17.2.14

Duzentas

capítulo quarto


Dona Dalva levantou-se assustada, de um golpe só, quando os primeiros raios de sol escorreram entre as cortinas; tinha perdido a hora. Vestiu às pressas o roupão de cetim lilás e enfiou o pé nos chinelos acolchoados. Só então notou que estava sozinha na cama. Seu Jonas, à mesa da cozinha, cortava umas fatias de salame, o café passado e pão recém comprado sobre a mesa. O Major, na varanda, deitado na posição de sempre, na esperança de sempre.
     — Dormi pouco essa noite. Fiquei pensando na melhor maneira de conduzir meu experimento.
     “Conduzir”, dona Dalva nunca ouvira o marido falar complicado assim. Respondeu com um suspiro vencido. Hoje, pelo jeito, não adiantaria nada mandar envernizar a porta da garagem ou trocar de lugar os quadros da sala.
     — Mas então, já até anotei umas coisas aqui na minha caderneta. O que eu quero é descobrir as palavras que eu preciso para sobreviver. Só duzentas, que nem o Major. E então mando pra revista minha história. Assim falando, parece fácil, mas vai precisar muita investigação.
     “Investigação”. Diante das explicações do marido, ela viu necessidade de defender seu pé atrás:
     — Não é que eu seja contra. Mas é que a gente leva uma vida simples. Essas coisas complicadas assim não sei, não.
     A frase terminou num silêncio, numa justificativa pela metade, que não comoveu nosso amigo Jonas. Razão, razão mesmo ela não tinha.
     — Mas eu vou fazer uma experiência com palavras! Que perigo pode ter nisso?
     Dona Dalva sabia –quarenta anos de casamento– que Inês já era morta. Perigo parece que não tinha mesmo. Então comeu em silêncio, fingindo interesse no plano que o marido, empolgado, apresentava. Duzentas palavras, que nem o Major. Deixa o homem. Veremos.

3 comentários:

Janayna disse...

interessante.
estou curiosa para saber como é viver com apenas 200 palavras.

Anônimo disse...

ai que delícia de história <3 a descrição leve dos personagens, do ambiente, das ações <3 ah, quero morar nesse blog! <3

ex-amnésico disse...

Pois é, duzentas palavras (enquanto a língua portuguêsa tem -- até 2009-- 381.000 verbetes!)

Pensando bem, sabe o que eu gostaria de tentar? É viver sem falar (ou ouvir) palavra nenhuma.

Não seria mais compreendido, mas pouparia-me trabalho... ;)