capítulo primeiro
— Olha só, mulher, aqui diz que um cachorro entende duzentas palavras.
Dona Dalva concordou, como aprendera com os quarenta anos de casamento, com um “u-hum” mecânico e não chegou a tirar os olhos da fatia de mortadela que puxava do embrulho. À mesa da cozinha, chinelos, calça social e regata do time do coração, seu Jonas folheava a revista que o motoqueiro jogara por cima do portão minutos antes.
— Duzentas é bastante... Você fala tudo isso, Major?
Era uma manhã nublada, quente e úmida. As folhas dos pés de jabuticaba absolutamente paradas. O Major, deitado com o corpo na varanda e a cabeça apoiada no degrau da porta, abanou o rabo com alegria. O vira-latas, muito grande e totalmente preto, a não ser pela barbinha branca que aumentava ano a ano, levantou os olhos tranquilos para o dono...
— E eu, quantas palavras será que eu sei?
... e o dono, pensativo, pousou a revista de ciências e curiosidades ao lado da xícara de café que esfriava. Dona Dalva terminou o sanduíche, juntou umas migalhas sobre a mão em concha e foi, como dizia, cuidar da vida, que não anda fácil para ninguém. Ainda não sabia muito bem o que fazer com o marido recém aposentado; aprendeu com a mãe que homem dentro de casa não presta. Talvez o mandasse cortar a grama.
E o velho Jonas, segurando o café quase frio, continuou olhando para o cachorro esparramado na varanda. Agora já não era mais só um vira-latas, era um mistério.
* * *
Um conto em capítulos, para marcar a volta do blog à ativa; vou publicando -e dando uns retoques- ao longo dos próximos dias. Espero que gostem da saga do nosso amigo Jonas.