30.12.09
Pensamentos #6
Esses dias entre Natal e Ano Novo são sempre meio estranhos: gente que desaparece, gente que reaparece do nada, telefone que não atende, número de celular que muda, notícia de gente que mudou casou teve filho morreu... É como se essa semana fosse a Área 51, o Triângulo das Bermudas do calendário.
28.12.09
21.12.09
O Frank
— E então o Frank puxava esse banco aí, esse aí que você tá sentado, Carlão, pedia uma dose, encostava no balcão e a gente ficava papeando.
O "Frank", no caso, era o Frank Sinatra. E quem contava a história, apontando para o banco do lado direito do balcão, bem em frente ao vidro de rolmops, era o seu Juvêncio, dono do boteco, para mais de cinquenta anos de vida boêmia. E contava sempre assim, com toda seriedade do mundo.
Volta e meia alguém puxava o assunto mais uma vez. Na verdade, era meio que um plano B: quando tudo estava quieto, o futebol estava de férias, naquela época em que acabou o Brasileirão mas ainda não vieram os regionais e o último escândalo político já tivesse dado pizza, eles puxavam o assunto do Frank Sinatra. E o seu Juvêncio não negava prosa.
Diz que lá pelo final dos sessenta, começo dos setenta, quando o boteco era recém aberto e nem tinha muita coisa ali em volta ainda, o Frank Sinatra apareceu por aquela porta. Veio um dia, voltou no seguinte e virou cliente amigo. Abria o pote e pescava ele mesmo um rolmops, pedia uma caninha e ficava ali, de papo.
— Mas se o senhor não fala inglês e o Sinatra não falava português, seu Juvêncio...
— Meu amigo, dois semelhantes, quando se encontram, se comunicam. É coisa de alma.
E dava um gole em brinde ao amigo falecido. O pessoal da roda ficava sempre entre indignado e divertido,não sabia se chamava o velho botequeiro de volta à realidade –Sinatra tomando cachaça e comendo rolmops em boteco pé de porco?– ou se incentivava a fantasia dele. Eram histórias divertidas, afinal.
— Volta e meia alguma mulher, toda chorosa, ligava aqui, desesperada para falar com ele. O Frankie ficava ali, acenando, e eu dizia "Frank Sinatra no meu bar, minha senhora? Não me faça rir!"
E virava outro gole. O bom do seu Juvêncio é que ele parecia não notar a ironia dos amigos. Quando pediam para repetir alguma, ele fingia não ouvir os risos escondidos e a ironia nas vozes. Para ele, falar do Frank era assunto sério.
— Então ele combinou de fazer um sinalzinho. Disse que quando coçasse a orelha, é porque aquela era pra mim. Grande Frank.
Outro gole.
Um dia anunciaram atração de gala na Globo: especial do Sinatra. De madrugada, é claro, porque horário nobre é só para cantora de axé. Combinaram de assistir todos ali no boteco. Naquela noite, o seu Juvêncio não contou nenhuma história. Ficou ali, preparando massa e recheio, arrumando o freezer, passando paninho com álcool no balcão de fórmica azul. O pessoal tomou o silêncio como nervosismo: a máscara estava prestes a cair.
Lá pelas tantas, cantando My Way –justo My Way!–, o Frank Sinatra deu uma coçadinha na orelha direita. Seu Juvêncio deu um suspiro fundo, como quem segura a emoção, levantou o copo em direção da tevê, virou de um gole só e voltou em silêncio para a fritadeira, de onde tirou mais uma leva de pastéis. Tirando a voz do Blue Eyes, o boteco passou o resto da noite em silêncio.
— The record shows, I took the blows and did it my way...
Desde então ninguém mais pediu para o seu Juvêncio contar nenhuma do Frank Sinatra. Também, por precaução, ninguém mais sentou no banco do lado direito do balcão, o que ficava bem em frente do pote de rolmops. Com essas coisas não se brinca. Vai saber.
O "Frank", no caso, era o Frank Sinatra. E quem contava a história, apontando para o banco do lado direito do balcão, bem em frente ao vidro de rolmops, era o seu Juvêncio, dono do boteco, para mais de cinquenta anos de vida boêmia. E contava sempre assim, com toda seriedade do mundo.
Volta e meia alguém puxava o assunto mais uma vez. Na verdade, era meio que um plano B: quando tudo estava quieto, o futebol estava de férias, naquela época em que acabou o Brasileirão mas ainda não vieram os regionais e o último escândalo político já tivesse dado pizza, eles puxavam o assunto do Frank Sinatra. E o seu Juvêncio não negava prosa.
Diz que lá pelo final dos sessenta, começo dos setenta, quando o boteco era recém aberto e nem tinha muita coisa ali em volta ainda, o Frank Sinatra apareceu por aquela porta. Veio um dia, voltou no seguinte e virou cliente amigo. Abria o pote e pescava ele mesmo um rolmops, pedia uma caninha e ficava ali, de papo.
— Mas se o senhor não fala inglês e o Sinatra não falava português, seu Juvêncio...
— Meu amigo, dois semelhantes, quando se encontram, se comunicam. É coisa de alma.
E dava um gole em brinde ao amigo falecido. O pessoal da roda ficava sempre entre indignado e divertido,não sabia se chamava o velho botequeiro de volta à realidade –Sinatra tomando cachaça e comendo rolmops em boteco pé de porco?– ou se incentivava a fantasia dele. Eram histórias divertidas, afinal.
— Volta e meia alguma mulher, toda chorosa, ligava aqui, desesperada para falar com ele. O Frankie ficava ali, acenando, e eu dizia "Frank Sinatra no meu bar, minha senhora? Não me faça rir!"
E virava outro gole. O bom do seu Juvêncio é que ele parecia não notar a ironia dos amigos. Quando pediam para repetir alguma, ele fingia não ouvir os risos escondidos e a ironia nas vozes. Para ele, falar do Frank era assunto sério.
— Então ele combinou de fazer um sinalzinho. Disse que quando coçasse a orelha, é porque aquela era pra mim. Grande Frank.
Outro gole.
Um dia anunciaram atração de gala na Globo: especial do Sinatra. De madrugada, é claro, porque horário nobre é só para cantora de axé. Combinaram de assistir todos ali no boteco. Naquela noite, o seu Juvêncio não contou nenhuma história. Ficou ali, preparando massa e recheio, arrumando o freezer, passando paninho com álcool no balcão de fórmica azul. O pessoal tomou o silêncio como nervosismo: a máscara estava prestes a cair.
Lá pelas tantas, cantando My Way –justo My Way!–, o Frank Sinatra deu uma coçadinha na orelha direita. Seu Juvêncio deu um suspiro fundo, como quem segura a emoção, levantou o copo em direção da tevê, virou de um gole só e voltou em silêncio para a fritadeira, de onde tirou mais uma leva de pastéis. Tirando a voz do Blue Eyes, o boteco passou o resto da noite em silêncio.
— The record shows, I took the blows and did it my way...
Desde então ninguém mais pediu para o seu Juvêncio contar nenhuma do Frank Sinatra. Também, por precaução, ninguém mais sentou no banco do lado direito do balcão, o que ficava bem em frente do pote de rolmops. Com essas coisas não se brinca. Vai saber.
14.12.09
Três anos
Sempre publico meus textos do mesmo jeito, com a mesma fonte, mesmo corpo, mesma cor. Mas hoje vou fugir à regra, porque quero escrever aqui um grande e sincero
obrigado!
Três anos de Acepipes Escritos. Duzentos e poucos posts, mais de cinquenta mil visitas, um prêmio, um monte de indicações. E o melhor: amigos. Obrigado mesmo.
obrigado!
