24.1.09

Felicidade

Era um dia sem nada de especial, o dia mais ordinário que se possa imaginar. Quarta-feira, meio de mês, naquela hora em que ainda não é noite mas não é mais dia.
     Eu voltava do trabalho e, depois de descer do ônibus, passava em frente ao grande terreno baldio perto de casa. O vento balançava de leve a copa das duas enormes paineiras —no dia em que as derrubarem para construir um conjunto de casinhas sem graça, juro que chorarei.
     Nada de especial me havia acontecido antes, nada de especial acontecia naquela hora, nada de especial aconteceu em seguida. Era minha vida de todos os dias, e só. Eu andava, mãos nos bolsos, pela rua, e só.
     Os cachorros da rua me olharam meio desinteressados, um saco de lixo especialmente generoso lhes chamava muito mais a atenção. Os pardaizinhos não voaram quando passei entre eles —tive de desviar para não pisá-los— e o bem-te-vi gritou para avisar que, se eu chegasse perto do ninho, ia ter briga.
     Sei que esta não é minha história mais interessante. Não há muito mesmo o que contar. A vocês deve estar soando tedioso já, mas a mim, ah!, faz todo o sentido. Era um dia como outro qualquer, mas foi um dia especialmente iluminado.
     Porque num segundo —ou talvez nem isso: numa fração de segundo— senti a vida pulsar dentro de mim como nunca. A vida em toda sua majestade, em toda sua magnitude, em todas as palavras grandiosas que eu saiba escrever. Minha vida de todos os dias.
     Não gritei aos quatro ventos, não dancei comigo mesmo, não conversei com os vira-latas, não cantei com os passarinhos. Não foi bem assim uma cena de musical de Hollywood. Eu sorri, simplesmente, de uma felicidade serena, silenciosa. Não havia mais ninguém na rua, ninguém que testemunhasse o sorriso mais satisfeito que já dei em toda a minha vida.
     Ordenei a mim mesmo que guardasse aquele momento na memória. Foi um instante fugidio, mas definitivamente inesquecível. Um segundinho só, mas a lembrança dele há de durar o quanto Deus permitir que dure a minha vida.

19.1.09

Pensamentos #4

Eu, de minha parte, já me acostumei com o tal Acordo. Mas o que será que diria o incompreendido e jamais dignamente louvado Dom Quixote, nosso heroico —estão vendo como aprendi mesmo?– cavaleiro da triste figura, quando descobrisse que o nome de sua doce inimiga, senhora Dulcineia del Toboso, não deve mais levar acento?

12.1.09

Dona Mirtes

Começou com o Tobi a tradição de a dona Mirtes mandar empalhar cada cãozinho que passa dessa para uma melhor. E já são três pequineses empertigados em cima da cristaleira na sala de estar: o Tobi, o Nonô e o Xereta. O Capitão, que ainda está bem vivo, se bem que já meio ruim de fôlego, olha meio ressabiado para o destino inevitável toda vez que passa por ali.
     É uma daquelas velhinhas miúdas, magrinhas, que parecem que vão quebrar se um dia tomam um encontrão na rua. Velhinha de vestido florido de cambraia, casaquinho de tricô por cima, meias de lã puxadas até o meio das canelas, óculos grandão de lente cor de âmbar, sombrinha nos dias de sol. Uma velhinha autêntica.
     Todo santo dia, depois de rezar para santa Edwirges, ela passa a flanelinha num quadro de moldura dourada e vidro já meio embaçado pendurado em lugar de destaque, logo ao lado da cristaleira com as baixelas, os cristais e os pequineses. É o retrato do falecido, que lhe deu trinta e tantos anos de casamento feliz, três filhos e a simpática casa azul no final da ruazinha sem saída.
     Todo santo dia, dona Mirtes leva o Capitão para o passeio matinal. Segue pela rua tranquila nos seus chinelos peluciados, seguida pelo tique-tique-tique-tique das patinhas do inseparável companheiro. O Capitão, sempre vigilante, vai distribuindo rosnados a quem cruzar o caminho. A Cida da casa 8? Rosnado. O Tarcísio de bicicleta? Rosnado. Criança jogando bola? Rosnado. O pessoal da república? Grrrrr!
     Todo santo dia, depois do almoço, dona Mirtes deita no sofá e o Capitão pula para sua poltrona preferida —leva uma vida boa o cachorrinho, disso ele não pode reclamar— para assistirem o reprise da novela. Acaba que caem os dois numa soneca preguiçosa —e todo santo dia o Capitão tem pesadelos com o empalhador— até a hora da sopinha.
     Todo santo dia, dona Mirtes cozinha bem os legumes para a sopa. Bate bem no mixer que ganhou da filha, que a dentadura anda meio ruim para mastigar. Derrama uma concha por cima da comida do Capitão, um pouco por agrado e um pouco para ajudar a amolecer a ração, que os dentes dele já não andam lá essas coisas também.
     Volta e meia algum filho vem visitar e passa um sermão sobre medir o diabetes, cuidar do colesterol e um tal sujeito de nome complicado: Alzimar, Alzemir, Alzheimer... que ela sempre esquece quem é. Se enchem muito a paciência, dona Mirtes desliga o aparelhinho de surdez e deixa o pobre aflito falando com as paredes. Ela explica que não entende de morrer, só sabe viver.
     Todo santo dia, dona Mirtes leva o Capitão para o passeio da manhã. Um percurso de mais ou menos 100 metros, que ela percorre com exatamente cento e vinte passinhos cautelosos nos chinelos peluciados. O Capitão precisa de quatrocentos e quarenta e oito passinhos nervosos, tique-tique-tique-tique das patinhas de pequinês. Todo santo dia, ela reza para santa Edwirges. Todo santo dia, ela suspira pelo falecido.
     Devagarinho, passo a passo. E, mesmo com a calma de quem já não precisa mais chegar, vai longe a dona Mirtes.
     Todo santo dia, ela é feliz.

