Estive pensando sobre esses últimos tempos.
Sou meio como um viajante no deserto. Viajante que caminhava sem rumo, sofrendo fome e sede, calor e frio, certo de que já não existia nenhum destino, de que não existia mais conforto, doçura. Certo de que o mundo era aquilo: areia estéril e só. Viajante que um dia viu lá na frente um oásis mas que, cansado demais para essas bobagens, não alimentou nenhuma esperança de que a miragem fosse real. Ainda assim, seguiu andando naquela direção. E quando chegou lá, pisou no mais belo lugar que jamais sonhara. No fim da história, ele, que tinha calado dentro de si todos os sonhos, viu-se dentro do mais maravilhoso deles.
Não quero fazer drama, não quero romantizar as coisas, mas você sabe disso: os meses que passei antes da sua chegada foram tão desoladores que eu não alimentava mais esses sonhos de amar, de ser amado. Não acreditava mais nessas bobagens, não acreditava mais nas pessoas. Não acreditava em mim.
E então você chegou, e com você a manhã. E numa tarde ensolarada, quando juntei meus fiapos de coragem e ousei sonhar mais uma vez e desafiei a solidão vazia que eu já tinha tomado como destino inevitável, você me disse sim.
Você chegou para soprar vida nas minhas esperanças mortas.
E é aqui que venho vivendo, num oásis. A cada dia você me realiza um pedacinho de sonho, a cada dia me faz uma nova surpresa, a cada dia se mostra mais doce, mais luminosa. A cada dia mais adorável, mais amável. A cada dia mais disposta a me fazer esquecer a vida de gato escaldado, de lobo solitário, e aprender a ser amado.
Agora sei que à noite, quando coloco a cabeça no travesseiro existe alguém pensando em mim, alguém fazendo uma prece para que eu tenha bons sonhos. Todas as noites, antes de dormir, sinto no rosto seu hálito fresco, seu beijo silencioso. E sei que o mundo é melhor só porque você existe nele.
Seu amor abriu meus olhos.
De tardinha, quando chego em casa e vejo o por-do-sol sobre o centro da cidade -as vantagens de se morar lá no alto-, é inevitável que não me lembre de você. Ou quando as árvores do caminho estão floridas. Ou quando a lua é bonita e faz céu cheio de estrelas.
A vida é leve ao seu lado. Você é a metade boa de mim, a parte doce da minha vida, os dias divertidos da minha semana. Você é o lado ensolarado da calçada, o horizonte limpo e iluminado. Você é a rosa sem espinhos, que perfuma sem machucar.
De uns tempos para cá, você anda incomodada com a cor dos seus cabelos. Sei que, em parte, fui eu que alimentei essa insegurança, por nunca ter dito nada a respeito. Peço, então, duas coisas. Primeiro: desculpe a minha indelicadeza. Segundo: não mude. Estão lindos, da mesma cor dos cabelos da Vênus.
Você saiu de um quadro do Botticelli para a minha vida. E eu te amo por isso.
* * *
ps. Não, eu não esqueci. Hoje é dia vinte e oito.
28.10.09
27.10.09
21.10.09
Conto zen
É uma casa aconchegante, sóbria. Um homem arruma as malas de viagem. É um cavalheiro à moda antiga, de sapatos envernizados, paletó xadrez, colete e óculos. Diga-se de passagem que são seus melhores sapatos, seu terno preferido, seus óculos de armação de ouro.
Dispõe, com demora proposital, peça por peça dentro das duas malas e da valise de couro. Roupas, lenços, alguns livros, material de barbear, uma caixa de aquarelas. Lembra-se da caderneta –trechos de livros, impressões, alguns haicais– no criado mudo. Acha na mesma gaveta o jogo portátil de xadrez e decide também levá-lo, embora não espere encontrar ninguém com quem jogar. Coloca a caderneta no bolso do paletó e o jogo na mala.
Tudo pronto, ele fecha os zíperes com cuidado, senta-se à mesinha e serve-se de mais uma xícara de chá enquanto espera a hora de sair.
Lá fora, um relógio bate quinze para as cinco horas. O cavalheiro joga um cachecol por cima do pescoço, pega um chapéu no cabideiro. Uma das malas fica ali mesmo, não chega a sair de cima da cama.
