Duas cabeças brancas debruçadas sobre duas xícaras vazias, uma caneta e uma revista: quem entra apressado no shopping certamente não percebe uma cena tão delicada. Tampouco eles, sentados a uma mesa do café, parecem perceber tanta pressa ao redor. De tempos em tempos, rompem o silêncio concentrado com alguma frase curta, tomam a caneta, escrevem. Fazem palavras cruzadas.
Já há mais de cinquenta anos os dois formam uma boa dupla: ela entende de artes e português e ele, de geografia e ciências. Juntos, já enfrentaram muitas perguntas, preencheram espaços, descobriram respostas, conviveram com dúvidas. Grande afeição por outra pessoa, com quatro letras.
O atendente, pouco atencioso, traz as coalhadas ainda dentro dos potes descartáveis fechados, o mel em embalagenzinhas individuais, como essas de manteiga ou geleia de hotel. Deixa tudo sobre a mesa, com duas colheres envoltas saquinhos plásticos. Enquanto ela tenta, os olhos quase fechados, puxar da memória a poeta polonesa que ganhou o Nobel, ele abre umas das embalagens, derrama numa espiral o mel sobre a coalhada, desembrulha uma colher e coloca em frente dela. Em seguida, prepara sua própria porção.
Depois de discutirem brevemente sobre o cantor caribenho precursor da bossa nova, passam um bom tempo calados. É um silêncio é de harmonia. Numa parceria longa como essa é preciso somente um olhar para se pedir a caneta, um sinal leve para dizer que não se sabe a resposta. Pela porta do shopping, mais gente vai entrando apressada, com fome de algo que a pressa não saciará. Ela recusa uma segunda rodada de café, se tomar outra xícara não conseguirá dormir à noite.
Desenhando com capricho a cauda elegante de um R, ele preenche o último quadradinho do dia. Levantam a cabeça ao mesmo tempo num sorriso satisfeito. Ela paga a conta.
Quem sai apressado do shopping certamente não percebe uma cena tão delicada: caminham em direção de casa, ele apoiando-se numa bengala e ela carregando uma revista de palavras cruzadas. Com as mãos que sobram, seguram um ao outro.
14 comentários:
Lindo, lindo. Texto lindo, história linda.
Eu faço palavras cruzadas com meu marido - espero continuar fazendo daqui trinta anos. <3
sempre detestei palavras cruzadas, nunca tive paciência. Lendo seu (lindo) texto, talvez ele explique muito sobre minha vida.
abraço!
só você pra escrever um texto tão lindo.
perfeito.
Lindo mesmo.
Era o q eu precisava ler hj... É o que eu precisarei ter daqui a 50 anos... Lindo! Parabéns!
Que pena que cena tão delicada passe despercebida pra tantos olhos apressados.
É na beleza dessas cenas que mora a felicidade que tanta gente procura e nunca encontra.
Só não digo que essa cena é dois meus pais porque meu pai não curte shopping...
que lindo, parabéns.
Vou ficar de olho em seus posts. se puder dar uma olhada e me dizer o que acha http://estadoimponente.blogspot.com
Gostei muito da crônica! Sensível, simples, e franca, como a vida. Que Deus continue inspirando a ti.
Adorei o blog
http://meumundorosapynk.blogspot.com.br/
Beijocas
Ai, ai, velhos tempos...
Eu lembro quando era criança, saía com minha mãe (ela estava aprendendo a dirigir - nunca teve carro :p)), ela ia fazer o teste e eu ficava resolvendo palavras-cruzadas - os melhores tempos de minha vida!
E você, sempre acertando no tema...!
Saudações!
Que coisa mais linda. Ainda bem que há sensíveis que percebem a delicadeza de um momento. Amei! Um abraço!
Belíssimo texto, de delicadeza ímpar!!!!!
Que lindo!!!
Descobri teu blog numa publicação da Karin, do Prateleira de Cima. Já gostei de primeira.
Parabéns!
Bjs
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