14.2.12

Debaixo da carteira

(os livros e eu, cap. vii)

Talvez seja só esse negócio de achar que as coisas de antes eram melhores, mas aquela edição em três grandes volumes -azul, vermelho e verde-, com letras espaçosas e papel fosco e amarelado que um dia um amigo me emprestou era muito mais bonita que essas de hoje.
     Era a sexta série, e eu ainda não sabia que tinha acabado de conhecer, num colégio novo e numa cidade nova, os amigos que me acompanhariam pelo resto da vida. Não sabia que aqueles livros virariam filmes e nós esperaríamos -um pouco ansiosos, um pouco temerosos- cada lançamento. Não sabia também que teria pesadelos com logaritmos umas séries adiante, então li O senhor dos anéis nas aulas de matemática mesmo, escondendo os livros embaixo da carteira.
     Eu já estava ali mesmo, o tempo demorava pra passar mesmo, então me pareceu uma boa trocar números, formas e fórmulas por elfos, anões e hobbits. Espero que meus filhos não leiam isso, mas lembro de ter copiado umas respostas da menina que sentava do lado -secretamente apaixonada por mim, me contaram mais tarde- para poder terminar de uma vez o capítulo em que o Frodo fugia dos uruk-hai.
     Eles corriam o risco de virarem comida de orc, e eu corria o risco de reprovar em matemática, eles se escondiam do Olho que Tudo Vê, eu me escondia do professor de matemática. Cada um com a aventura que merece, enfim.
     Emendei um volume no outro em poucas semananas e, quando acabou, fiquei me sentindo sozinho por uns dias. Tinha mergulhado num universo e, de repente, voltado à tona. Porque tem disso: livros que, quando acabam, nos deixam sozinhos.
     No fim do ano letivo, eu já lembrava pouco de Bháskara, mas podia dizer de cor uma meia dúzia de canções élficas.
     (e minha mãe quase me matou quando chegou o boletim.)

2 comentários:

Crispi. disse...

Adoro seus contos, são tão leves!
Ainda não li Senhor dos Anéis. E nem vi o filme, acredita? Porque ainda quero os livros primeiro... Talvez eu leia em alguma aula de teórica da faculdade, que me da tanto sono quanto matemática...

Erika Pires disse...

Adoro ler livros que são tão legais que deixam essa sensação de solidão quando terminam.
Eu li "O senhor dos anéis" numa versão portuguesa, há muito tempo atrás. Nossa, era como se estivesse num universo mais mágico que o normal, porque os adjetivos eram diferentes dos que eu estava acostumada a ler e falar. Foi inesquecível. Depois tentei reler uma dessas versões modernas, não gostei.