19.3.10

Peraí, Manuel, que eu vou também

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá é que é legal
Todo mundo é gente boa
E leva a vida na moral

Literatura #2

"Capítulo oitavo: do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação": só os títulos dos capítulos do Quixote já dão mais de 140 caracteres. Cervantes daria um péssimo microcontista.

16.3.10

Por um triz

Quinta passada, estacionei a moto na frente de casa e, quando desci para abrir o portão, dei com um vizinho maltratando dois cachorros. O macho com os dentes arreganhados, a fêmea prenha se encolhendo contra o muro para proteger os filhotes na barriga e o valentão brandindo um pedaço de pau. O sangue ferveu. Perguntei se não preferia bater em alguém do tamanho dele.
     Eu queria só que ele me respondesse. Eu estava louco para que ele me respondesse, só uma resposta atravessada. Eu queria só que aquele filho da puta covarde me respondesse. Mas ele não respondeu. Largou a madeira, resmungou que os cachorros estavam mordendo os japinhas que jogam bola na rua –duvido muito que estivessem– e foi embora.
     O cachorro veio lamber meus pés e eu quase chorei com a gratidão do bicho. Por pouco não gritei para aquele cretino que um vira-lata sarnento de rua era muito mais nobre que ele. Minha mãe arranjou um pote de ração e outro de água.

* * *

E domingo passado, saí de ônibus para a casa da minha noiva e, no que entrei no terminal, dei com três maloqueiros intimidando um garoto meio andrógino. Ouvi só a parte do "vamo te quebrar pra você virar homem". O sangue ferveu. Abri caminho no meio dos marginaizinhos, estiquei a mão para o garoto, comprimentei como se fôssemos velhos amigos –nunca tinha visto–, virei para os três e perguntei se tinham algum problema com meu brother.
     Resmungaram qualquer coisa e foram embora, puxando aquelas calças ridículas para cima. Eu queria só uma resposta atravessada, eu queria só que um filho da puta daquele boquejasse comigo.
     O garoto arrumou a franja, soltou um "valeu" meio envergonhado e –não esperava por essa– me esticou a lata de Coca-Cola. Eu nem queria beber nada, eu nem tomo refrigerante, mas peguei a lata. Entendi que a Coca era o melhor que ele tinha para oferecer na hora e eu o ofenderia se não aceitasse. Não sei explicar, mas por um segundo tive a impressão de que ele nem esperava que eu fosse aceitar; deve ser sempre assim, quem é que quer beber no mesmo gargalo de um garoto gay?
     Foi um baita gole, daqueles de encher os olhos de lágrimas. Ele agradeceu de novo quando devolvi a lata, e eu sabia o porquê.

* * *

Teve o tempo –eu era pequeno– em que morávamos num conjunto de prédios e no mesmo bloco, se não me engano, morava o seu Zé da Peixeira. Fácil entender o apelido. Lembro dele hoje porque ninguém nunca se meteu com o Zé da Peixeira. Vagabundo nunca mexeu com as filhas dele na rua, malandro nunca roubou pipa dos filhos dele. Duvido que alguma vez o amarelo da padaria tenha dado troco errado para os filhos do seu Zé da Peixeira como fazia comigo, que ainda não sabia contar o dinheiro do leite.
     Na minha cabeça, acho que ele não foi sempre assim. Devia ser um pacato desses da vida e que, belo dia, cansou de ser só mais um Zé e virou o Zé da Peixeira. Cansou. Cansou de ter muro pichado, mulher desrespeitada, filho judiado, cachorro chutado. Cansou de ser pernambucano mas ser chamado de baiano.
     Imagino o que será que foi preciso para que ele resolvesse dar esse basta, qual terá sido a gota d'água.

* * *

Não posso reclamar, nunca fui perseguido na escola, nunca sofri preconceito. Meu problema era ser tímido e medroso demais. Ficava vermelho só de a professora olhar para mim e tinha medo dos meninos maiores. Todas as minhas primeiras paixões foram platônicas.
     Acabou que por isso eu andava com o pessoal perseguido. Na quarta série meus amigos eram uma gordinha aspirante a metaleira, o único japonês da escola e um garoto pobre que não tinha dinheiro para comprar o uniforme novo para o qual a escola tinha trocado naquele ano. Éramos os que sobravam no canto do pátio na hora do recreio.
     Cresci e aprendi a lidar com isso, decidi que não queria mais sobrar. Fui campeão de vôlei, servi o Exército, liderei movimento na paróquia, namorei a menina que todo mundo queria, perdi o medo de altura, ganhei faixa preta de kung fu, aprendi boxe. Mas não esqueci de como é amargo ser escolhido por último no futebol.
     Porque por mais que eu me pinte de machão nessa história toda, ainda sou tímido e medroso. Ainda me pego recebendo troco errado e não dizendo nada, aceitando o pedido que veio errado no restaurante, pagando a conta absurda de celular sem questionar, ficando no acostamento por causa de uma fechada no trânsito, esperando o próximo ônibus porque o motorista fechou a porta na minha cara, deixando que me puxem o tapete.

* * *

No dia em que quase fui morto por uma cretina que furou o sinal vermelho e me acertou a noventa por hora, um sujeito buzinava para eu levantar logo e tirar a moto do meio da rua, da frente da pick-up importada dele. As pessoas passavam, apontavam e diziam que "motoqueiro é foda". Só que a culpa não era do motoqueiro sentado na sarjeta, era da senhora mãe de família loira, bonita e bem vestida. Antes de ir embora, ela esticou a mãozinha e, com as pontas dos dedos, me deu um cartão de seguro. Não fui capaz nem de responder "eu tenho seguro, não preciso disso". Não fui capaz de nada. Meu corpo inteiro doía, meu orgulho estava despedaçado. Eu me senti um lixo.
     Tinha gente na rua no dia em que cheguei em casa e ninguém fez nada pelos cachorros. Tinha gente no terminal de ônibus e ninguém fez nada pelo garoto. Tenho medo de ficar como essa gente, de fingir que não vi.
     Acho que nunca vou chegar no ponto de virada, na gota d'água. Duvido que um dia vire um novo Zé da Peixeira. Mas às vezes sinto que estou por um triz.