Carregando a mala e a valise, ele desce as escadas e passa pela porta. Repousa a bagagem no chão para achar as chaves no bolso. Tranca a porta e, conscientemente, deixa a mala ali, no alpendre.
É uma cidade pequena, bucólica. Carregando somente a valise, o homem caminha em direção a estação. É um dia de outono, cinzento. Ele para numa banquinha, compra cigarros. Não ouve quando o rapaz tenta alcançá-lo, avisando que esqueceu sobre o balcão os cigarros e a carteira.
Dobra uma esquina e para uma outra vez. É uma ponte antiga, de sólidas fundações de pedra. Tira a caderneta do bolso para tomar nota da paisagem, do entardecer. É um rio de águas tranquilas, escuras. O homem não escreve nada e retoma o caminho, deixando cair a caderneta.
Entra à direita na última esquina, está quase lá. É uma rua antiga, de paralelepípedos. Ele caminha com passos largos sobre as folhas secas da alameda e chega no minuto exato em que o trem, com um apito, desponta na grande curva antes da estação.
O trem chega. É um trem que vai para longe, muito longe. Enquanto os mais afoitos correm para instalar-se nos vagões, ele senta-se num banco, não tem pressa. Abre a valise para encontrar a passagem e então levanta-se, levando somente o tíquete. Detem-se um instante no limiar da plataforma, com a mão na alça da escada, inspira fundo e então embarca, sem nenhuma bagagem.
O trem parte. Deixa atrás de si fumaça e um homem na estação. É um cavalheiro à moda antiga, de sapatos envernizados, paletó xadrez, colete e óculos. O passageiro aconchega-se no banco e parte sem olhar para trás, sem acenar para o cavalheiro solitário. Sem despedir-se de si mesmo.
É ele quem ficou.
Dispõe, com demora proposital, peça por peça dentro das duas malas e da valise de couro. Roupas, lenços, alguns livros, material de barbear, uma caixa de aquarelas. Lembra-se da caderneta –trechos de livros, impressões, alguns haicais– no criado mudo. Acha na mesma gaveta o jogo portátil de xadrez e decide também levá-lo, embora não espere encontrar ninguém com quem jogar. Coloca a caderneta no bolso do paletó e o jogo na mala.
Tudo pronto, ele fecha os zíperes com cuidado, senta-se à mesinha e serve-se de mais uma xícara de chá enquanto espera a hora de sair.
Lá fora, um relógio bate quinze para as cinco horas. O cavalheiro joga um cachecol por cima do pescoço, pega um chapéu no cabideiro. Uma das malas fica ali mesmo, não chega a sair de cima da cama.
Carregando a mala e a valise, ele desce as escadas e passa pela porta. Repousa a bagagem no chão para achar as chaves no bolso. Tranca a porta e, conscientemente, deixa a mala ali, no alpendre.
É uma cidade pequena, bucólica. Carregando somente a valise, o homem caminha em direção a estação. É um dia de outono, cinzento. Ele para numa banquinha, compra cigarros. Não ouve quando o rapaz tenta alcançá-lo, avisando que esqueceu sobre o balcão os cigarros e a carteira.
Dobra uma esquina e para uma outra vez. É uma ponte antiga, de sólidas fundações de pedra. Tira a caderneta do bolso para tomar nota da paisagem, do entardecer. É um rio de águas tranquilas, escuras. O homem não escreve nada e retoma o caminho, deixando cair a caderneta.
Entra à direita na última esquina, está quase lá. É uma rua antiga, de paralelepípedos. Ele caminha com passos largos sobre as folhas secas da alameda e chega no minuto exato em que o trem, com um apito, desponta na grande curva antes da estação.
O trem chega. É um trem que vai para longe, muito longe. Enquanto os mais afoitos correm para instalar-se nos vagões, ele senta-se num banco, não tem pressa. Abre a valise para encontrar a passagem e então levanta-se, levando somente o tíquete. Detem-se um instante no limiar da plataforma, com a mão na alça da escada, inspira fundo e então embarca, sem nenhuma bagagem.
O trem parte. Deixa atrás de si fumaça e um homem na estação. É um cavalheiro à moda antiga, de sapatos envernizados, paletó xadrez, colete e óculos. O passageiro aconchega-se no banco e parte sem olhar para trás, sem acenar para o cavalheiro solitário. Sem despedir-se de si mesmo.
É ele quem ficou.
