia dos uruk-hai.
Eles corriam o risco de virarem comida de orc, e eu corria o risco de reprovar em matemática, eles se escondiam do Olho que Tudo Vê, eu me escondia do professor de matemática. Cada um com a aventura que merece, enfim.
Emendei um volume no outro em poucas semananas e, quando acabou, fiquei me sentindo sozinho por uns dias. Tinha mergulhado num universo e, de repente, voltado à tona. Porque tem disso: livros que, quando acabam, nos deixam sozinhos.
No fim do ano letivo, eu já lembrava pouco de Bháskara, mas podia dizer de cor uma meia dúzia de canções élficas.
(e minha mãe quase me matou quando chegou o boletim.)
Talvez seja só esse negócio de achar que as coisas de antes eram melhores, mas aquela edição em três grandes volumes -azul, vermelho e verde-, com letras espaçosas e papel fosco e amarelado que um dia um amigo me emprestou era muito mais bonita que essas de hoje.
Era a sexta série, e eu ainda não sabia que tinha acabado de conhecer, num colégio novo e numa cidade nova, os amigos que me acompanhariam pelo resto da vida. Não sabia que aqueles livros virariam filmes e nós esperaríamos -um pouco ansiosos, um pouco temerosos- cada lançamento. Não sabia também que teria pesadelos com logaritmos umas séries adiante, então li O senhor dos anéis nas aulas de matemática mesmo, escondendo os livros embaixo da carteira.
Eu já estava ali mesmo, o tempo demorava pra passar mesmo, então me pareceu uma boa trocar números, formas e fórmulas por elfos, anões e hobbits. Espero que meus filhos não leiam isso, mas lembro de ter copiado umas respostas da menina que sentava do lado -secretamente apaixonada por mim, me contaram mais tarde- para poder terminar de uma vez o capítulo em que o Frodo fugia dos uruk-hai.
Eles corriam o risco de virarem comida de orc, e eu corria o risco de reprovar em matemática, eles se escondiam do Olho que Tudo Vê, eu me escondia do professor de matemática. Cada um com a aventura que merece, enfim.
Emendei um volume no outro em poucas semananas e, quando acabou, fiquei me sentindo sozinho por uns dias. Tinha mergulhado num universo e, de repente, voltado à tona. Porque tem disso: livros que, quando acabam, nos deixam sozinhos.
No fim do ano letivo, eu já lembrava pouco de Bháskara, mas podia dizer de cor uma meia dúzia de canções élficas.
(e minha mãe quase me matou quando chegou o boletim.)
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