16.1.12

Menino de engenho

(os livros e eu, cap. vi)

Eu era um menino franzino e tímido. Tímido a ponto de ficar vermelho só de ouvir meu nome na chamada, a ponto de só querer da professora que me deixasse passar despercebido. Pois chegou um dia em que tudo deu errado. Sempre chega.
     Era comecinho de ano, quarta série. Eu tinha um livro na mochila, mais um desses amarelados e de páginas meio caindo que eu pegava escondido nas coisas dos meus pais. A professorava passava, acompanhando a lição, e viu entre o zíper aberto da minha mochila uma metade de título que, imagino, logo reconheceu. Uma onda vermelha me subiu pelo pescoço quando ela pediu para ver e pegou das minhas mãos O menino de engenho, José Lins do Rego.
     O que veio em seguida foi um horror. Eu podia sentir o rosto esquentando, as orelhas cozinhando conforme ela mostrava à classe meu exemplo, elogiava meu interesse por ler um livro daqueles sem que fosse pedido na escola, contava da sua própria experiência como leitora e –mais tarde descobri– esposa de escritor. Devolveu-me o livro com os olhos molhados e um sorriso dos grandes.
     Superei rápido meu trauma de ter sido notado pela classe inteira e ficamos bons amigos. Lembro do clube de leitura –tínhamos que ler um livro a cada quinze dias– que ela organizou com doações que trouxemos de casa. Lembro das várias lições de redação, e lembro particularmente de uma descrição onde eu dizia do mar azul como safira. Fico pensando que tipo de criança de onze anos escreve "azul como safira"... eu devia ser meio árcade quando era pré adolescente.
     Do menino de engenho, mais que a história, que o avô coronel, que os castigos, mais que os canaviais sem fim, que o doce da cana, que o cangaço ficou esse ano letivo com a professora que me descobriu apaixonado pelas letras.
     Porque os livros têm isso também: fazem viver histórias não só dentro das páginas, mas também fora delas. Às vezes o que fica não é nem um personagem, um enredo ou um trecho em especial, mas a lembrança de um passeio na livraria, de uma tarde numa poltrona confortável, de uma conversa com quem também leu.
     Existem essas pessoas que cruzam nosso caminho, ficam só uma temporada e já seguem para outras paragens. Pois se um dia eu conseguisse fazer uma lista justa, que não esquecesse nenhuma delas, a professora Maria Aparecida, da quarta série, iria para as cabeças.
     Pessoa maravilhosa. Calhou a vida de nos encontrarmos e, se um dia eu escrever algo que valha, deverei a ela.

2.1.12

Padre Amaro

(os livros e eu, cap. v)

— Pode escolher o livro que você quiser.
     Minha mãe não sabe o problema que me inventou quando disse isso. Eu tinha me comportado bem na visita a uma tia avó, o ônibus parecia que não chegaria tão cedo, e então ela decidiu entrar na livraria para me fazer um agrado. Fiquei ali, esse problemão nas mãos, enquanto ela foi procurar umas revistas de tricot.
     O livro que eu quiser. Hoje em dia, leitor mais experiente, tenho uma lista de pretendidos que posso sacar do bolso numa emergência do tipo "pense rápido" como essa, mas na época eu fui pego desprevenido. Numa livraria com milhares, qual?
     Logo nas primeiras prateleiras, um me prendeu os olhos. Olhei por tudo, pensei em mais uma meia dúzia de outros, mas sabem como é: o primeiro palpite é sempre o certo. Foi o tempo de pagar e correr para o ônibus prestes a sair do ponto final.
     Caí no sofá de tênis e tudo e tirei da sacolinha O crime do padre Amaro, do Eça de Queirós.
     Eu ainda não ligava muito para orelhas e contra-capas, comprei pelo título mesmo –e um pouco pelo meu avô, também Amaro. Imaginei uma história de suspense, um detetive, um ajudante atrapalhado, um assassino acima de qualquer suspeita, essas coisas. Que será que tinha aprontado o tal padre?
     Nada disso. O que eu tinha ali era um livro português de mil oitocentos e tanto, linguagem da época, crítica pesada à sociedade e ao clero, personagens moralmente fracos, um padre que engravida uma mulher. Só agora, quase vinte anos depois, fui descobrir que é um livro emblemático, o primeiro do realismo português, uma coisa mesmo polêmica. Mas eu tinha dez anos e só queria uma história inofensiva de detetive. Mas nada disso.
     Mandei ver mesmo assim.
     Com o tempo, dos livros vão sobrando pedaços na nossa memória. Desse, lembro logo de cara das noites em que o padre Amaro acorda e dá com dois olhos em brasa espreitando; tudo escuro e só aquelas duas luzinhas malignas no pé da cama. Também tinha essa moça Amélia, uma coitadinha que, em meu parecer inocente da época, entrou de gaiato na história. Tinha uma pensão em que se subia uma escada para entrar, tinha umas senhoras fofoqueiras mui vigilantes da moral e dos bons costumes. Tinha um outro padre que morreu de apoplexia –e até hoje eu não sei o que é apoplexia– e tinha muitas palavras complicadas.
     Li de um jeito meio clandestino, ressabiado de que me descobrissem com algo impróprio para um menino de dez anos. Terminei com uma sensação boa: tinha lido um livro de adultos, já não era mais tão bobinho assim.
     E uma coisa eu confesso: até outro dia atrás eu ainda tinha medo de acordar de madrugada e dar com dois olhos vermelhos me vigiando. Deuzolivre.