Três anos de Acepipes Escritos. Duzentos e poucos posts, mais de cinquenta mil visitas, um prêmio, um monte de indicações. E o melhor: amigos. Obrigado mesmo.
Ele, ela e o Chet Baker
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 17.10.2008)
Numa sexta, depois de uma cerveja com os amigos, ele chegou em casa molhado da garoa fina. Sozinho, ninguém na garupa da moto. Um gato fugiu, rápido, quando ele abriu o portão.
Numa sexta, depois de um cinema com as amigas, ela voltou ouvindo música baixinho no carro. Sozinha, ninguém no banco do carona. O cachorro correu para saudá-la na garagem.
Debaixo do chuveiro, ele pensava que a havia deixado escapar. Escapar como a água que agora corria para o ralo. Delicada, refinada. Uns olhos que faziam a coisa valer a pena. Bela garota, talvez a que ele andava precisando para deixar de vez de viver do passado.
Sentada no sofá, ela lembrava de como ele, desde a última vez, sumira. Sumira feito a fumaça do chá que ela agora assoprava. Bem-humorado, bom caráter. Uma voz que a fazia sentir-se mais leve. Bom rapaz, quem sabe o que ela estava esperando para viver o futuro.
Pensando consigo, ele sabia que tinha mexido com ela. Certa vez concluíra –embora não fosse dizer isso jamais– que ele deveria ser diferente dos outros com quem ela havia convivido até então. Notara como ela parecia mais à vontade e deixava-se afundar lentamente nas cadeiras quando estava ao lado dele e como –coisa tão sutil nela– tocava-lhe as mãos, às vezes, enquanto conversavam.
No fundo, ela sabia que havia, sim, despertado o interesse dele. Um dia tivera a impressão –que jamais dividiria com ninguém, para não soar pretensiosa– de que ela trouxera frescor ao mundo tão rígido dele. Notara como ele se empertigava todo ao entrar em algum lugar ao lado dela e achara bonitinho o gesto –parecia tão natural nele– de empurrar as portas e deixá-la entrar antes.
Para ele, não havia mais volta. Hesitante, deixara o tempo passar, deixara as coisas chegarem a um ponto onde não havia mais conserto. Na verdade, para ele, tudo havia começado errado.
Para ela, tudo estava perdido. As coisas tinham esfriado, culpava-se por talvez ter sido muito precipitada, talvez tê-lo assustado de alguma forma. Para ela, terminaram tudo errado.
Mas, no fundo, pensava que cederia caso ela voltasse. Censurava-se por ter pensado demais.
Porém, tinha uma esperança de que ele aparecesse. Consolava-se por ter sentido demais.
No quarto, antes de dormir, ela ouvia Chet Baker. Lembrava de terem comentado uma vez e sorrido ao descobrir esse gosto em comum.
E no quarto, antes de dormir, ele amaldiçoava Chet Baker porque cantava, com sua voz mansa, no ouvido dela, tudo o que ele fora covarde demais para dizer.
(publicado originalmente em 17.10.2008)
Numa sexta, depois de uma cerveja com os amigos, ele chegou em casa molhado da garoa fina. Sozinho, ninguém na garupa da moto. Um gato fugiu, rápido, quando ele abriu o portão.
Numa sexta, depois de um cinema com as amigas, ela voltou ouvindo música baixinho no carro. Sozinha, ninguém no banco do carona. O cachorro correu para saudá-la na garagem.
Debaixo do chuveiro, ele pensava que a havia deixado escapar. Escapar como a água que agora corria para o ralo. Delicada, refinada. Uns olhos que faziam a coisa valer a pena. Bela garota, talvez a que ele andava precisando para deixar de vez de viver do passado.
Sentada no sofá, ela lembrava de como ele, desde a última vez, sumira. Sumira feito a fumaça do chá que ela agora assoprava. Bem-humorado, bom caráter. Uma voz que a fazia sentir-se mais leve. Bom rapaz, quem sabe o que ela estava esperando para viver o futuro.
Pensando consigo, ele sabia que tinha mexido com ela. Certa vez concluíra –embora não fosse dizer isso jamais– que ele deveria ser diferente dos outros com quem ela havia convivido até então. Notara como ela parecia mais à vontade e deixava-se afundar lentamente nas cadeiras quando estava ao lado dele e como –coisa tão sutil nela– tocava-lhe as mãos, às vezes, enquanto conversavam.
No fundo, ela sabia que havia, sim, despertado o interesse dele. Um dia tivera a impressão –que jamais dividiria com ninguém, para não soar pretensiosa– de que ela trouxera frescor ao mundo tão rígido dele. Notara como ele se empertigava todo ao entrar em algum lugar ao lado dela e achara bonitinho o gesto –parecia tão natural nele– de empurrar as portas e deixá-la entrar antes.
Para ele, não havia mais volta. Hesitante, deixara o tempo passar, deixara as coisas chegarem a um ponto onde não havia mais conserto. Na verdade, para ele, tudo havia começado errado.
Para ela, tudo estava perdido. As coisas tinham esfriado, culpava-se por talvez ter sido muito precipitada, talvez tê-lo assustado de alguma forma. Para ela, terminaram tudo errado.
Mas, no fundo, pensava que cederia caso ela voltasse. Censurava-se por ter pensado demais.
Porém, tinha uma esperança de que ele aparecesse. Consolava-se por ter sentido demais.
No quarto, antes de dormir, ela ouvia Chet Baker. Lembrava de terem comentado uma vez e sorrido ao descobrir esse gosto em comum.
E no quarto, antes de dormir, ele amaldiçoava Chet Baker porque cantava, com sua voz mansa, no ouvido dela, tudo o que ele fora covarde demais para dizer.
13.12.09
A casinha branca
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 1.3.2007)
O sol, que acabara de se levantar, iluminava a casinha de madeira. Paredes, portas, janelas, grades, tudo branco. O nascer do sol dava à casa um brilho delicado, ao contrário dos prédios de concreto e vidro que a ladeavam. Uma casinha frágil no meio dos prédios brutos.
E, enquanto a cidade acordava, a velhinha regava seu jardim, com a serenidade que os anos lhe deram. Embora os prédios não lhes concedessem mais que algumas poucas horas de sol, as margaridas do jardim continuavam floridas como há quase cinqüenta anos. Ainda não era época de rosas.
Como fazia há cinqüenta anos, ela sorriu quando o velhinho empurrou o portão e entrou com o pacote de pão debaixo do braço. Deixou o regador no canteiro e os dois entraram, ela primeiro, ele depois.
A mesa estava posta como sempre desde que ficaram sozinhos: duas colherinhas e uma faca; duas xícaras e um açucareiro de porcelana branca; manteiga e um bolo coberto por um pano de prato bordado. Dedicada, ela serviu o café, colocou o bule de volta no fogão e sentou-se para comer o pedaço de pão que ele já lhe havia cortado.
Os dois conversaram sobre os filhos que não apareciam há algum tempo e os netos de quem tinham poucas notícias. Falaram sobre o passado, mas não sabiam do futuro. Comeram o bolo de laranja em silêncio. Terminaram o café e ela tirou a mesa enquanto ele fechava as janelas brancas. Tinham de sair.
O velhinho abriu a porta para que a velhinha saísse e deu-lhe a mão para que descesse os três degraus da varanda. Embora o pulso não tivesse mais a antiga força, a gentileza era a mesma de cinqüenta anos atrás. Fechou o portão e os dois saíram na direção de todos os dias. Mas hoje não iriam passear.
