(os livros e eu, cap. ii)
Naquele dia, aquele que abriu a porta de casa e entrou na sala não era um menino de cinco anos, mas um general triunfante. Eu me sentia um César recém-chegado da campanha vitoriosa, de coroa de louros, trombetas e tudo. Se soubesse latim, teria feito pose e dito "veni, vidi, vici"; mas na época eu ainda estava aprendendo o português, o que já era de bom tamanho.
Meu uniforme novo —camiseta amarela de bichinho estampado, calça e Conga azul marinho— servia de toga de casaca de Napoleão. Parada na porta da cozinha com uma tigela de cobertura de chocolate nas mãos, minha mãe notou que havia algo de estranho no ar —e ainda não era o bolo queimando— e teve o respeito de não rir da minha empolgação.
Joguei a lancheira de lado, fui até a mesa de fórmica amarela, afastei a toalha, assoprei um resto de farinha e coloquei ali a mochila. De dentro dela, puxei meu troféu.
Era um livro grande, colorido, encapado com capricho em plástico transparente: chamava-se Caminho Suave, a minha cartilha. Abri na primeira lição. E ali, com a melhor voz de locutor de rádio que meus cinco anos me permitiam fazer, li a primeira palavra de minha vida:
— Ai.
(Como nada me doía, presumo que eu tenha começado lendo ficção.) Minha mãe aplaudiu, limpou as mãos no pano de prato e sentou ao meu lado. Fiz desfilar, então, naquele fim de tarde, minha tropa: uma legião —meia dúzia, na verdade— de combinações de vogais, que dançaram aos pares, rodopiando entre a fumaça do bolo de cenoura que minha mãe, emocionada, estava quase esquecendo de tirar do forno.
— Ei.
— Oi.
— Ui.
E então, em silêncio, tomei um fôlego maior, como o trapezista que chega no ápice do show, no salto mortal sem proteção, e encerrei com uma palavra de três –três!– letras, homenagem ao meu pai, mineiro:
— Uai!
Eu era um Colombo diante de um novo mundo. Repeti a lição várias vezes, orgulhoso, inclusive para a Elisa, vizinha do apartamento da frente. Esperei ansioso a hora do meu pai chegar do trabalho. Quase não dormi, esperando o dia seguinte: a lição do B.
Lembro-me dos primeiros livros da minha vida, aqueles que eu lia sem saber ler. Acontece que naquela tarde eu li de verdade. E minhas primeiras letras tinham gosto de bolo de cenoura com calda de chocolate.
Um dia maravilhoso.
* * *
Peço mil desculpas pelo atraso, o post era para ter ido ao ar na segunda. Feriadão, sabem como é...
13 comentários:
Hehehe. Impressionante sua memória sobre essas coisas. Mas imagino a facilidade que tenha em transformar essas boas lembranças em excelentes textos.
Eu também aprendi a ler nesta cartilha... mas não lembro desses detalhes! Mas lembro muito dos cheiros do meu primeiro dia de aula: uma mistura de massinha, giz de cera, pastel e guaraná! Tenho muita saudade...
Giovana
me lembro como se fosse ontem, na verdade, quase foi.
Minha irmã, dois anos mais velha, já sabia ler e, atentada como sempre, ficava desfilando com seus livros em casa e me fazendo inveja. E que inveja que eu sentia, viu!
Acontece então que, quando aprendi a ler, nunca mais consegui parar, e passava as tardes lendo as fábulas infantis para a minha avó, enquanto ela cozinhava, assistia TV, dormia, ou qualquer coisa. Eu sempre gostei de histórias, e, nessa época, descobri que lê-las é muito mais prazeroso do que simplesmente escutá-las.
me identifiquei muito com o texto, só trocar o bolo por cuzcuz e a mãe pela avó, hehe
abraço!
Me senti feito mosca pela cozinha vendo tudo acontecer. Época boa essa onde cada descoberta e vitória eram vividas intensamente.
Minha cartilha era outra, numa dessas ainda tem guardado em algum lugar... As letras sempre me fascinaram, já o números...
"... E minhas primeiras letras tinham gosto de bolo de cenoura com calda de chocolate... "
Não no mesmo contexto, mas as minhas primeiras letras tem sabor de bolo de cenoura com calda de chocolate, mas isso é outra história ...rs
http://realidadequalizada.blogspot.com/
Se continuar nos agraciando com textos tão deliciosos como esse, o atraso não fará diferença nenhuma!
Lindo! E vc me contava a historia do pequeno principe, mesmo antes de saber ler. Preciso comprar esse livro pra Marina...
Caminho Suave ... capa verdinha com um menino e uma menina de uniforme .... abelha-a, elefante-e, igreja-i, ovo-o .... bons tempos! Até hoje é um mistério como parecia tão mais fácil aprender as letras ... lindas lembranças em um belo texto!
Não lembro muito bem dessas coisas.
Só lembro que eu tinha medo de não conseguir ler, de não cosenguir acertar nada.
abraço, fera
lembro-me do meu orgulho de ler uma placa escrita "guaraná" na frente da escola. corri, chamei a professora e li outra vez. a gente se sentia tão poderoso diante das primeiras palavras. hoje em dia são as palavras que me dominam.
parabéns pelo post, e obrigada pela lembrança...
Oi Bruno! Vendo esse post tive certeza de que eu não sou louca por me lembrar do dia em que aprendi a ler. Eu me lembro perfeitamente desse dia! Mas não foi na lição do A, mas sim na lição do U, já no final do alfabeto. Eu acelerei naquele dia e fiz as lições adiantes da cartilha para conhecer todas as letras. Ao final, fui triunfante mostrar para a minha mãe, que estava fazendo o jantar. Pus a cartilha na mesa que era de formica azul clara. Quando meu pai chegou, quis me desafiar e escreveu num papel "probrema", com muito esforço decifrei e o corrigi. Era mágico tudo aquilo. Abraço.
Adoro seus textos Bruno!! Grande abraco pra vcs =]
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