26.8.09

O jantar

III
(Partes anteriores: I e II)

— Pedir sauvignon blanc para acompanhar boeuf bourguignon! Franchement!
     O salão silenciou, todos viraram para ouvir o protesto, com sotaque francês, que veio da cozinha. No instante seguinte, o chef L. empurrou as portas da cozinha e entrou no salão, carregando uma garrafa de vinho numa das mãos. Foi até a mesa 13, onde estavam M., a socialaite, e seu rapaz e serviu um pinot noir, mais apropriado.
     Todos pararam com as taças e garfos no ar. O chef deu meia-volta para ir à cozinha. Todos voltaram às suas entradas. Então, ele pareceu lembrar-se de alguma coisa, parou um segundo e virou-se para o salão:
     — Ah, bonsoir, mes amis. Uma honra vê-los aqui de novo. E a linda senhorita também, embora ainda tenha que aprender a escolher vinhos.
     Virou as costas e voltou para a cozinha. Típico. Alguns balbuciaram um comentário discreto, outros sorriram para si mesmos e todos voltaram para suas entradas. Num outro restaurante, com um outro chef, todos teriam se chocado, mas vindo do chef L. a cena não chegava nem a surpreender.
     No fundo, quem frequentava o lugar já sabia que deveria ter paciência com seus excessos. Quem quisesse chefs simpáticos que fizessem pratos sem tal tempero ou com tal molho no lugar de tal coisa, ia a qualquer outro lugar; quem quisesse excelente comida, ia ao chef L.
     Tanto era assim que uma mesa tinha que ser reservada com semanas de antecedência, a não ser no caso dos senhores e senhoras que agora lotavam o salão –seus clientes preferidos. Da mesma forma como eles tinham exclusividade naquele jantar de retorno do chef, também conseguiam, mesmo nas noites mais concorridas, que algum outro cliente fosse discretamente descartado para alojá-los em suas mesas preferidas.
     Aqueles senhores e senhoras eram como mascotes que o grande cozinheiro criava. Eram o único público refinado o bastante para admirar seu gênio, e por isso estavam ali.
     Nisso, mais barulhos na cozinha; o chef parecia especialmente impaciente. Senhora L. anotou os últimos pedidos de prato principal –signora C. sempre fazia uma lista enorme– e foi ajudar o marido na cozinha.

17.8.09

O jantar

II

— Bonsoir, monsieur! E madame, há quanto tempo!
     No dia da reinauguração do bistrô, a senhora L., esposa do chef, fez questão de receber cada um dos convidados na porta. O primeiro a chegar foi o general reformado J., resquícios da pontualidade dos tempos de ativa no exército. Sentou-se, acompanhado da esposa, na sua mesa preferida e mais ordenou que pediu o cardápio.
     Os outros não tardaram a chegar. Não só pela ansiedade em que todos estavam, mas porque conheciam a personalidade do chef o suficiente para supor que junto do polido “vinte e duas horas” escrito nos convites devia-se ler, nas entrelinhas, um irritado “nem antes, nem depois”.
     O pequenino signor C. mais parecia um acessório, assim como as joias ou o casaco de pele, da extravagante esposa. A rica herdeira M. puxava pela mão um brutamontes com quem fora flagrada pelos fotógrafos numa praia, na semana anterior. A bailarina foi sozinha, na sua beleza etérea e um tanto fria.
     Assim, o pequeno salão, até ontem abandonado, foi se enchendo de vida outra vez. Alguns convidados se conheciam dos eventos da sociedade e trocavam acenos de cabeça. O desembargador e o professor de latim juntaram as mesas, eram velhos colegas de faculdade. O crítico literário anotava impressões na sua caderneta. O casal de músicos relembrava, entre goles de vinho, trechos de um prelúdio de Bach.
     Alguns sentiram falta do maître da casa, Pierre. Não havia, aliás, nem maître nem garçom. Somente quem servia o salão era senhora L., que anotava os pedidos e indicava as novidades do menu. Ficou, porém, sem reação quando, depois de contarem que hoje era seu aniversário de casamento, o casal K. observou:
     — Interessante, hoje faz exatamente um ano que o bistrô fechou. E não teríamos como errar, porque viemos aqui comemorar nosso aniversário no ano passado quando demos com as portas fechadas.
     E, a tudo isso, nada de aparecer o chef L. Com certeza preparava uma entrada triunfal, presumiu o cônsul, o mais próximo de um amigo pessoal que o cozinheiro tinha.