Moravam ali desde que se casaram, quando ele anunciou que havia comprado um lote num setor novo da cidade. Não havia ainda todas aquelas casas, muito menos as lojas e os prédios. Construíram juntos a casa, que sempre foi branca, e plantaram juntos o jardim, que sempre foi florido. Os filhos cresceram e hoje moram em prédios cinzentos sem flores e sem varandas. E aos netos nunca interessou brincar no balanço ou procurar ninhos nas pitangueiras.
Andando de mãos dadas, reconheceram no caminho os locais onde um dia ficavam a sapataria, a mercearia, a quitanda e a farmácia. Lembraram da casa da árvore aonde iam, às vezes procurar as crianças, que sumiam o dia inteiro. Hoje tudo lojas, prédios e escritórios. Da rua tranqüila também nada sobrava, exceto por uns pedaços do calçamento e alguns ipês um tanto descuidados. Nada também dos velhos vizinhos, renderam-se todos. Os dois atravessaram a avenida o mais rápido que puderam, mas o sinal ficou verde antes que chegassem ao outro lado. O tempo já não era suficiente. Os motoristas buzinaram.
Entraram num escritório. Um homem gordo, apressado, estendeu-lhes duas cadeiras, mas foi o velhinho quem ajudou a esposa a se sentar. Quase não conversaram: já há alguns meses a proposta fora feita e o homem sabia que, hora ou outra, eles viriam. Todos um dia vêm. Disse algumas palavras e tirou uns papéis de uma pasta, uma pasta entre tantas. Uma casinha entre tantas. O velhinho tomou a caneta e, mãos trêmulas um tanto pela idade, um tanto pela emoção, olhou para sua velhinha por uns instantes. Encontrou ali, no silêncio do mesmo olhar doce de cinqüenta anos atrás, a força de que precisava. Sentiu os olhos embaçarem, suspirou e assinou o papel. Todas as vias.
E os dois saíram de mãos dadas, no ritmo que as pernas permitiam e que a tristeza impunha, em direção à casinha toda branca onde moraram durante toda uma vida. Mas logo não morariam mais, e amanhã o velhinho sairá pela última vez para buscar pão enquanto a velhinha rega pela última vez seu jardim de margaridas floridas. E as rosas não chegarão a florescer.
(publicado originalmente em 1.3.2007)
O sol, que acabara de se levantar, iluminava a casinha de madeira. Paredes, portas, janelas, grades, tudo branco. O nascer do sol dava à casa um brilho delicado, ao contrário dos prédios de concreto e vidro que a ladeavam. Uma casinha frágil no meio dos prédios brutos.
E, enquanto a cidade acordava, a velhinha regava seu jardim, com a serenidade que os anos lhe deram. Embora os prédios não lhes concedessem mais que algumas poucas horas de sol, as margaridas do jardim continuavam floridas como há quase cinqüenta anos. Ainda não era época de rosas.
Como fazia há cinqüenta anos, ela sorriu quando o velhinho empurrou o portão e entrou com o pacote de pão debaixo do braço. Deixou o regador no canteiro e os dois entraram, ela primeiro, ele depois.
A mesa estava posta como sempre desde que ficaram sozinhos: duas colherinhas e uma faca; duas xícaras e um açucareiro de porcelana branca; manteiga e um bolo coberto por um pano de prato bordado. Dedicada, ela serviu o café, colocou o bule de volta no fogão e sentou-se para comer o pedaço de pão que ele já lhe havia cortado.
Os dois conversaram sobre os filhos que não apareciam há algum tempo e os netos de quem tinham poucas notícias. Falaram sobre o passado, mas não sabiam do futuro. Comeram o bolo de laranja em silêncio. Terminaram o café e ela tirou a mesa enquanto ele fechava as janelas brancas. Tinham de sair.
O velhinho abriu a porta para que a velhinha saísse e deu-lhe a mão para que descesse os três degraus da varanda. Embora o pulso não tivesse mais a antiga força, a gentileza era a mesma de cinqüenta anos atrás. Fechou o portão e os dois saíram na direção de todos os dias. Mas hoje não iriam passear.
Moravam ali desde que se casaram, quando ele anunciou que havia comprado um lote num setor novo da cidade. Não havia ainda todas aquelas casas, muito menos as lojas e os prédios. Construíram juntos a casa, que sempre foi branca, e plantaram juntos o jardim, que sempre foi florido. Os filhos cresceram e hoje moram em prédios cinzentos sem flores e sem varandas. E aos netos nunca interessou brincar no balanço ou procurar ninhos nas pitangueiras.
Andando de mãos dadas, reconheceram no caminho os locais onde um dia ficavam a sapataria, a mercearia, a quitanda e a farmácia. Lembraram da casa da árvore aonde iam, às vezes procurar as crianças, que sumiam o dia inteiro. Hoje tudo lojas, prédios e escritórios. Da rua tranqüila também nada sobrava, exceto por uns pedaços do calçamento e alguns ipês um tanto descuidados. Nada também dos velhos vizinhos, renderam-se todos. Os dois atravessaram a avenida o mais rápido que puderam, mas o sinal ficou verde antes que chegassem ao outro lado. O tempo já não era suficiente. Os motoristas buzinaram.
Entraram num escritório. Um homem gordo, apressado, estendeu-lhes duas cadeiras, mas foi o velhinho quem ajudou a esposa a se sentar. Quase não conversaram: já há alguns meses a proposta fora feita e o homem sabia que, hora ou outra, eles viriam. Todos um dia vêm. Disse algumas palavras e tirou uns papéis de uma pasta, uma pasta entre tantas. Uma casinha entre tantas. O velhinho tomou a caneta e, mãos trêmulas um tanto pela idade, um tanto pela emoção, olhou para sua velhinha por uns instantes. Encontrou ali, no silêncio do mesmo olhar doce de cinqüenta anos atrás, a força de que precisava. Sentiu os olhos embaçarem, suspirou e assinou o papel. Todas as vias.
E os dois saíram de mãos dadas, no ritmo que as pernas permitiam e que a tristeza impunha, em direção à casinha toda branca onde moraram durante toda uma vida. Mas logo não morariam mais, e amanhã o velhinho sairá pela última vez para buscar pão enquanto a velhinha rega pela última vez seu jardim de margaridas floridas. E as rosas não chegarão a florescer.
12.12.09
Quinze anos
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 11.4.2007)
Puxava uma carroça cheia de papelão, mas, no mais, era uma menina como qualquer outra. Talvez pensassem que por ser pobre ela poderia ser diferente, mas não era nem um pouco: ela queria as mesmas coisas que todas as outras meninas queriam.
Tinha vontade de ser estrela de televisão, modelo, bailarina ou professora. Vontade de alisar o cabelo e comprar uma roupa daquelas de vitrine de loja. Queria acabar o segundo grau e ganhar um anel de presente de formatura. Poderia nem ser de ouro, mas tinha de ser dourado.
Também, como qualquer menina, tinha vergonha dos meninos. Tinha um lá no bairro que sempre a olhava de longe. Num domingo ela o viu jogando bola com os outros garotos e achou que ele era o melhor jogador do mundo. Ficou ali, quietinha, torcendo para ele fazer um gol, um gol só para ela.
E hoje, bem hoje, a menina fazia quinze anos. Desde o ano passado sonhava com uma festa: via-se dançando com um príncipe, imaginava as amigas segurando arranjos de flores e uma mesa cheia de bolo e refrigerante. Sorria toda vez que imaginava o pai de terno e sapato, achava a idéia engraçada.
Já de noite, a cidade —e as latas de lixo— começou a ficar vazia: hora de voltar para casa. Ela sabia que as bancas estariam fechadas, mas passou em frente ao mercado de flores, só porque era bonito. E de longe viu alguma coisa numa lata de lixo, uma coisa branca. Surpresa!, era um buquê de margaridas. Um pouco murchas, mas, mesmo assim, eram as mais lindas flores que ela jamais ganhara. Aliás, as únicas flores que ela jamais ganhara.
