14.12.11

Cinco anos

Outro dia, uma cliente do restaurante veio falar com minha esposa de uns textos que descobriu na Internet. Os elogios da senhora foram sinceros. Quando ouviu, surpresa, o nome do blog, a resposta foi um sorriso e um "é o meu marido quem escreve essas coisas".
     Acho que nunca vou deixar de me surpreender.
     Hoje o Acepipes Escritos completa cinco anos. Fosse uma criança, já estaria correndo pela casa, virando baús de brinquedos, pedindo para ver pela milionésima vez o filme predileto, aprendendo as primeiras letras. Mas, como é um blog, a história é outra.
     Aqui registrei minha viagem, minha maior aventura. Aqui vivi tempos amargos e vi chegar o tempo da felicidade. Aqui contei de quando comecei a namorar e de quando me casei. Aqui me despedi da minha avó, lembrei da minha infância, pensei no futuro. Aqui inventei histórias personagens vidas começos finais. Aqui conheci muita gente e me deixei, como em outro lugar nenhum, me conhecer.
     Nos últimos tempos, a coisa tem acelerado de uma forma que anda difícil, para mim tão tímido, apreender. Sou demorado com certas coisas.
     Têm surgido amigos no Facebook, seguidores no Twitter, leitores no feed, várias citações em muitos lugares. Alguns posts ganharam uma repercussão nas redes sociais que já não consigo mais acompanhar. Bati a marca das duas mil visitas num dia só. Fui citado em grandes blogs e por grandes pessoas. O Acepipes foi usados por professores em sala de aula. Fui convidado para falar sobre escrita numa das universidades mais importantes do país. Pediram que eu autorizasse publicar textos em revistas e antologias. Recebi até proposta de casamento.
     Desculpem se pareço pedante, mas é que eu só enumero as coisas assim porque fico meio assombrado.
     Nunca fiz nenhuma propaganda, nunca criei correntes, nunca repassei nada, nunca tive pretensão de enfiar nada pela goela abaixo de ninguém. Só escrevi. Só escrevi, e vocês é que estão fazendo o milagre acontecer.
     Vocês que talvez nem tenham ideia do quanto, no aparente silêncio do lado de cá, eu estimo cada um. Vocês que talvez não tenham nem ideia de quantos nomes eu já guardei, de quantas histórias pessoais eu já acompanhei.
     Vocês são o milagre.
     E eu só queria agradecer, muito, e de coração.
     (E eu também queria que existisse uma palavra maior que "obrigado".)

12.12.11

Dez Negrinhos

(os livros e eu, cap. iv)

          Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;
          Um deles se engasgou e então ficaram nove.
          -Agatha Christie


Eu devia ter, sei lá, uns dez anos e, depois do almoço, peguei um livro antigo do meu pai, daqueles amarelados e com as páginas meio caindo. Vou admitir que tinha um certo preconceito com aqueles livros porque eram amarelados e tinham páginas caindo, mas estava cansado dos meus de sempre –Gulliver, Sinbad, Mogli– e resolvi arriscar. A capa era feia. Chamava-se O caso dos dez negrinhos. Comecei a ler, como quem não quer nada.
     Eletrizante, essa é a palavra: eletrizante.
     Uma mansão numa ilha. Dez pessoas estranhas. Assassinato. Sobram, então, nove pessoas. Depois, oito e sete e seis.
     Era época de aula de manhã e nada para fazer à tarde –a lição de casa eu copiava, rapidinho antes de entrar na sala, de uma menina apaixonada por mim, que com dez anos eu era meio cafajeste, depois tomei jeito–, então pude me dar a um luxo que hoje em dia é raro: li tudo de uma sentada só. O dia já estava escurecendo quando fui chegando ao final do mistério, fervendo a cabeça com um monte de soluções e vislumbrando uma promissora carreira de detetive particular.
     Cinco pessoas. Quatro. Três.
     Mas eis que. Eis que.
     Quando virei uma página, dei com um trecho que, ué, pareceu meio familiar. Virei mais a próxima e mais outra: já tinha lido. Então notei que o livro tinha um defeito: trocaram na gráfica os últimos cadernos de impressão. Então, ao invés das últimas páginas, eu tinha umas repetidas da metade. Necas de final.
     Como o bendito devia ter sido comprado há uns vinte anos, era tarde demais para ir à livraria e pedir para trocar. Quando meu pai chegou em casa, corri para perguntar e ele me respondeu só uma risada divertida. Também não sabia o final.
     Até hoje não sei quem é o assassino. Ficou esse trauma na minha vida de leitor.
     E enquanto eu escrevia isso me veio à cabeça a ideia de guardar o livro para pregar a mesma peça no meu filho.

* * *
Este já foi publicado aqui faz um tempo, mas é que entra certinho nesta série...