14.10.09
Trovão
Com exceção do porteiro, que entrega a correspondência e guarda o segredo a sete chaves, ninguém no condomínio nunca soube o nome do Trovão. Quando mudou para lá, ele já era o Trovão. Trovão, e só. E, verdade seja dita, nome nenhum cairia melhor que esse. Tem por onde ele ser chamado assim.
Trovão é um motoqueiro —"Motoqueiro, não! Motociclista", ele sempre corrige— de primeira. Cabelo comprido, cavanhaque, bota, colete, Ray-Ban aviador e o toc-toc-toc-toc ritmado dos dois cilindros ecoando na garagem. Motociclista tipo exportação.
Todo fim de tarde, os meninos do condomínio param o jogo de bola para ver o Trovão chegando na sua moto —"Moto, não! Motocicleta", ele sempre corrige também. O portão eletrônico abre, a motocicleta avança e a molecada fica ali, paralizada. Vez em quando ele dá uma buzinada leve, um aceno de cabeça –nada exagerado, que motociclista jamais perde a compostura– e a plateia mirim vai ao delírio.
Motoqueiros se apressam correm costuram buzinam irritam. Motociclista desfila.
As velhinhas de começo se assustaram, um rapaz assim num edifício de família, meu Deus!. Tatuagem de caveira, meu Deus! Mas o tempo —e os bons-dias, a porta do elevador aberta, o condomínio sempre em dia— mostraram que o Trovão é sujeito respeitador. Só a cara é de mau mesmo.
Ninguém sabe o que o Trovão faz, do que vive. Só o que a dona Mirtes, plantonista de notícias do condomínio, conseguiu descobrir é que ele sai cedo e chega todo dia na mesma hora, menos às quintas, dia de reunião do motoclube. A molecada imagina mil profissões, de mecânico a astronauta, a Gigi do 304 jura tê-lo visto no palco do Clube das Mulheres, já o seu Glicério jura que ele é lutador de telecatch na trupe do Michel Serdan.
Ninguém precisa saber que o Trovão, na verdade, se chama Carlos Roberto –homenagem ao rei–, trabalha como contador num escritório no centro velho da cidade, almoça com a mãe aos domingos, pede bênção para o avô, tomou fora de namorada, tem medo de altura e sofre de rinite. O que interessa no Trovão é o estilo.
Porque, nesse ramo, estilo é tudo.
Trovão é um motoqueiro —"Motoqueiro, não! Motociclista", ele sempre corrige— de primeira. Cabelo comprido, cavanhaque, bota, colete, Ray-Ban aviador e o toc-toc-toc-toc ritmado dos dois cilindros ecoando na garagem. Motociclista tipo exportação.
Todo fim de tarde, os meninos do condomínio param o jogo de bola para ver o Trovão chegando na sua moto —"Moto, não! Motocicleta", ele sempre corrige também. O portão eletrônico abre, a motocicleta avança e a molecada fica ali, paralizada. Vez em quando ele dá uma buzinada leve, um aceno de cabeça –nada exagerado, que motociclista jamais perde a compostura– e a plateia mirim vai ao delírio.
Motoqueiros se apressam correm costuram buzinam irritam. Motociclista desfila.
As velhinhas de começo se assustaram, um rapaz assim num edifício de família, meu Deus!. Tatuagem de caveira, meu Deus! Mas o tempo —e os bons-dias, a porta do elevador aberta, o condomínio sempre em dia— mostraram que o Trovão é sujeito respeitador. Só a cara é de mau mesmo.
Ninguém sabe o que o Trovão faz, do que vive. Só o que a dona Mirtes, plantonista de notícias do condomínio, conseguiu descobrir é que ele sai cedo e chega todo dia na mesma hora, menos às quintas, dia de reunião do motoclube. A molecada imagina mil profissões, de mecânico a astronauta, a Gigi do 304 jura tê-lo visto no palco do Clube das Mulheres, já o seu Glicério jura que ele é lutador de telecatch na trupe do Michel Serdan.
Ninguém precisa saber que o Trovão, na verdade, se chama Carlos Roberto –homenagem ao rei–, trabalha como contador num escritório no centro velho da cidade, almoça com a mãe aos domingos, pede bênção para o avô, tomou fora de namorada, tem medo de altura e sofre de rinite. O que interessa no Trovão é o estilo.
Porque, nesse ramo, estilo é tudo.
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