8.1.09

Miau!

Era uma vez um poeta. Um poeta que, toda noite, afiava sua pena –a história começa há muito tempo atrás, tempo de escrever com pena–, acendia umas velas, preparava a tinta, essas coisas práticas, e depois pensava na amada, olhava para a lua, suspirava umas vezes, essas coisas de poeta. E então se punha a escrever. E escrevia bem, viu? Foi um poeta genial, caiu até no vestibular esses dias.
     Noite dessas, ele sentiu que vivia um momento mágico, uma catarse, um instante único de especial inspiração. As musas imortais sussurraram no seu ouvido que, naquele momento, sairia de sua pena a obra-prima que gravaria seu nome pelos séculos adiante. Coisa séria mesmo. Tomado pela solenidade, buscou sua melhor pena no armário, aprumou-se na escrivaninha e...
     — Miau!
     Não, ele não escreveu "miau". Ainda não era época de poesia modernista, então dificilmente ele faria sucesso escrevendo uma coisa dessas. Foi um gato mesmo, de verdade, que miou lá fora. Nosso poeta recuperou-se, pegou uma nova folha, molhou a pena na tinta e...
     — Miaau!
     Agora foi um miado mais forte –notaram os dois "aa"? O poeta, que não gostava de sujar as mãos com nada que não tinta, tocou a sineta, chamou os empregados —era um poeta fidalgo— e mandou que amarrassem, melhor, que amordaçassem o gato. Assim fizeram —escrevendo assim parece fácil, mas foi um serviço bem complicado amordaçar um gato– e ele escreveu. Escreveu como nunca na vida. Uma beleza.
     Na noite seguinte, ele pensava numa continuação, talvez um segundo canto para sua obra-prima. Afiou o cálamo, ajeitou tudo e começou:
     — Miaaau!
     Vejam que os três "aa" mostram que o gato estava cada vez mais abusado. O poeta bem que pensou em mandar apagar o bicho, mas –era um poeta ecologista– só repetiu a ordem: "amordacem-no". Tomaram uns arranhões, pegaram daqui, seguraram de lá, amordaçaram e ele escreveu.
     Na próxima noite, adivinhem? Batata!
     — Miau.
     Com um "a" só e sem exclamação, mas mesmo assim foi suficiente. E na próxima noite, e na próxima. Os capangas já estavam ficando bons no serviço, amordaçavam o gato com uma facilidade que só vendo. O tempo passou, passou e o gato miou, miou. E dá-lhe mordaça.
      Os anos passaram, o poeta morreu e o gato, que a essa altura via tudo como uma brincadeira, ficou deprimido e morreu também. Deu que o filho do nosso amigo decidiu aproveitar o sobrenome já famoso —que esse tipo de esperteza já é bem antiga— e virar poeta também. Fechou um contrato prévio com a editora, tomou posse do escritório do pai e foi escrever. Assim que se sentou na cadeira do velho, lembrou do que ele sempre fazia, pensou "para alguma coisa deve servir" e soltou "amordacem um gato!". Assim foi.
      A moda pegou. E todos os aspirantes a poetas da época e da redondeza pensaram "para alguma coisa deve servir". E os poetas mandavam e os capangas amordaçavam e os gatos levavam a pior. E ninguém sabia mais por quê.
     Os anos passaram, viraram séculos e, séculos depois, os estudiosos quebram a cabeça e publicam trabalhos livros artigos teses tratados discutindo o simbolismo do gato amarrado na tal escola poética. Diz, inclusive, que lá nos Estados Unidos lançaram um best-seller, O código do gato, que explica todos os mistérios da Humanidade e denuncia uma ordem secreta que há séculos conspira para silenciar a prole do gato-messias, e que logo chega por aqui com tradução do Diogo Mainardi.

7.1.09

Asas

Um bater de asas
e lá se vai o sabiá
–ah, se eu fosse Ícaro...