Passou pela praça e viu que a catedral já estava enfeitada para o Natal. Ficava tão linda, tão brilhante com aquelas luzes todas. Um pipoqueiro ouvia música no radinho de pilha. Era uma música bonita, como as que o avô dela ouvia quando vivo. A menina ficou ali, escutando, e, já que ia sobrar mesmo, ganhou do pipoqueiro um pacotinho: pipoca doce, com coco.
Foi quando chegou na praça o menino do futebol, aquele que ficava olhando de longe. Ele baixou os olhos, tímido, sorriu e disse um “oi” envergonhado. Comentou do tanto de papel que tinha conseguido no mês e disse que, olha só, ele ficou sabendo que hoje era aniversário, juntou um dinheirinho e comprou um presente. Tirou do bolso um pacotinho de papel vermelho e entregou à menina. Teve a impressão de que as mãos dela tremiam.
A menina sorriu ao ver, dentro do pacotinho, um anel dourado. Agradeceu um tanto envergonhada e já logo o colocou no dedo. Deu certinho. O anel não caberia em outra mão que não a dela. Ela sorriu e mais balbuciou que falou um “obrigada”. O menino chutou umas pedrinhas do chão e comentou algo sobre a música, que ele achara tão bonita.
E, enquanto os sinos da catedral soavam as horas, os dois dançaram ao som do radinho sob as luzes brilhantes. Margaridas, pipoca doce, música, sinos, um anel e um príncipe, o melhor jogador de futebol do mundo. E a menina soube, lá no fundo, que Deus existia e que Ele havia lhe dado uma festa de quinze anos.
(publicado originalmente em 11.4.2007)
Puxava uma carroça cheia de papelão, mas, no mais, era uma menina como qualquer outra. Talvez pensassem que por ser pobre ela poderia ser diferente, mas não era nem um pouco: ela queria as mesmas coisas que todas as outras meninas queriam.
Tinha vontade de ser estrela de televisão, modelo, bailarina ou professora. Vontade de alisar o cabelo e comprar uma roupa daquelas de vitrine de loja. Queria acabar o segundo grau e ganhar um anel de presente de formatura. Poderia nem ser de ouro, mas tinha de ser dourado.
Também, como qualquer menina, tinha vergonha dos meninos. Tinha um lá no bairro que sempre a olhava de longe. Num domingo ela o viu jogando bola com os outros garotos e achou que ele era o melhor jogador do mundo. Ficou ali, quietinha, torcendo para ele fazer um gol, um gol só para ela.
E hoje, bem hoje, a menina fazia quinze anos. Desde o ano passado sonhava com uma festa: via-se dançando com um príncipe, imaginava as amigas segurando arranjos de flores e uma mesa cheia de bolo e refrigerante. Sorria toda vez que imaginava o pai de terno e sapato, achava a idéia engraçada.
Já de noite, a cidade —e as latas de lixo— começou a ficar vazia: hora de voltar para casa. Ela sabia que as bancas estariam fechadas, mas passou em frente ao mercado de flores, só porque era bonito. E de longe viu alguma coisa numa lata de lixo, uma coisa branca. Surpresa!, era um buquê de margaridas. Um pouco murchas, mas, mesmo assim, eram as mais lindas flores que ela jamais ganhara. Aliás, as únicas flores que ela jamais ganhara.
Passou pela praça e viu que a catedral já estava enfeitada para o Natal. Ficava tão linda, tão brilhante com aquelas luzes todas. Um pipoqueiro ouvia música no radinho de pilha. Era uma música bonita, como as que o avô dela ouvia quando vivo. A menina ficou ali, escutando, e, já que ia sobrar mesmo, ganhou do pipoqueiro um pacotinho: pipoca doce, com coco.
Foi quando chegou na praça o menino do futebol, aquele que ficava olhando de longe. Ele baixou os olhos, tímido, sorriu e disse um “oi” envergonhado. Comentou do tanto de papel que tinha conseguido no mês e disse que, olha só, ele ficou sabendo que hoje era aniversário, juntou um dinheirinho e comprou um presente. Tirou do bolso um pacotinho de papel vermelho e entregou à menina. Teve a impressão de que as mãos dela tremiam.
A menina sorriu ao ver, dentro do pacotinho, um anel dourado. Agradeceu um tanto envergonhada e já logo o colocou no dedo. Deu certinho. O anel não caberia em outra mão que não a dela. Ela sorriu e mais balbuciou que falou um “obrigada”. O menino chutou umas pedrinhas do chão e comentou algo sobre a música, que ele achara tão bonita.
E, enquanto os sinos da catedral soavam as horas, os dois dançaram ao som do radinho sob as luzes brilhantes. Margaridas, pipoca doce, música, sinos, um anel e um príncipe, o melhor jogador de futebol do mundo. E a menina soube, lá no fundo, que Deus existia e que Ele havia lhe dado uma festa de quinze anos.
11.12.09
Talvez
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 30.7.2008)
Era uma vez um fazendeiro. Um fazendeiro que, como todos os fazendeiros de história de "era uma vez", não era assim lá um latifundiário. Tinha sua terrinha, vivia do seu trabalhinho honesto —pessoal de história de "era uma vez" é sempre honesto—, ensinava suas coisinhas para os filhos.
Pois bem, um dia, como sempre acontece nas histórias de "era uma vez", o destino quis que sucedesse uma reviravolta na vida do nosso bom amigo: sumiu-lhe o cavalo. O cavalo que puxava arado, carroça e a fazenda inteira nas costas.
Os vizinhos, loucos por uma desgraça como todo bom brasileiro, correram para prestar solidariedade. Ajudar que é bom, ninguém ajudou, mas ficaram ali, com aquelas lamentações de sempre:
— Rapaz, que uma vez um primo meu perdeu oitenta e sete cabeças de gado lá pras bandas de Lavras.
— E que a gente trabalha a vida inteira para conseguir juntar umas coisinhas e aí me vem um filho da...
— Ó céus, que falta de sorte!
As outras são só gracinhas, essa última lamentação é a que interessa na nossa história de "era uma vez". Foi para ela que bom fazendeiro respondeu:
— Talvez.
No dia seguinte, o cavalo, que de burro não tinha nada, deu as caras de novo. E trouxe junto um pessoal que conheceu na sua aventura: três outros cavalos selvagens, coisa mais linda —está certo que não devem mais existir cavalos selvagens nem nas planícies da Mongólia, mas história de "era uma vez" sempre ignora uma ou outra lógica. Os vizinhos correram, dessa vez para fazer festa.
— Olha que no fim das contas tudo termina bem quando acaba bem, compadre.
— Mas dá até pra levar pra feira, esses três!
— Masbá, que beleza de bagual! Que buena sorte, tchê!
(Esse último era gaúcho.) Nosso fazendeiro largou, com a calma de sempre, a resposta de sempre:
— Talvez.
No dia seguinte, o filho do fazendeiro resolveu dar umas bandas num dos novos cavalões. Aparecer na cidade, impressionar umas meninas, essas coisas. Deu que o cavalo, que nunca tinha usado arreio estribo sela barrigueira nem nada desse tipo, refugou empinou relinchou. Tanto fez que derrubou e estropiou todo o rapaz. A vizinhada correu para urubuzar a nova tragédia.
— Ai, que meu neto se acidentou com a moto e tomou quarenta e nove pontos na cabeça.
— E que depender do SUS nesse país...
— Jesusmariajosé, que desgraça!
O fazendeiro, servindo refresco para essa turma toda porque era um bom anfitrião, respondeu:
— Talvez.
