3.2.10

No restaurante

— E por onde eu abro esse negócio?
     Assim, pressão já alterada, encontramos nosso amigo, o tantas vezes incompreendido seu Glicério, brigando com o cardápio –menu, aliás– no restaurante onde dona Eulália deu de querer estrear o vestidinho que deu a si mesma de aniversário. Não que ela tenha esperança de que ele note isso.
     Seu Glicério é homem direto, gosta das franquezas da vida e da culinária. É um amante das coisas simples, dos cardápios de uma folha só, dos nomes de pratos em bom português. Gosta mesmo de um bom rodízio, onde é só sentar e a comida vem até você. Não que isso impeça ele de reclamar, vez ou outra, porque todo cidadão tem seus direitos:
     — Deve ter algum amigo lá no fundo, olha lá os garçons indo lá de novo.
     — Acho que o churrasqueiro é indiano. Só passa frango, frango, frango...
     — O garçom deve estar guardando as picanhas pra levar pra casa, só pode ser.
     — Quem inventou de colocar peixe cru no buffet de churrascaria?
     — Eu lá sou homem de mousse de maracujá? Eu quero uma fatia de goiabada. Tem?
     Mas hoje dona Eulália viu o restaurante do momento numa revista e decidiu que era lá. E lá estava o casal sentado numa das mesinhas do bistrô, à luz de uma vela e do olhar desconfiado dum maitre que, seu Glicério observou, pela magreza não devia ser muito chegado a comida, não. "Comida contemporânea", dizia o luminoso, o que para nosso amigo soa como "nem brasileira nem de lugar nenhum".
     — Se eu lixar a mesa do jardim, fica igual. Fica melhor, até, que daí eu tiro esses riscos aqui.
     — É madeira de demolição, Glicério. Está usando agora.
     Na mesa ao lado, um rapaz de cachecol e de óculos de aros grossos e armação escura, segurava –meio a contragosto, segundo nosso amigo– as mãos de uma menina que, aparentemente, usava as roupas da avó, só que do avesso. Ali mais à frente, uma mulher devolvia um prato, alegando que o feng shui da semana recomendava que seu arroz viesse à direita, e não à esquerda do filé de soja. E seu Glicério já com a pressão alterada.
     — Olha o tamanho dessas porções. Duas garfadas caprichadas e lá se foram cinquenta mangos.
     Dona Eulália estava indecisa entre um contemporâneo –minicrepes de chá verde ao molho de esturjão e falso foie gras de acelga– e um clássico francês –gratin dauphinois au vin blanc d'Astarac. Acabou pedindo, pronto!, os dois: um para ela e um para o marido, que assim ela poderia experimentar tudo. Para seu Glicério, agora já resignado, tanto fazia, era tudo caro do mesmo e pequeno do mesmo jeito.
     Bom mesmo, melhor que rodízio, para ele, são os lugares onde nem precisa olhar cardápio, como a cantina do Gennaro, onde é só sentar, pedir um espaguete à bolonhesa e ponto. E quem é amigo, ainda ganha uma jarra de vinho da casa.
     Então, chegaram os pratos. Seu Glicério observou que, na verdade, as suas gratin dauphinois au vin blanc d'Astarac nada mais eram que batatinhas de aperitivo, iguais às do boteco do Carlão. Só que no boteco do Carlão a porção vem com doze, e aqui veio com duas só. Antes de dar a primeira –e penúltima– garfada, decretou:
     — E semana que vem é no Gennaro.
     Comeu e já colocou o remédio debaixo da língua, para evitar o infarto na hora de pedir a conta. Ele sofre, ele sofre.

* * *
Clique aqui para ler outras desse nosso amigo, bom e velho Glicério.

12 comentários:

Marina disse...

Mas é muito genial esse seu blog. O dia que eu descobri passei horas lendo. Muito bom! Aliás, o seu Glicério deve ser familiar de muita gente...

Fernando disse...

Ê, Glicério...! Não é só ele que não entende nada disso de comer pouco! Isso de comer pouco não é comigo... já deixo de sobreaviso meus amigos em caso de me chamarem pra almoçaar. haha

Elga Arantes disse...

seu Glicério é quem tem razão...

só nao pode se irritar com isso...

odeio restaurantes empolgados...

come com os olhos elambe com a testa, mas na hora de pagar é com dinheiro mesmo. e muuuito dinheiro...

Henrique Miné disse...

mas o outro prato devia ser uma delícia.

Pergunte a moça com as roupas da avó para você ver...

Abraço.

ex-amnésico disse...

Nem te falo o que bistrô me faz pensar!

Pois é, seu Glicério, "gente fina é outra coisa, entende" (como diria a saudosa Elis)...

Paulo Bono disse...

Glicério sou eu, porra!
Sou eu amanhã.

Magnum Opus disse...

O segredo é comer antes de sair pra comer, mas isso o seu Glicério nunca ia entender...

Cissa disse...

cara, eu ri na parte do 'eu lá sou homem de mousse de maracujá'.
rsrs...

Crispi. disse...

E como existem seus Glicérios por aí né!
As suas crônicas são tão gostosas de ler, você publica elas? Se não, deveria :)
Beijos!

-any valette disse...

acho que osu meio glicério, hein?

Jullia A. disse...

eu curto o seu glicério, mas se eu fosse a dona eu lália.. ah se eu fosse a dona eulália

Mile Corrêa disse...

Sinto-me meio "gliceriada"! rs
Menino, esse seu blog é demais!
Fiquei fã!