9.12.11

Compras de Natal

          baseado num dos cartões do sempre
          surpreendente Post Secrets

Acontece bastante, já deve ter se passado com quase todo mundo: num mercado, numa loja, num restaurante, alguém nos chama a atenção, sabe-se lá o porquê. E aí acompanhamos, de canto de olho e só por uns minutos ou até uns segundos, aquele amigo. Uma coisa silenciosa, meio clandestina. Adivinhamos um pouco da história, inventamos outro tanto, desejamos boa noite, bom descanso, que chegue bem em casa. Um tipo de afeto, uma certa curiosidade, alguma simpatia...
     Que foi bem o que aconteceu com uma moça enquanto empurrava o carrinho pelo supermercado. Já comprara um litro de leite, umas frutas e a comida do gato e agora andava pelos corredores, tentando resolver a sensação de que faltava alguma coisa.
     Entre as montanhas de panetones, ela cruzou com uma mulher de meia idade, gestos vivos e olhos cansados, cabelos precisando de um retoque. Uma mulher dessas que, de bater os olhos, sabe-se que é mãe, não só dos filhos que têm -ou talvez nem tenha-, mas de muita gente. Empurrava um carrinho cheio de brinquedos em direção dos caixas.
     Filhos? Netos? Crianças carentes, órfãos, vizinhos pobres...?
     A moça largou da sensação de faltar algo -quase nunca falta- e decidiu também ir ao caixa. Ficou ali, escondendo um sorriso e fingindo que olhava um panfleto, enquanto via passar uns carrinhos, uma boneca, um urso de pelúcia, uma locomotiva, uns jogos de montar, um disquinho de músicas natalinas.
     Depois da senha, o garoto do caixa falou indiferente que o cartão não foi autorizado. A senhora pareceu olhar para cima e pediu que tentasse no crédito. Foram uns segundos angustiantes até o segundo não.
     A senhora agradeceu e saiu da loja de mão vazias.
     Mas então a moça foi rápida; na mesma hora soube o que fazer. Sempre  sabemos, só precisa a coragem. Pediu ao caixa que passasse todos os brinquedos deixados e pagou por tudo. Correu empurrando o carrinho cheio de brinquedos até o carro onde a senhora, de olhos vermelhos, já dava a partida e bateu no vidro.
     O motor engasgou e morreu.
      Uma do lado de dentro, outra do lado de fora, começaram a chorar. A moça se descobriu também uma mãe, não só dos filhos que ainda não tinha mas de muitos outros. A mulher de meia idade abriu a porta e deu um abraço atrapalhado, demorado. Ajudaram-se a colocar tudo com cuidado no banco de trás.
     Quando conseguiu falar, a senhora agradeceu, abençoou, agradeceu, chorou, agradeceu e pediu um telefone, fazia questão de pagar assim que pudesse. E a moça, pela segunda vez, soube o que fazer: puxou um bloquinho e uma canetinha da bolsa e escreveu um número falso.
     Pediu à senhora se podia dar-lhe mais um abraço e foi embora. Só quando chegou em casa notou que esquecera seu leite, suas frutas e a comida do gato.
     E era Natal.

7.12.11

Nadar para longe

(os livros e eu, cap. iii)

Foi uma época gostosa. Íamos caminhando até a casa de um tio avô da minha mãe, um iuguslavo comunista que tinha no quintal de casa uma escolinha de natação –cujo método de ensino consistia basicamente em me agarrar pelo cabelo enquanto eu nadava: se eu parasse, afundava e doía– e passávamos as manhãs das férias entre braçadas e sanduíches.
     Um dia o tio me chamou para a secretaria improvisada –lembro do cheiro de cloro– e perguntou se eu queria uns livros. Imagino que minha resposta tenha sido um sorriso do tipo "quem é que pergunta a um macaco se ele quer bananas?".
     Foi complicado, mas carreguei tudo para casa. Talvez tenha sido a primeira vez que senti o peso –nem sempre no sentido figurado– do conhecimento. É bem sacrificada a vida de leitor nadador aos seis anos.
     Eram cinco volumes grandes e verdes de capa dura, coisa antiga. Por dentro, as histórias e umas ilustrações em traços vermelhos. Posso estar bem enganado, mas ninguém saberá me desmentir: o primeiro tinha as histórias dos Irmão Grimm e o segundo, vários contos de fada; depois vinham as viagens completas do Sinbad, as do Gulliver e as do Marco Polo.
     Viagens.
     Foi, acho, a primeira vez em que meu mundo cresceu além das oito horas de carro até Minas que eram meu recorde de lonjura. O mundo lá fora era grande para caramba. E o mundo aqui dentro podia ser maior ainda.
    O problema dos clichês é que às vezes eles são verdade, e aí já é difícil levá-los a sério. Pois, de todos os clichês sobre livros, aquele de viajar sem sair do lugar foi, por um bom tempo, o que mais fez sentido para mim: vivi um bom tempo em terras distantes. Aparecia em casa sempre que minha mãe chamava para o café, mas logo voltava para algum deserto, alguma ilha, alguma cidade perdida.
    Quem me olhava, menino magrelo e tímido, nem imaginava minhas andanças. Há que ser muito macho para chegar lá tão longe. Ainda bem que o tio estava me ensinando a nadar.
     Anos depois acabamos doando a coleção a outras crianças, de modo que me agrada pensar que talvez eu tenha alguns outros companheiros de viagem por aí. Não me assustaria um dia receber uns postais.  

* * *
Peço mil perdões (de novo) pelo (enorme) atraso. Semana passada, as coisas mudaram muito de rumo aqui, assim meio de surpresa. Mas -já que falamos de viagens- não sou de ficar me ressentindo dos ventos, é só o tempo de ajustar as velas e tocar o barco de novo. A vida é uma beleza.