No dia seguinte, a Fátima Bernardes apareceu no plantão dizendo que o Bush resolveu invadir o pedaço. O povo entrou em desespero, o exército se mobilizou, juntou as tropas e correu para recrutar soldados. Um sargento passou e foi levando todos os jovens da região para recepcionar os ianques. O filho do fazendeiro, todo escalavrado que estava, não foi convocado.
Os vizinhos:
— E que esse governo só lembra de pobre quando precisa de gente para morrer...
— Rapaz do céu, que hora boa que você foi cair do cavalo.
— Que sorte!
E o fazendeiro:
— Talvez.
E por aí vai, acho que deu para passar o espírito da coisa. E alguém ainda tem dúvida de que assim, tocando a vida na maciota, o fazendeiro viveu feliz para sempre?
(publicado originalmente em 30.7.2008)
Era uma vez um fazendeiro. Um fazendeiro que, como todos os fazendeiros de história de "era uma vez", não era assim lá um latifundiário. Tinha sua terrinha, vivia do seu trabalhinho honesto —pessoal de história de "era uma vez" é sempre honesto—, ensinava suas coisinhas para os filhos.
Pois bem, um dia, como sempre acontece nas histórias de "era uma vez", o destino quis que sucedesse uma reviravolta na vida do nosso bom amigo: sumiu-lhe o cavalo. O cavalo que puxava arado, carroça e a fazenda inteira nas costas.
Os vizinhos, loucos por uma desgraça como todo bom brasileiro, correram para prestar solidariedade. Ajudar que é bom, ninguém ajudou, mas ficaram ali, com aquelas lamentações de sempre:
— Rapaz, que uma vez um primo meu perdeu oitenta e sete cabeças de gado lá pras bandas de Lavras.
— E que a gente trabalha a vida inteira para conseguir juntar umas coisinhas e aí me vem um filho da...
— Ó céus, que falta de sorte!
As outras são só gracinhas, essa última lamentação é a que interessa na nossa história de "era uma vez". Foi para ela que bom fazendeiro respondeu:
— Talvez.
No dia seguinte, o cavalo, que de burro não tinha nada, deu as caras de novo. E trouxe junto um pessoal que conheceu na sua aventura: três outros cavalos selvagens, coisa mais linda —está certo que não devem mais existir cavalos selvagens nem nas planícies da Mongólia, mas história de "era uma vez" sempre ignora uma ou outra lógica. Os vizinhos correram, dessa vez para fazer festa.
— Olha que no fim das contas tudo termina bem quando acaba bem, compadre.
— Mas dá até pra levar pra feira, esses três!
— Masbá, que beleza de bagual! Que buena sorte, tchê!
(Esse último era gaúcho.) Nosso fazendeiro largou, com a calma de sempre, a resposta de sempre:
— Talvez.
No dia seguinte, o filho do fazendeiro resolveu dar umas bandas num dos novos cavalões. Aparecer na cidade, impressionar umas meninas, essas coisas. Deu que o cavalo, que nunca tinha usado arreio estribo sela barrigueira nem nada desse tipo, refugou empinou relinchou. Tanto fez que derrubou e estropiou todo o rapaz. A vizinhada correu para urubuzar a nova tragédia.
— Ai, que meu neto se acidentou com a moto e tomou quarenta e nove pontos na cabeça.
— E que depender do SUS nesse país...
— Jesusmariajosé, que desgraça!
O fazendeiro, servindo refresco para essa turma toda porque era um bom anfitrião, respondeu:
— Talvez.
No dia seguinte, a Fátima Bernardes apareceu no plantão dizendo que o Bush resolveu invadir o pedaço. O povo entrou em desespero, o exército se mobilizou, juntou as tropas e correu para recrutar soldados. Um sargento passou e foi levando todos os jovens da região para recepcionar os ianques. O filho do fazendeiro, todo escalavrado que estava, não foi convocado.
Os vizinhos:
— E que esse governo só lembra de pobre quando precisa de gente para morrer...
— Rapaz do céu, que hora boa que você foi cair do cavalo.
— Que sorte!
E o fazendeiro:
— Talvez.
E por aí vai, acho que deu para passar o espírito da coisa. E alguém ainda tem dúvida de que assim, tocando a vida na maciota, o fazendeiro viveu feliz para sempre?
10.12.09
Prima Doroti
Série especial de aniversário
(originalmente publicado em 26.6.2007)
Contrariado, seu Glicério, bermuda e chinelo, empurrava o carrinho pelos corredores do supermercado, arrastando os pés. Dona Eulália corria de uma prateleira a outra.
— Será que ela prefere molho ao sugo ou bolonhesa?
— Qualquer um. Quem vê pensa que ela faz cerimônia para comer.
"Ela" era a prima Doroti, que vinha do interior para fazer uns exames do coração e aproveitaria para almoçar e passar a tarde com dona Eulália. Mexericando e beliscando, como diz nosso amigo. E ele que pensou que os problemas com família haviam terminado quando enterrou a sogra. Que nada.
— E vamos levar uns sequilhos, para a gente conversar de tarde.
Exatamente: mexericando e beliscando, pensou nosso amigo. Doroti era prima de primeiro grau de dona Eulália. Herdara em tudo os hábitos da geração anterior das matriarcas da família. O mesmo jeito de falar com o dedinho levantado na asa da xícara, o mesmo jeito de andar, lidando com todo aquele tamanho; o mesmo jeito de apertar as bochechas das crianças, que do mesmo jeito fugiam dela. Usava, por baixo das saias, as mesmas anáguas também.
— Não me deixa esquecer o chuchu para o suflê.
Ia ser aquela de sempre. Prima Doroti chegaria, ofegante, e jogando todo aquele peso no sofá. Abanando-se com o mesmo lenço listrado com que enxugava a testa lustrosa e queixando-se que a vida não anda fácil, menina. De lá só se levantaria para sentar-se à mesa, não antes de fazer alguma cerimônia, que ela está de dieta, mas vai aceitar só porque o suflê está lindo.
Durante o almoço, prima Doroti contaria a mesma história da vizinha que fugiu com o padeiro e largou as três crianças, vê se pode? Talvez falasse também daquela do conserto da geladeira. E a dona Eulália ali, mão no rosto, escandalizada.
Ainda sem se levantar depois do almoço —e deixa que o Glicério lava a louça, que ele adora ajudar em casa—, iriam tomar chá com bolachas —muitas bolachas, que, ai, estes sequilhos estão maravilhosos. E as risadas? Seu Glicério tentava nem pensar nas risadas. Na saída, a prima ainda levaria uma travessinha de bolo de laranja com coberta por um pano de prato bordado. Mas só para não fazer desfeita, menina.
Tudo isso ainda não havia acontecido. Mas nosso herói já sofria por antecipação.
— Você está vermelho, Glicério. Vou aproveitar a prima para medir sua pressão. Ela fez enfermagem no curso técnico quando era mocinha.
O bom era que o mercado estava cheio de moças sorridentes com amostras grátis. Assim ele se distraía um pouco.
* * *
Claro que não podia faltar uma do seu Glicério na seleção.
(originalmente publicado em 26.6.2007)
Contrariado, seu Glicério, bermuda e chinelo, empurrava o carrinho pelos corredores do supermercado, arrastando os pés. Dona Eulália corria de uma prateleira a outra.
— Será que ela prefere molho ao sugo ou bolonhesa?
— Qualquer um. Quem vê pensa que ela faz cerimônia para comer.
"Ela" era a prima Doroti, que vinha do interior para fazer uns exames do coração e aproveitaria para almoçar e passar a tarde com dona Eulália. Mexericando e beliscando, como diz nosso amigo. E ele que pensou que os problemas com família haviam terminado quando enterrou a sogra. Que nada.