11.3.10

Viola

Debruçado na janela do apartamento, ele olhou para a viola, largada num canto, atrás da pilha de antigos livros da faculdade.
     Às vezes tinha essas saudades. Saudades da terra onde nasceu, dos campos onde cresceu, da casa onde ainda –se Deus quiser– voltaria para morrer. Saudade dos pomares, das plantações, dos pastos, dos riachos. Do canto do galo, do grito do quero-quero, do mugido, do relincho, do cacarejo, do pio. Do canto próximo de um sabiá, do som distante de um berrante.
     Saudades dos dias, mas principalmente saudades das noites.
     Meses atrás, um telefonema o avisara da morte do pai. O dono da viola. O pai, que carregava a bandeira todos os anos na Festa do Divino. O pai que, todas as noites, tocava antes de deitar-se e que chorou de orgulho quando ouviu os primeiros acordes nascerem das mãos do filho. O pai, sábio de uma sabedoria que não se ensina na escola, que o incentivara a buscar estudo na cidade grande.
     De tudo, do que mais ele sentia falta era das noites. Na cidade não se pode ver as estrelas porque as luzes dos homens ofuscaram a luz do céu. Vivem todos tão ocupados aqui em baixo, tão preocupados com aqui em baixo que esqueceram que existe um lá em cima.
     Quando era pequeno, ele se deitava de barriga para cima no terreiro e via a Lua e todas aquelas estrelas. Ficava lá, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, ouvindo a viola trinar na varanda até que a mãe chamasse para dentro. No dia seguinte, o trabalho era duro: nem tudo na vida é olhar estrelas. Os dias eram difíceis, mas as noites eram gentis e ele tinha saudades delas.
     Então ele saiu da janela. Pegou a viola há tempo tempo encostada e tocou, tocou como se morasse ainda na roça, onde não há vizinhos que reclamem do barulho a essas horas da noite. Uma lágrima correu quando ele viu que ainda sabia como se faz.
     E os vizinhos reclamaram, mas só porque não sabem da tristeza que lhe dá a lua cheia.

9.3.10

Aposentadoria

Não há mais lugar
para a fúria dos poetas,
suspira o Godzilla.

2.3.10

De como me tornei marginal

Até pouco tempo atrás era coisa que quase todo mundo gostava. Em casa era normal, cresci vendo meus pais e lembro da minha mãe dizer, quando pedia para experimentar um pouquinho, que ainda não, que não era coisa de criança. Vai ver foi isso que me atraiu. Daí que no dia que decidi que não era mais criança eu já sabia o que fazer: comprei um pacote e, olha, me senti adulto. Aquela fumaça subindo, aquele cheiro no ar... Era um negócio charmoso.
     Era.
     Porque aí começou essa onda de ser politicamente correto, saudável, ecológico, sustentável e o diabo a quatro. Começaram com campanhas contra, estatísticas de que todo ano não sei quantas mil pessoas têm problemas em decorrência de, que o Estado gasta não sei quantos milhões com, que não sei quanto porcento da renda familiar acaba indo para, que crianças estão experimentando cada vez mais cedo, que na terceira idade o consumo está avançando. Não era mais inofensivo.
     Pessoal mais impressionado começou a parar preocupado com a saúde. Quem era pai largou para não dar mau exemplo em casa. Quem era solteiro deixou para arranjar namorada. Passou um tempo, a coisa foi aumentando. Mais notícias, mais estudos. Obrigaram a colocar mensagens –"o Ministério da Saúde adverte blablablá"– na embalagem, resolveram proibir em lugares fechados, na escola, no trabalho. Não era mais charmoso.
     Eu acabei me adaptando, em alguns lugares ainda era permitido. Frequentava cafeterias no horário do expediente, dava uma fugidinha para uma ou outra lanchonete amiga na hora do almoço. E o povo olhando feio, porque me vieram com essas ideias de consumidor passivo, que quem está por perto acaba se prejudicando também. Aí danou-se: viramos os vilões da história e a coisa ficou séria.
     Não deu outra: dali um tempo em lugar nenhum podia mais. Só na rua e em casa –se a mulher deixar, e a minha não deixa desde que o Júnior ficou maiorzinho e começou a entender as coisas. Foi rápida, a nossa queda: não era mais permitido.
     Inclusive vou admitir agora que, no fundo, no fundo, nem acho tão bom assim. É amargo, deixa gosto na boca. Mas é um negócio bacana, relaxa, serve de boa companhia quando eu leio –cá entre nós, serve de desculpa para uma escapadinha no trabalho também. Não consigo ficar sem e, sei lá, não me entra na cabeça que é errado.
     Já me aconselharam a frequentar um grupo de ajuda. Cheguei a assistir uma reunião –mentira, assisti meia reunião–, e, olha, foi demais para minha cabeça. Nada contra quem gosta de sentar diante de olhares de piedade e dizer "oi, meu nome é Fulaninho e já estou há dois dias limpo", mas, desculpem, não faz meu estilo. Decidi que sairia sozinho do buraco.
     Só que não saí.
     E agora eu estou aqui, de madrugada na cozinha, escondido da minha mulher, que ameaça sair de casa se me vir de novo tomando uma xícara, improvisando com uma meia e pedindo ao Rex que não comece a latir. Deus me livre, as crianças ficarem sabendo que o pai bebe café.