16.4.10

O capitão

– O senhor gosta de água gelada, zero cinco?
     Era tarde da noite. Não era nem que estivesse cansado: eu estava quase esgotado. Esgotado, sujo, com frio, sei lá onde no meio da Serra do Mar. Meu grupo já estava na barraca preparando-se para dormir, mas eu tive que, sabem como é, atender um chamado da natureza. Voltando, cruzei com o capitão.
     – O senhor gosta de água gelada, zero cinco?
     Dei a única resposta razoável:
     — Não, senhor.
     — Pois então pule na água para aprender a gostar.
     A "água" era um poço escuro e fundo, um resto de água podre represada no canto do brejo. Corri o mais rápido que pude, levantei o fuzil –jamais largue seu fuzil, jamais– o mais alto que pude, pulei o mais longe que pude e gritei "Brasil!" o mais alto que pude. Uma camada fina de gelo se quebrou. Apresentei-me diante do capitão tremendo de frio.
     — E agora, gosta de água gelada, zero cinco?
     Dei a única resposta razoável:
     — Gosto, sim, senhor.
     — Pois já que gosta tanto, pule lá de novo.
     O sangue ferveu. Levantei o fuzil pulei gritei mais alto ainda. Quando saí da água, não tremia mais de frio: tremia de raiva.
     — A senhora sua mãe, como se chama, zero cinco?
     — Izabel.
     — E a dona Izabel sabe fazer bolo, zero cinco?
     — Sabe, sim, senhor.
     — Com cobertura de chocolate, zero cinco?
     — Sim, senhor.
     — Você não precisa estar aqui, zero cinco, tremendo de frio, obedecendo um capitão maluco. É só pedir para sair, zero cinco, e você estará quite com o serviço militar do mesmo jeito. É só pedir para sair, o motorista te leva em casa e você pode comer um bolo quentinho com cobertura de chocolate da dona Izabel, zero cinco.
     — Não, senhor.
     — Não ouvi, zero cinco. Acho que meus ouvidos congelaram. Quer voltar pra casa, zero cinco?
     — NÃO, SENHOR!
     — Eu vi que você e o oito ficaram para trás e ajudaram a carregar o equipamento do onze na corrida hoje de manhã. Você é um bom soldado, Palma. Você é um homem, esse foi o seu batismo.
     Homem. Eu tinha dezoito anos e foi a primeira vez que alguém me chamou assim. Senti o corpo aquecer, o peito estufar de orgulho.
     No quartel, tínhamos uma regra: cada minuto de atraso, cinco flexões. Um dia, esperávamos diante do refeitório e nada do capitão. Ele podia ter explicado que fora chamado pelo coronel –aliás, ele nem devia ter dito nada, um capitão não deve explicações aos soldados– mas não: deitou-se diante da tropa e pagou flexões. Cem delas.
     Outra vez, ele decidiu que correríamos não só os doze de sempre, mas sessenta minutos. E não de tênis, shorts e regata, mas de coturno e fuzil. Eu olhei em volta e vi caras de espanto, e a minha não devia ser diferente. Então o capitão entregou a pistola, pediu ao cabo que lhe trouxesse um fuzil e correu. Ele não precisava estar lá. Ele era um oficial do Exército Brasileiro e não precisava se sujeitar a correr como soldado, a carregar um fuzil de soldado. Mas ele estava lá. E todos, todos –magros ou gordos, fracos ou fortes, corredores ou não– chegaram ao final. Todos.
     Um dia o pessoal da empresa invocou de me chamar de Palma –tinha entrado um outro Bruno no mesmo setor– e eu cortei a onda na mesma hora. Porque só me chama pelo nome de guerra quem carregou fuzil e rastejou na lama ao meu lado. Só me chama de Palma quem largou o orgulho de lado e dormiu quase abraçado comigo para que eu –magricelo que era– não morresse de frio. Só me chama de Palma quem me incentivou a fazer só mais uma flexão, a correr só mais cem metros, a aguentar só mais um dia, a ir só mais um pouco além do limite.
     Descobri mais tarde que naquela madrugada a temperatura chegou a dois graus negativos na Serra do Mar –e cinco negativos, na noite seguinte. Mas eu teria pulado na água quantas vezes o capitão mandasse. Eu teria seguido aquele homem até o inferno.
     Chefes já tive muitos. Mas líderes eu conheci poucos.
     Bons tempos.
     Bons tempos.

     (E isso que nem contei histórias dos sargentos. Grandes sujeitos.)

* * *
ps. Oito é o De Niro, de quem já falei por aqui. E o soldado onze é o grande Fabrício, que anda lá pras bandas do Espírito Santo e de quem me bateu uma saudade enorme agora. Saravá, meu amigo.

13 comentários:

Marina disse...

É sério isso?

Ariel Martins disse...

Bem por isso fiz de tudo para não prestar serviço militar...rs

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Bom, imagino que poucos vão apreciar a beleza desse texto (vide os 2 comentários anteriores).

Mas é exatamente por isso que tenho uma tristeza imensa de não ter feito o serviço militar.

Como sempre um texto espetacular, gostei muito.

Marina disse...

E eu, pensando que era ficção. O.o

Magnum Opus disse...

Se alguém me perguntar o que é ser líder vou recomendar esse texto. Mas eu não seguiria esse homem até o inferno porque provavelmente teria morrido de frio...

Lubi disse...

eu admiro você.

Lubi disse...

outra coisa: tava com saudade daqui.

Grasi disse...

Noossa...
Adorei :)
Bjão e ótimo domingo :)

Stephanie disse...

independente das técnicas usadas pelas forças armadas, acho que o mais legal é que independente do capitão não precisar dar exemplo correndo com a tropa - ele participava. Essa é a diferença dos líderes, eles sabem como inspirar as pessoas.

Alexandre Olsemann disse...

Tem que horas que bate mesmo um saudosismo incrível. Legal que você registrou isso. Gostei bastante.

Anônimo disse...

Um bom exemplo vale mais que palavras e esse capitão sabia dar exemplo...

Mariliza Silva disse...

Bruno querido!
Eu me emocionei com este texto. Talvez seja por querer ter um líder ou talvez um dia ser uma líder para alguém! Adorei mesmo!

Um grande abraço para você e... eu tô ensaindo para voltar a ativa no Tempo de Saturno!

Mariliza

Paulo Bono disse...

Do caralho, Bruno.
Também tenho alguns capitães eternos.

abraço