— E vamos levar uns sequilhos, para a gente conversar de tarde.
Exatamente: mexericando e beliscando, pensou nosso amigo. Doroti era prima de primeiro grau de dona Eulália. Herdara em tudo os hábitos da geração anterior das matriarcas da família. O mesmo jeito de falar com o dedinho levantado na asa da xícara, o mesmo jeito de andar, lidando com todo aquele tamanho; o mesmo jeito de apertar as bochechas das crianças, que do mesmo jeito fugiam dela. Usava, por baixo das saias, as mesmas anáguas também.
— Não me deixa esquecer o chuchu para o suflê.
Ia ser aquela de sempre. Prima Doroti chegaria, ofegante, e jogando todo aquele peso no sofá. Abanando-se com o mesmo lenço listrado com que enxugava a testa lustrosa e queixando-se que a vida não anda fácil, menina. De lá só se levantaria para sentar-se à mesa, não antes de fazer alguma cerimônia, que ela está de dieta, mas vai aceitar só porque o suflê está lindo.
Durante o almoço, prima Doroti contaria a mesma história da vizinha que fugiu com o padeiro e largou as três crianças, vê se pode? Talvez falasse também daquela do conserto da geladeira. E a dona Eulália ali, mão no rosto, escandalizada.
Ainda sem se levantar depois do almoço —e deixa que o Glicério lava a louça, que ele adora ajudar em casa—, iriam tomar chá com bolachas —muitas bolachas, que, ai, estes sequilhos estão maravilhosos. E as risadas? Seu Glicério tentava nem pensar nas risadas. Na saída, a prima ainda levaria uma travessinha de bolo de laranja com coberta por um pano de prato bordado. Mas só para não fazer desfeita, menina.
Tudo isso ainda não havia acontecido. Mas nosso herói já sofria por antecipação.
— Você está vermelho, Glicério. Vou aproveitar a prima para medir sua pressão. Ela fez enfermagem no curso técnico quando era mocinha.
O bom era que o mercado estava cheio de moças sorridentes com amostras grátis. Assim ele se distraía um pouco.
* * *
Claro que não podia faltar uma do seu Glicério na seleção.
9.12.09
Na livraria
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 10.1.2008)
Quando a vi, ela estava na seção dos nacionais. Tinha acabado de passar pela poesia e começava agora a olhar os títulos de prosa. Foi o incentivo que eu precisava para deixar de lado as gôndolas centrais, das sugestões da loja —que eu nunca aceito—, e também me aventurar entre as prateleiras.
Demorei um pouco num livro do Drummond para dar a ela alguma dianteira. Mesmo de rabo de olho foi possível ver que era bonita. Os sapatos e a bolsinha colorida denunciavam um par de olhos de menina por trás dos óculos. Ela avançou até Clarice Lispector: bom sinal, leitura de mulher forte, independente. Avancei, enfim, para a mesma prateleira e fingi interesse num Jorge Amado.
Passando os dedos finos, mãos delicadas, pelas lombadas, ela analisou com cuidado o Q e o R. Rachel de Queiroz, Mario Quintana, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa. Talvez procurasse algo, mas, pelo visto, não encontrou.
Então, de um salto, ela pulou para o final dos brasileiros. Pegou um do Verissimo pai, Erico, e olhando alguns Cony, eu senti um rastro suave de perfume. Decidi chegar mais perto. Machado de Assis, o bom e velho, me ofereceu uma posição estratégica, logo ao lado dela. Senti melhor o cheiro, doce na medida certa.
Ela devolveu o livro e passou os olhos pelos do Luis Fernando, Verissimo também. Não se interessou por nenhum. Será que, como eu, ela já tem todos e está esperando o próximo lançamento? Não pode ser só coincidência. Um sorriso que quase quer aparecer no cantinho dos lábios mostrou que, sim, é uma garota bem-humorada.
Num movimento gracioso, ela virou para a prateleira de trás e entrou no domínio dos estrangeiros. Eu me demorei ainda um pouco nos nacionais e, de costas para ela, pude ver melhor seus cabelos. Pretos, macios. Nem alta nem baixa: sob medida.
Li a surpresa nos olhos dela quando viu os Borges e pensei, triunfante: "tolinha, ainda não sabia que estão relançando as obras completas dele". Eu pensava que teríamos muito o que conversar e então ela se abaixou, para ver melhor o Calvino. Será que ganharia algum ponto se contasse a ela que tenho quase todos?
Decidi tomar a dianteira e fui até o Dostoievski, no fim da estante. Quando passei por ela senti novamente o perfume e imaginei o calor do seu corpo. Não demorou muito até que ela, ignorando o García Marquez, passasse por mim e fosse para o outro lado da estante. "Instigante", esta era a palavra.
A estante baixa e a posição estratégica do Umberto Eco permitiram que eu ficasse frente a frente com ela. Tinha os olhos baixos, provavelmente na letra J, quem sabe James Joyce. Dei a volta também. Um Hemingway amigo ofereceu-me refúgio, rápido. Estiquei os olhos e vi que errei: não era Joyce, era Kafka que ela olhava. Ela umedeceu os lábios com a língua e eu, num gesto atrevido, atravessei o braço diante dela, os corpos quase se tocando, para alcançar um Llosa.
Talvez por imaginar que eu tivesse algum problema —sem notar, eu lia a capa de ponta-cabeça—, ela fugiu para longe, pediu socorro ao Pamuk. Decidi impor o ritmo da coisa. Fui ganhando terreno e empurrei-a para o Proust. Calor no fundo da livraria, ela levantou os cabelos num coque improvisado —ai, meu Deus!—, mostrando a pele branquinha do pescoço.
Demoramos bastante no Saramago, o velho Zé ajudou a acalmar os ânimos. Não tentei dessa vez nada mais ousado. A certo ponto, ela fez um "hum" de interesse —o que para mim foi o suficiente para adivinhar que tinha boa voz— e, em seguida, deu um passo para o Tolstói.
Virginia Woolf. Estavam acabando os livros. Decidi pedi-la em casamento, assim de uma vez: "oi, quer casar comigo?". Juntaríamos nossas bibliotecas e viveríamos felizes para sempre!
Mas então ela deu uma guinada brusca e voltou para as gôndolas centrais, as horrendas gôndolas centrais, dos best-sellers. Pegou o último do Paulo Coelho e foi para o caixa. Fiquei ali, meio sem reação e, pela vitrine, eu a vi indo embora. Não corri atrás.
Posso ter perdido a mulher da minha vida, mas Paulo Coelho não entra lá em casa.
(publicado originalmente em 10.1.2008)
Quando a vi, ela estava na seção dos nacionais. Tinha acabado de passar pela poesia e começava agora a olhar os títulos de prosa. Foi o incentivo que eu precisava para deixar de lado as gôndolas centrais, das sugestões da loja —que eu nunca aceito—, e também me aventurar entre as prateleiras.
Demorei um pouco num livro do Drummond para dar a ela alguma dianteira. Mesmo de rabo de olho foi possível ver que era bonita. Os sapatos e a bolsinha colorida denunciavam um par de olhos de menina por trás dos óculos. Ela avançou até Clarice Lispector: bom sinal, leitura de mulher forte, independente. Avancei, enfim, para a mesma prateleira e fingi interesse num Jorge Amado.
Passando os dedos finos, mãos delicadas, pelas lombadas, ela analisou com cuidado o Q e o R. Rachel de Queiroz, Mario Quintana, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa. Talvez procurasse algo, mas, pelo visto, não encontrou.
Então, de um salto, ela pulou para o final dos brasileiros. Pegou um do Verissimo pai, Erico, e olhando alguns Cony, eu senti um rastro suave de perfume. Decidi chegar mais perto. Machado de Assis, o bom e velho, me ofereceu uma posição estratégica, logo ao lado dela. Senti melhor o cheiro, doce na medida certa.
Ela devolveu o livro e passou os olhos pelos do Luis Fernando, Verissimo também. Não se interessou por nenhum. Será que, como eu, ela já tem todos e está esperando o próximo lançamento? Não pode ser só coincidência. Um sorriso que quase quer aparecer no cantinho dos lábios mostrou que, sim, é uma garota bem-humorada.
Num movimento gracioso, ela virou para a prateleira de trás e entrou no domínio dos estrangeiros. Eu me demorei ainda um pouco nos nacionais e, de costas para ela, pude ver melhor seus cabelos. Pretos, macios. Nem alta nem baixa: sob medida.
Li a surpresa nos olhos dela quando viu os Borges e pensei, triunfante: "tolinha, ainda não sabia que estão relançando as obras completas dele". Eu pensava que teríamos muito o que conversar e então ela se abaixou, para ver melhor o Calvino. Será que ganharia algum ponto se contasse a ela que tenho quase todos?
Decidi tomar a dianteira e fui até o Dostoievski, no fim da estante. Quando passei por ela senti novamente o perfume e imaginei o calor do seu corpo. Não demorou muito até que ela, ignorando o García Marquez, passasse por mim e fosse para o outro lado da estante. "Instigante", esta era a palavra.
A estante baixa e a posição estratégica do Umberto Eco permitiram que eu ficasse frente a frente com ela. Tinha os olhos baixos, provavelmente na letra J, quem sabe James Joyce. Dei a volta também. Um Hemingway amigo ofereceu-me refúgio, rápido. Estiquei os olhos e vi que errei: não era Joyce, era Kafka que ela olhava. Ela umedeceu os lábios com a língua e eu, num gesto atrevido, atravessei o braço diante dela, os corpos quase se tocando, para alcançar um Llosa.
Talvez por imaginar que eu tivesse algum problema —sem notar, eu lia a capa de ponta-cabeça—, ela fugiu para longe, pediu socorro ao Pamuk. Decidi impor o ritmo da coisa. Fui ganhando terreno e empurrei-a para o Proust. Calor no fundo da livraria, ela levantou os cabelos num coque improvisado —ai, meu Deus!—, mostrando a pele branquinha do pescoço.
Demoramos bastante no Saramago, o velho Zé ajudou a acalmar os ânimos. Não tentei dessa vez nada mais ousado. A certo ponto, ela fez um "hum" de interesse —o que para mim foi o suficiente para adivinhar que tinha boa voz— e, em seguida, deu um passo para o Tolstói.
Virginia Woolf. Estavam acabando os livros. Decidi pedi-la em casamento, assim de uma vez: "oi, quer casar comigo?". Juntaríamos nossas bibliotecas e viveríamos felizes para sempre!
Mas então ela deu uma guinada brusca e voltou para as gôndolas centrais, as horrendas gôndolas centrais, dos best-sellers. Pegou o último do Paulo Coelho e foi para o caixa. Fiquei ali, meio sem reação e, pela vitrine, eu a vi indo embora. Não corri atrás.
Posso ter perdido a mulher da minha vida, mas Paulo Coelho não entra lá em casa.
8.12.09
Tarot
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 8.5.2008)
Há meses eu tento escrever uma história de suspense com cartas de tarot. O Calvino escreveu um livro só com isso e ficou genial; eu nem tenho tanta pretensão, só queria uma história curtinha mesmo. Mas deparo-me sempre com dois problemas: nem eu acredito muito e nem eu entendo nada de tarot. Nadinha. O negócio é que acho as cartas muito charmosas, vejo nelas uma possibilidade literária muito grande. Sem contar que aumentaria minha popularidade escrever sobre coisas assim esotéricas —vejam só o Paulo Coelho.
Pensei talvez numa coisa assim: uma mulher de roupão de seda cai do décimo terceiro andar de um hotel no centro da cidade. Aquela comoção, os populares fazem roda para olhar, os bombeiros e o socorro chegam tarde demais, o IML é chamado. Então um rapaz repara que ela segura uma carta na mão esquerda. Num gesto meio impensado, ele pega a carta e esconde debaixo das blusas. Não sabe por quê fez isso, mas sentiu que devia, as teias invisíveis do destino o moveram. Sai andando apressado, as mãos suando de nervosismo. Dobra a primeira esquina, entra, ofegante, numa cabine telefônica e olha para a carta que tem escondida sob a jaqueta: é a rainha de copas.
Ou assim: um sujeito entra num pub. O lugar é meio escuro, quase vazio, o neon atrás do balcão pisca de tempos em tempos, no fundo toca um blues. Num dos cantos, um cara meio estranho, encapuzado, dispõe um baralho na mesa. Nosso sujeito senta no balcão e pede um uísque duplo, cowboy. Passou por um dia muito difícil, precisa de um bom trago para pensar na vida, nas teias invisíveis do destino. O barman erra no pedido e serve rum com duas pedras de gelo. Porém, quando nosso amigo levanta os olhos para reclamar, vê que o barman sumiu. Então o homem do capuz vem na sua direção e lhe entrega uma carta: é o enforcado.
Ou então: um contador solteirão resolve comemorar a aposentadoria com uma viagem no Expresso do Oriente. Numa noite, enquanto toma uma sopa no vagão restaurante, ele é abordado por um sujeito visivelmente transtornado que fala algo sobre as teias invisíveis do destino, entrega-lhe um envelope e sai, apressado. Em seguida, passa por ali um russo albino enorme, mais parece um urso polar, com uma cicatriz que vai de fora a fora no rosto, e toma o mesmo rumo. Ouve-se um estampido lá fora. Nenhum dos dois aparece de volta. Mais tarde, na sua cabine, o contador abre o envelope: dentro há uma carta de tarot, o arcano do usurpador.
E aí é que entram mais problemas: não sei como terminar nenhuma das possibilidades, suspeito que minha interpretação das cartas esteja errada e acho que nem deve existir um arcano —se é que é mesmo essa a palavra, "arcano"— do usurpador.
Melhor deixar para lá, viu?
* * *
Esse post ganhou uma releitura –muito melhor que meu texto original– que foi publicada pela Stephanie no blog dela.
(publicado originalmente em 8.5.2008)
Há meses eu tento escrever uma história de suspense com cartas de tarot. O Calvino escreveu um livro só com isso e ficou genial; eu nem tenho tanta pretensão, só queria uma história curtinha mesmo. Mas deparo-me sempre com dois problemas: nem eu acredito muito e nem eu entendo nada de tarot. Nadinha. O negócio é que acho as cartas muito charmosas, vejo nelas uma possibilidade literária muito grande. Sem contar que aumentaria minha popularidade escrever sobre coisas assim esotéricas —vejam só o Paulo Coelho.
Pensei talvez numa coisa assim: uma mulher de roupão de seda cai do décimo terceiro andar de um hotel no centro da cidade. Aquela comoção, os populares fazem roda para olhar, os bombeiros e o socorro chegam tarde demais, o IML é chamado. Então um rapaz repara que ela segura uma carta na mão esquerda. Num gesto meio impensado, ele pega a carta e esconde debaixo das blusas. Não sabe por quê fez isso, mas sentiu que devia, as teias invisíveis do destino o moveram. Sai andando apressado, as mãos suando de nervosismo. Dobra a primeira esquina, entra, ofegante, numa cabine telefônica e olha para a carta que tem escondida sob a jaqueta: é a rainha de copas.
Ou assim: um sujeito entra num pub. O lugar é meio escuro, quase vazio, o neon atrás do balcão pisca de tempos em tempos, no fundo toca um blues. Num dos cantos, um cara meio estranho, encapuzado, dispõe um baralho na mesa. Nosso sujeito senta no balcão e pede um uísque duplo, cowboy. Passou por um dia muito difícil, precisa de um bom trago para pensar na vida, nas teias invisíveis do destino. O barman erra no pedido e serve rum com duas pedras de gelo. Porém, quando nosso amigo levanta os olhos para reclamar, vê que o barman sumiu. Então o homem do capuz vem na sua direção e lhe entrega uma carta: é o enforcado.
Ou então: um contador solteirão resolve comemorar a aposentadoria com uma viagem no Expresso do Oriente. Numa noite, enquanto toma uma sopa no vagão restaurante, ele é abordado por um sujeito visivelmente transtornado que fala algo sobre as teias invisíveis do destino, entrega-lhe um envelope e sai, apressado. Em seguida, passa por ali um russo albino enorme, mais parece um urso polar, com uma cicatriz que vai de fora a fora no rosto, e toma o mesmo rumo. Ouve-se um estampido lá fora. Nenhum dos dois aparece de volta. Mais tarde, na sua cabine, o contador abre o envelope: dentro há uma carta de tarot, o arcano do usurpador.
E aí é que entram mais problemas: não sei como terminar nenhuma das possibilidades, suspeito que minha interpretação das cartas esteja errada e acho que nem deve existir um arcano —se é que é mesmo essa a palavra, "arcano"— do usurpador.
Melhor deixar para lá, viu?
* * *
Esse post ganhou uma releitura –muito melhor que meu texto original– que foi publicada pela Stephanie no blog dela.
7.12.09
Desencontros
Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 29.3.2007)
Ela vinha descendo a rua. Avoada, pensava na vida, cabeça de mulher. Bonita, feminina, atraente, essas coisas. Inteligente, adorava arte e sabia tudo sobre café. Ia a confeitarias e reproduzia as receitas em casa no fim de semana. Gostava da cumplicidade, da troca de olhares, dos segredinhos em comum, de dançar coladinho. Fazia yoga e viajava quando podia.
Ele vinha subindo a rua. Olhava, mas não via nada, cabeça de homem. Boa pinta, bem vestido, perfume, essas coisas. Culto, gostava de literatura e entendia de vinhos. Apreciava boa comida, sabia cozinhar alguma coisa. Gostava da provocação, do flerte, do beijo no cantinho da boca, de oferecer rosas, deixar bilhetinhos. Lutava boxe e acampava quando podia.
Ela chegou na esquina. Perguntava-se onde arranjaria um homem bonito, mas não assim comum. Um cara que se interessasse pela sua vida, que visitasse sua família aos fins de semana sem fazer cara feia. Que a levasse num lugarzinho charmoso e falasse sobre música e poesia, mas também roubasse um beijo, de sopetão. Refinado, sensível, mas masculino como homens devem ser.
Ele chegou na esquina. Queria saber se um dia conseguiria uma mulher bonita, mas inteligente, de personalidade. Uma assim que gostasse das suas coisas, que lhe acompanhasse num passeio no parque com o cachorro. Que lhe provocasse e deixasse as coisas no ar, mas também sorrisse com doçura quando ele a olhasse nos olhos. Firme, decidida, mas feminina como mulheres devem ser.
Ela parou para esperar os carros. Gostava do último namorado, mas acabou desiludida. As amigas ajudaram, chorou até esquecer. Ia sozinha ao cinema e sentia a falta de um ombro onde se acomodar durante o filme. Imaginava quando conheceria o homem que a faria pensar em filhos.
Ele parou para esperar os carros. Era apaixonado pela última namorada, mas ela o acabou deixando. Consolou-se, ocupou-se até esqueceu. Saía com os colegas depois do trabalho e invejava de longe a felicidade dos casais. Pensava se um dia voltaria a fazer planos ao lado de uma mulher.
Os carros pararam e ela atravessou. Olhou, preocupada, para a esquerda, para certificar-se que os carros não avançariam. Não viu o homem atrapalhado que passou ao seu lado.
Os carros pararam e ele atravessou. O celular tocou e ele atrapalhou-se procurando o aparelho no bolso. Não reparou na mulher preocupada que passou bem ao seu lado.
Ela continua duvidando que exista um homem que valha a pena. Ele continua não acreditando em alma gêmea. E vão andando por aí.
(publicado originalmente em 29.3.2007)
Ela vinha descendo a rua. Avoada, pensava na vida, cabeça de mulher. Bonita, feminina, atraente, essas coisas. Inteligente, adorava arte e sabia tudo sobre café. Ia a confeitarias e reproduzia as receitas em casa no fim de semana. Gostava da cumplicidade, da troca de olhares, dos segredinhos em comum, de dançar coladinho. Fazia yoga e viajava quando podia.
Ele vinha subindo a rua. Olhava, mas não via nada, cabeça de homem. Boa pinta, bem vestido, perfume, essas coisas. Culto, gostava de literatura e entendia de vinhos. Apreciava boa comida, sabia cozinhar alguma coisa. Gostava da provocação, do flerte, do beijo no cantinho da boca, de oferecer rosas, deixar bilhetinhos. Lutava boxe e acampava quando podia.
Ela chegou na esquina. Perguntava-se onde arranjaria um homem bonito, mas não assim comum. Um cara que se interessasse pela sua vida, que visitasse sua família aos fins de semana sem fazer cara feia. Que a levasse num lugarzinho charmoso e falasse sobre música e poesia, mas também roubasse um beijo, de sopetão. Refinado, sensível, mas masculino como homens devem ser.
Ele chegou na esquina. Queria saber se um dia conseguiria uma mulher bonita, mas inteligente, de personalidade. Uma assim que gostasse das suas coisas, que lhe acompanhasse num passeio no parque com o cachorro. Que lhe provocasse e deixasse as coisas no ar, mas também sorrisse com doçura quando ele a olhasse nos olhos. Firme, decidida, mas feminina como mulheres devem ser.
Ela parou para esperar os carros. Gostava do último namorado, mas acabou desiludida. As amigas ajudaram, chorou até esquecer. Ia sozinha ao cinema e sentia a falta de um ombro onde se acomodar durante o filme. Imaginava quando conheceria o homem que a faria pensar em filhos.
Ele parou para esperar os carros. Era apaixonado pela última namorada, mas ela o acabou deixando. Consolou-se, ocupou-se até esqueceu. Saía com os colegas depois do trabalho e invejava de longe a felicidade dos casais. Pensava se um dia voltaria a fazer planos ao lado de uma mulher.
Os carros pararam e ela atravessou. Olhou, preocupada, para a esquerda, para certificar-se que os carros não avançariam. Não viu o homem atrapalhado que passou ao seu lado.
Os carros pararam e ele atravessou. O celular tocou e ele atrapalhou-se procurando o aparelho no bolso. Não reparou na mulher preocupada que passou bem ao seu lado.
Ela continua duvidando que exista um homem que valha a pena. Ele continua não acreditando em alma gêmea. E vão andando por aí.
Sete, seis, cinco, quatro...
Contagem regressiva! Semana que vem, dia 14, o Acepipes sopra velinhas. Três anos, está virando um rapazinho já.
Como forma de comemorar –e de apresentar coisas antigas para os leitores novos–, vou publicar durante uma semana, todos os dias, os que eu julgo os melhores posts que já apareceram nessas páginas verdes. Pode ser?
Como forma de comemorar –e de apresentar coisas antigas para os leitores novos–, vou publicar durante uma semana, todos os dias, os que eu julgo os melhores posts que já apareceram nessas páginas verdes. Pode ser?
1.12.09
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